15 de dezembro de 2014

quando ele entra eu já o esqueci. sabia, antes de ir, que era possível encontrá-lo mas o entusiasmo distraiu-me. quando ele entra estou distraída, despreparada. entra sozinho e tenho a impressão de ficarmos face a face por instantes. do outro lado da sala sou tão visível como se também estivesse sozinha. o que é um brilhante acaso, um filme não faria melhor, e me diverte. portanto ele vê-me imediatamente, sem me fitar, e dirige o olhar para o chão. desprevenida, o meu corpo reage, já não vou a tempo de o evitar. é raro isto acontecer. reparo, já a meio do movimento, que ajeito o corpo na cadeira e desvio o olhar para o chão. ele entra e eu desvio o olhar para o chão, arrumo o corpo na cadeira. uma felicidade, cuja perfídia já conheço, quer envolver-me. reparo que o meu sangue ferve subtilmente e isso revolta-me. digo não ao sangue. retomo.
tento esquecer-me da sua presença, não consigo e digo-me que aceitarei o que ela me provoca. assim, procuro imediatamente organizar o que sinto. voltamos a estar ali os dois, talvez seja uma outra sala mas é idêntica à antiga. não estamos juntos, não o acompanho, ele não me acompanha. já não sei quem é sequer, passou muito tempo, não tenho vontade de estar com ele. não entrámos juntos, não sairemos juntos. não fumarei um cigarro com ele na entrada do edifício. não o ouvirei falar, não falarei. com esse pensamento sinto um certo alívio. perturba-me o quanto passou a ser-me indiferente em tão pouco tempo, talvez esteja a perder qualidades com a velhice. sei que ele me procura. sei que uma parte dele também ali está por minha causa. sei que também ele esperava encontrar-me. vejo agora que quando se sentou, na única cadeira vaga e apressado, ficámos com um móvel entre nós, que o impede de me ver. sorrio interiormente. sei que ele tem necessidade de me ver e que não é tão teimoso que consiga evitar fazer por isso. eu sou mais. sorrio porque o acaso (o belo, belo acaso) me deu uma oportunidade de o comprovar. concentrada no que fui ali fazer distraio-me dele. volto a lembrar-me quando, na minha visão periférica, reparo num corpo que se estende para trás numa cadeira. é ele. espreita-me por detrás do móvel em meio. tivesse eu quinze anos teria olhado diretamente para ele nesse momento. já não sou tão feroz nem tão segura.
depois, contra mim, volto a ficar atenta a ele, que descobri poder ver na minha visão periférica. procuro imaginar o que pensa. talvez também esteja atento. mas não pode ler o que escrevo. também ele já não sabe quem eu sou. sei que imagina coisas que não são reais, sempre foi e sempre será assim. um rapaz ao meu lado fala-me, mostra-me um livro. ele parece indiferente. às vezes é mais importante não dizer do que dizer, não fazer do que fazer, como naquele dia, enquanto caminhava em direção a ele sob as árvores, foi mais importante que não tivesse olhado para mim do que se tivesse olhado, como se tentasse, obstinada e pretensiosamente, resguardar-se de alguma comoção embora mais tarde, à despedida, não renunciasse a um olhar ostensivo sobre o meu corpo e, de forma perturbante, a sua mão quase ganhasse vontade própria, deslaçando-me enfim sem outro remédio senão evitar tumultos. ou talvez isto fosse um puro engano. durante muito tempo eram contudo estas as coisas que me prendiam a ele. e portanto isso, essa ligação, a importância dessa ligação, minha e não dele, não nossa, toma agora relevância. são estas as coisas que me prendem a ele, pensei. estar aqui é importante porque te devolve o luto que ainda há a fazer. senti-me grata por isso.
a hora de sairmos aproxima-se. sei que ele quer apanhar-me à saída. sei que é apenas isso que quer, que não falaremos. sei também que pensa que quero fugir. mas eu não quero fugir. tudo nele se tornou expectável, previsível, repetitivo. desviei-me para outro caminho e o que daqui vejo tomou uma certa lentidão, muito curiosa de resto, ainda assim inesperada. não tenho pena, conheci-o. é fascinante. e conheci o opróbrio. conhecer o opróbrio reposiciona-nos no mundo. quando ele se tornou risível, voltei a ver-me. parte o devo a profundos silêncios, dolorosos, mas necessários. não explico nada a ninguém que não queira ouvir explicações. pensem o que quiserem. só se ilude e erra o alvo aquele que não ama. portanto vou em frente. o amor, se um dia chegar, chegará inteiro ou não será.
