18 de dezembro de 2014

é curioso que toda a gente tenha histórias sobre viagens de autocarro. na paragem ou lá dentro, entre um e outro destino, a viagem no autocarro é uma oportunidade para se estar em suspenso. uma altura para tomar o lugar do observador de que sentimos falta na azáfama. no dia em que a minha história se passa, o autocarro circulava entre a Cidade Universitária e Benfica. era o meio de uma tarde de outono, não chovia. havia a doçura do tempo ameno e das folhas com cores intensas a encher a copa das árvores e a voar por toda a parte. a beleza, por toda a parte. que em muito contribuía para as minhas divagações à janela e tornavam o percurso delicioso. num desses dias, uma mãe que arrastava uma criança pelo braço entraram no autocarro. a criança não gritava nem gemia ou sequer dizia nada, o que seria legítimo da sua parte, dada a forma violenta como era arrastada. os gestos da mãe eram de tal modo impetuosos que, assim que entraram no autocarro, atraíram o meu olhar como um íman. vi que tinha o coração apertado. voltei a olhar através do vidro para me concentrar nas cores da cidade. para esquecer aquela violência. alguns minutos depois, a criança começa a falar:

— Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

julguei não ter ouvido bem. lembro-me de pensar que o autocarro estava cheio mas estranhamente silencioso naquele dia mas será que eu tinha ouvido bem. como que para desfazer as minhas dúvidas, a criança continuou:

— ó Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe!!! as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

quando fazia a pergunta olhava para a mãe e a cada pausa olhava através do vidro da janela do autocarro, em puro devaneio. a sua voz era lancinante. a mãe vigiava o percurso que o autocarro fazia e durante muito tempo nunca o desviou. até que finalmente, respondeu:

— claro que não!!! então tu não sabes já que não?!?

ou seja, a criança continuou sem resposta à pergunta que a dilacerava. continuou a olhar através do vidro durante o resto do percurso e ao sair do autocarro pela mão da mãe, perguntava novamente:

— Mãe, mas... alguém pode nascer duas vezes...?

senti-me atordoada. queria responder-lhe. não tenho filhos e não estou habituada à presença de crianças, talvez por isso não estivesse preparada para esta delícia — terrível — de um pensamento que nasce. não sei que pensamento era esse e tive pena de não poder ter aquela criança como mestre. a pergunta era fabulosa. no caminho para casa, lembrei-me do que dizia Milan Kundera sobre as perguntas, que as verdadeiramente importantes são as que formulamos na infância: são as que não têm resposta. lembrei-me de Dioniso, que pela vingança da ciumenta Hera sobre Sémele, foi retirado do ventre da sua mãe morta e cosido na coxa de Zeus, seu pai, para terminar a gestação e assim nascer uma segunda vez. quando nesse dia me deitei, estava ainda a imaginar a conversa que poderia ter tido com o menino. invariavelmente começava assim: «claro que sim! olha, vou dar-te um exemplo. há muito, muito tempo atrás, havia um menino...»