24 de dezembro de 1929
Ver uma mulher: somente por um segundo, somente no breve lapso de um olhar, para logo voltar a perdê-la, na obscuridade de um corredor, atrás de uma porta que estou proibida de abrir... Ver uma mulher, e sentir nesse mesmo instante que também ela me viu, que os seus olhos inquisitivos se apaixonaram por mim como se não tivéssemos outro remédio senão encontrarmo-nos no umbral do ignoto, dessa fronteira obscura e melancólica da consciência...
Sim, sentir durante esse segundo que também ela está em suspenso, dir-se-ia que dolorosamente interrompida no discorrer dos pensamentos, como se os seus nervos se contraíssem ao contacto com os meus. E eu não estava cansada, não se confundiam dentro de mim as imagens do dia nem contemplava os campos cobertos de neve com as sombras alongadas do entardecer; via a multidão no bar; passavam raparigas, os seus pares de baile levavam-nas como se fossem bonecas, riam com frivolidade inclinando a cabeça para trás por cima dos seus ombros estreitos, entre as suas gargalhadas soava estrondoso o jazz e eu fugia para um pequeno canto; então Li fez-me sinais, o seu pequeno rosto relampagueava branco abaixo das sobrancelhas altas e depiladas. Trouxe o copo na minha direção, obrigando-me, obstinada, a prová-lo e depois apertou o pescoço do norueguês com as suas esbeltas mãos; passou a flutuar diante de mim, dançarinamente, enquanto os olhos dele pendiam dos seus lábios.
Em breve a noite fria de inverno veio ao nosso encontro, Lange caminhava ao meu lado falando um alemão desajeitado. «Deveria ter vergonha! — disse —. Não sabe como são perigosas as raparigas mongóis». Li era mongol, e eu consenti com a cabeça, ainda que ela não fosse perigosa. Um rosto de porcelana que relampagueava debaixo de umas sobrancelhas finamente depiladas e umas mãos brancas, relampagueando também sem cessar, sobre os ombros daqueles varões que a levavam por entre o enxame de gente que dançava... Mas Li sorri!, em torno da sua boca pode haver um temeroso sorriso infantil e eu sei que os homens amam a doçura dessa boca, mas o que é esse sorriso comparado com o dos pequenos seres, loiros e inocentes, que nada pretendem e que de fora, debaixo da luz do sol, vêm ao nosso encontro, ficam a observar-nos e despertam a nossa simpatia ainda que sintamos fadiga e mal estar físico pelo asco que imperceptivelmente a mistura de riso e de hilaridade, de excesso de fumo e de bulício, começa a produzir.
Que agradável é a carícia do ar fresco noturno sobre a minha cara!, tenho até mesmo neve colada aos sapatos. Apercebe-se uma nova luz aqui e ali, alguém leva os meus bastões de esqui, dou a mão a Lange, que sobe apressado a escada. Agora toco o sino; uma vez no interior, o ascensorista fecha a porta nas minhas costas; estou cabisbaixa quando o elevador para no hall. Por um momento o calor e o ruído invadem o recinto, levanto o olhar e vejo uma mulher à minha frente, veste um casaco branco, a sua cara é morena sob o cabelo escuro e penteado para trás com severidade masculina; sou surpreendida pela força bela e luminosa que o seu olhar erradia e encontramo-nos, um segundo, e eu sinto o irresistível impulso de me aproximar dela e, mais amargo e doloroso ainda, o impulso de seguir a impressionante desconhecida, que nasce em mim como uma ânsia e uma ordem.
Baixo o olhar e dou um passo para trás. O elevador detém-se. O botões abre a porta, com um aceno de cabeça quase imperceptível a desconhecida passa diante de mim...
Annemarie Schwarzenbach, Ver uma mulher [tradução nossa].