uma pessoa assoma à porta e pede para sairmos. todos se levantam ao mesmo tempo. se quiser sair, terei de passar por trás das pessoas que estão ao meu lado ou esperar que todos saiam. assim que me desvio para trás das pessoas, ele corre para a saída. sorrio interiormente e, ato contínuo, sinto medo. ¿medo de quê?, penso. ele vai estar lá fora, respondo. sossego-me. ele não quer falar, só te quer ver. e mostrar-se, sobretudo mostrar-se. para ele, estares aqui é confirmares que pensas nele em silêncio, à distância. ele quer confirmar a sua influência, o seu direito de propriedade, o seu poder. é apenas um homem. sossega. saio.
sorrio interiormente mal o vejo. está encostado a uma parede tem um livro nas mãos que aparentemente lê. o corpo está reclinado, o ombro esquerdo encostado à parede, o tronco voltado para a porta da sala por onde estou a sair, os pés cruzados e pousados praticamente a meio do corredor. apercebo-me imediatamente da simulação na postura. instintivamente talvez, sem pensar, estou a ir em frente, vou passar com um olá. vejo-me longe dele, muito longe, daquele ridículo também, tanto que não me ocorre senão prosseguir o meu caminho. mas estou tão tranquila que me estranho. já estou perto dele quando penso que tinha decidido cumprimentá-lo mas agora estou a ir em frente (¿porquê?) e não posso deixar de o cumprimentar com um beijo. vejo que ele próprio se sobressalta ao ver-me avançar meio passo além dele, ou talvez não tenha tido tempo ou lhe falte a atenção necessária para conseguir aperceber-se dessas coisas e o sobressalto fizesse apenas parte da indumentária escolhida para a ocasião. olhamos um para o outro. agora que o escrevo não sei porque me senti forçada a cumprimentá-lo e a aproximar-me dele, passo de enorme violência contra mim própria neste dia, neste momento. podia simplesmente tê-lo deixado cair de surpresa. na altura o que pensei foi que, posteriormente, seria estranho não cumprimentar uma pessoa com quem tive uma relação tão intensa. ou talvez cedesse apenas a não criar tumultos. prefiro a deturpação ao choque. meros caprichos não são aceitáveis mas não tive tempo para perceber se esta decisão seria um. pensei apenas que há que ter coragem na vida. a coragem vê-se é nestas coisas, quando um homem e uma mulher se reencontram depois de uma relação que acabou. agora, no entanto, não sei, creio que talvez não fosse verdade. cumprimentei-o por temer que ele me desarmasse, não sei como, se passasse por ele apenas com um olá. tive medo. falhei.
cumprimentamo-nos. ele sorri. tem um grande sorriso e não diz nada. baixa um pouco a testa, olha para os meus olhos. penso no gato Cheshire. quase lho digo e com isso me assusto. repentinamente sou arrebatada, a audição muda, creio que estou a sonhar ou a acordar de um sonho. receio dizer o que não quero (¿e que grave revelação estaria contida nesta imagem?) e fazer o que me horroriza. procuro tranquilizar-me, nem estás a sonhar nem disseste nada que contivesse revelações desastrosas ou humilhantes, avanço o rosto para o beijar. olá M. ele não responde. isso choca-me e não sei porquê. enquanto o digo, movimento o meu braço direito para tocar no seu antebraço esquerdo, que ele desencostou da parede quando endireitou o corpo para me cumprimentar. quero que seja um gesto cordial mas quando lhe toco temo que haja denúncia de algum carinho e não quero ser demasiado carinhosa. portanto hesito e assim que me vejo hesitar sei que ele sentiu o tremor da minha mão ao tocar-lhe no braço. ordeno à minha mão para ficar firme como um soldado. digo ¿tudo bem? a minha voz treme no meio do silêncio. olho para ele e percebo que talvez não estivesse atento à minha mão. (agora que escrevo isto, reparo que a única coisa de que me esqueci foi da mão dele, que talvez me tenha tocado quando nos cumprimentámos, não sei já onde nem como. ou talvez não. e queria lembrar-me). ele não responde. está muito concentrado em não responder. olha para mim com um grande sorriso. também estou a sorrir, não tanto como ele, espero, pensei. dirijo agora os meus olhos para o chão, vou-me embora, tarefa cumprida, o seu corpo, o seu livro nas mãos, estão já ao meu lado, avanço mais um passo, ficou para trás, e com outro passo onde as pernas me falham, como se fossem partir-se, ainda mais para trás, não me vê, sei-o, não me verá, sair do corredor, do edifício, da cidade a anoitecer, não sabe quem sou. ¿saberá?
