Exercemos uma sobre a outra, eu e a minha irmã, uma ligeira pressão de contágio, de modo que nunca se sabe quem está a influenciar quem, como se vivêssemos ainda dentro do mesmo ovo.
30 de abril de 2014
27 de abril de 2014
O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela.
Do nascer ao por do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz caía até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a serra e mais nada. E bastava.
Havia uma amendoeira em frente e os melros eram tantos que podia observá-los muito tempo, o que fazia, saltando de um para outro sem precipitações, como se esperasse (com uma ansiedade dissimulada) que se transformassem em corvos. Depois muitas oliveiras, um limoeiro, trigo, duas ou três roseiras selvagens, algumas casas e a serra ao fundo, uma onda prestes a engolir-nos. Ouviam-se muitos grilos, demasiados no verão, ao ponto de não conseguir dormir e vir para a varanda ver as estrelas e o lugar negro de onde vinha o som.
Vi dali, várias vezes, a serra a arder. «Cheira a fogo!», dizia a minha avó, muito antes dos bombeiros soarem o alarme na Vila; todos os vizinhos corriam, como ela, avisando-se e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes a cinza enchia o ar e respirá-la queimava-nos também a nós. Consoante o ano, a serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro é de ver pequenos fogos até um certo ano, um ano em que nada se via da serra senão chamas que pareciam nunca mais deixar de arder. A minha avó ficou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele, já era de noite quando entrou em casa. Não dissemos nada.
Seria contudo pouco franca, se não dissesse que a melhor recordação da varanda em dias de sol com ela é do ano em que tive piolhos. Depois do almoço, sentava-me num banco e ela procurava-os entre a minha cabeleira. Os seus dedos grossos e macios pressionavam levemente o meu crânio e deslizavam para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia.
Do nascer ao por do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz caía até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a serra e mais nada. E bastava.
Havia uma amendoeira em frente e os melros eram tantos que podia observá-los muito tempo, o que fazia, saltando de um para outro sem precipitações, como se esperasse (com uma ansiedade dissimulada) que se transformassem em corvos. Depois muitas oliveiras, um limoeiro, trigo, duas ou três roseiras selvagens, algumas casas e a serra ao fundo, uma onda prestes a engolir-nos. Ouviam-se muitos grilos, demasiados no verão, ao ponto de não conseguir dormir e vir para a varanda ver as estrelas e o lugar negro de onde vinha o som.
Vi dali, várias vezes, a serra a arder. «Cheira a fogo!», dizia a minha avó, muito antes dos bombeiros soarem o alarme na Vila; todos os vizinhos corriam, como ela, avisando-se e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes a cinza enchia o ar e respirá-la queimava-nos também a nós. Consoante o ano, a serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro é de ver pequenos fogos até um certo ano, um ano em que nada se via da serra senão chamas que pareciam nunca mais deixar de arder. A minha avó ficou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele, já era de noite quando entrou em casa. Não dissemos nada.
Seria contudo pouco franca, se não dissesse que a melhor recordação da varanda em dias de sol com ela é do ano em que tive piolhos. Depois do almoço, sentava-me num banco e ela procurava-os entre a minha cabeleira. Os seus dedos grossos e macios pressionavam levemente o meu crânio e deslizavam para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia.
26 de abril de 2014
15 de abril de 2014
Acho espantoso como ainda se vive neste país. Ainda se faz teatro e música e cinema e se escrevem livros. Uma ou outra empresa — portuguesa — sobrevive. A água ainda corre, apesar de pútrida nos rios e nos ribeiros. As mãos dos amigos ainda se apertam, apesar de quase todos viverem apartados. A timidez e o pudor sobrevivem, apesar de tudo apelar à opressão da luz. As crianças brincam sozinhas ou aos pares em vez de correrem em hordas, mas há crianças, com olhos que nos arrebatam ao futuro e ao passado. Ainda há quem faça compras nos supermercados e encha os frigoríficos e quem tenha horários para trabalhar, fins-de-semana, feriados a gozar, fins de tarde para descansar. Há quem leia o jornal e apanhe aviões e há quem fique calado num banco de jardim com a felicidade de um suspiro involuntário. Há festas, bailes, jantares, pequenos galhos de árvores onde nascem flores, ainda se come fruta. E vem aí o verão não é?
Subscrever:
Mensagens (Atom)