estou a olhar para o fundo do corredor, à esquerda estão as escadas que conduzem à saída do edifício, não sei o que sinto, impossível pensar, estou perdida num corredor um simples corredor, a porta de saída está próxima, conheço o caminho mas não consigo sair do edifício, sequer do corredor, repugna-me a ideia de talvez não querer sair de perto dele, de um corredor de ar ao qual se misturou o seu cheiro, continuo a andar em frente, há uma porta que não sei onde vai dar, entro, é uma casa de banho. tinha estado lá à chegada e não me recordava. tinha-me achado feia ao espelho enquanto lavava as mãos e sacudi os ombros. dirijo-me ao mesmo espelho. vejo-me linda. parece outro rosto, mais fino, mais delicado, ligeiramente rosado, os olhos com um azul muito forte sobressaem, o cabelo louro cai em canudos sobre os ombros. não sei o que terá acontecido, estou espantada. ¿quem sou eu? respiro fundo, penso no que tenho de fazer. agora sais e vais-te embora. agora tens de sair. caminho muito depressa, com passos pesados, muito pesados, sólidos, receio que os meus pés adiram aos degraus de pedra, e ao mesmo tempo tenho o corpo muito leve, como se estivesse à beira de desvanecer-se. aos poucos, quando começo a chegar ao final da escada, começo a sentir-me segura para pensar no que sinto. estou indignada. ele não falou. isso surpreendeu-me. afinal ainda conseguiu surpreender-me. e no entanto, ¿que importa? reparo que também não falou durante as duas horas que estivemos dentro da sala e que no final da aula achei isso estranho. é raro ele não falar, gosta demasiado de se ouvir a si próprio. ¿porque não me disse olá? foi isso que me fez quebrar a voz e prosseguir com um ¿tudo bem?, que não teria existido se ele tivesse falado. não falou, não disse nada, nem antes nem depois. ¿porquê? que estratégia era esta e para quê, que necessidade havia disto. a resposta está sempre nele, penso. ele não está interessado em ti mas nele próprio. então rapidamente me recordo daquele conto onde sugeri que a sua voz me transtornava. creio que poderá ser isso. ou poderá ser que apenas se ache tão importante ao ponto de se tornar rude. achei-o rude, penso. agora começo a organizar toda a justificação mentalmente. achei-o rude e por isso me indignei. sempre achei que ele era gentil socialmente, pelo menos socialmente. sempre foi, pensei que voltaria a ser, como seria natural para um fim que se quer acabado e encerrado. mas havia violência nesse silêncio. e ao mesmo tempo fraude. era um silêncio artificial, imposto, forçado, destinado a mim. como se eu ainda existisse. revoltei-me porque não era silêncio, era uma fala muda. e por ainda haver alguma coisa em mim sujeita a isso, seja lá o que isso seja, a ele. nada há a dizer, duas vezes mo repete, a primeira tinha-me provocado um riso abafado, a segunda perturba-me, ambas são desnecessárias e ridículas. que homem, com tanto para dizer mesmo quando nada há a dizer.
estava finalmente cá fora. o barulho do trânsito envolvia-me como uma alegria que regressasse. livre. libertei a tensão dos ombros e deitei a cabeça para trás. caminhei assim durante algum tempo, até acabar a rua, a olhar para o céu. o frio do vento que tocava no rosto era agradável. o meu passo abrandava e tornava-se mais leve. eu sorria ao que me esperava.
cheguei ao carro e vi que todos os meus gestos eram definitivos: despir o casaco, guardar o casaco, entrar no carro, ligar o carro, arrancar, estou livre, vou sair desta cidade, posso sair desta cidade, que alegria poder sair desta cidade hoje, agora. já no meio do trânsito voltei a pensar nele. o que sentes, o que sentes, agora. e lembrei-me do corpo dele reclinado no corredor, demasiado reclinado. ele saiu rapidamente por tua causa. e encostou-se àquela parede para te ver passar. e no final do dia, isso é que conta. sorri, não apenas interiormente pois estou sozinha no carro. sorri um grande sorriso e, ato contínuo, vejo que no coração também sorri. isso enche-me de medo, não quero pontas soltas. então decido escancarar a porta e comovo-me com o que encontro. gostei de o ver. estava bonito quando entrou na sala, foi o que pensei, sem querer assumi-lo. é tão bonito. sorrio outra vez. ¿mas porque raio gostas tu tanto de homens bonitos, já te fizeram algum bem? e sorrio outra vez porque penso pois mas são bonitos. estou a salvo, segura. nada depende dele. e está a ficar careca, lembra-te, mas não me vale de nada, continuo a achá-lo bonito. ainda não cortou o cabelo desde que lhe pediste para o deixar crescer, talvez o corte agora, depois de ler isto. claro que não é por tua causa, mas porque se acha bonito. e é. ainda é. e claro que o cabelo comprido lhe fica melhor. mas está a ficar careca e gordo. por acaso hoje achei-o mais magro. foi isso que pensei quando me aproximei dele e do livro nas mãos. estava elegante. acho que talvez até estivesse a encolher a barriga. e tem um sorriso bonito. estas coisas sempre obliteram nele a crueldade. corpo manso, falas mansas. e tu uma palerma mansa com as costas tão largas que ainda serias capaz de rir de tudo com ele. incluindo de ti própria. tenho uma grande vontade de chorar. não sei se hei-de deixar-me chorar mas decido que sim, que quero deixar sair tudo. deixo e não consigo. não tenho lágrimas, não cai uma única lágrima, o que me frustra, porque sinto que qualquer coisa que quero por fora está trancada. ¿porque é que tenho vontade de chorar? não sei, não sei bem, não quero saber. estou farta deste luto, vivo numa passagem infindável da esperança ao temor à indignação. e esta esperança aterroriza-me. estou farta destas ondas e não quero voltar a naufragar. escolho preservar o melhor dele, que é a vida atrás do seu silêncio, é essa a única coisa que me interessa manter. talvez ele saiba isso, sim, talvez ele me conheça. ¿se lhe perguntasse a ele que música sou, o que me responderia? creio que não poderia responder. tenho saudades dele, de o ver rir, de o ouvir falar, animado, das suas elucubrações e do mundo, do terrível mundo. mais pelos seus gestos, entoações de voz e movimentos de rosto do que pelo que poderia dizer. ¿mas que importa? quero chorar porque essa é a derradeira forma do amor. não quero deixar de chorar.
estou a salvo e que desoladora me parece a minha salvação. nada se passa, estou de volta ao fosso, abençoado fosso. nem sequer tenho pena dele. cada um vive o que quer e eu estou a salvo. quando chego a casa começo a ficar zangada porque me confesso, quase à força, que ainda estou a pensar nele. entretenho-me a reconstruir o doce caminho entre mim e os pequenos sinais que me chegam dele, faço-o com certa paixão, como um detetive. certamente que estou continuamente a querer ver o que não está lá. o que foi feito para ser pensado não foi feito para ser amado. estou a sair do carro quando imagino este texto que decido imediatamente escrever. há que ter coragem para isso miúda, e logo vejo que a tenho. ¿e consegues? consigo, respondo. nem que eu fique uma noite inteira ao computador. está bem, escreves o texto. ¿e depois publicas? ai publicas, penso resolutamente, sem pensar muito. bom, primeiro escreve, sempre quero ver. vais-te esquecer, já sei como é. não esquecerei nada. e vou publicar. há que deixar sair tudo.