Acabo de ver o início de um vídeo no Terreiro do Paço onde uma multidão se reuniu ontem ao fim da tarde para ver acender luzes numa árvore de Natal gigantesca que lá construíram. Também houve fogo de artifício. Vi as pessoas, eram de todas as idades, estavam jovens famílias com bebés ao colo, carrinhos de bebé ao lado e crianças pela mão, mas também adolescentes com pouca roupa colada aos corpos magros, pessoas de cabelo branco, grupos relativamente grandes de adultos numa festa animada à espera das luzes, a conversar, a dar saltos, a dançar, provavelmente para ajudar a espantar o frio. Vi este vídeo com a mesma perplexidade com que vejo vídeos de crimes de guerra. O que estão aquelas pessoas a fazer? O que significa tudo isto? O que esperam? Porque se reúnem milhares de estranhos numa praça para ver luzes? Terão motivações religiosas? Haverá outro pretexto a atraí-las de que não esteja a par, estão a distribuir dinheiro, a oferecer casas, brinquedos? Não bastava a vida lenta e isolada que levo, fazendo e evitando os mesmos caminhos, numa frugalidade extrema. Sinto-me completamente alienada. No fundo, se for a ver, talvez as inveje. Talvez estejam mais vivas do que eu por estarem juntas. Uma conversa no Facebook leva-me por estes dias a inquirir sobre as minhas razões para aquilo que defini, com um inesperado excesso de convicção, ser uma falta de vontade de escrever sobre um filme, e me levou a perceber que não se tratava de uma falta. Acontece-me isto muitas vezes, ter uma forte convicção sem que saiba porquê, sem procurar saber porquê, como se a determinação bastasse para me dispensar da sua necessidade ou da sua irrelevância. Não questionar a nossa determinação, ainda que forte, sobretudo se forte, torná-la-á cega? Seremos apenas tacanhos quando insistimos no dogma das nossas reflexões? De que apaziguamento irei à procura na resposta? É o mais difícil, descobrir a exata morada do medo. Abomino o consolo das respostas apaziguadoras, a abjeta mentira de não nos vermos pelo que somos que usamos impunemente para cometer atrocidades ou sacrifícios, e para nos refugiarmos em modos de vida insensatos movidos pela busca de poder. Mas também sei que há coisas que prefiro não ver. Quero romper o coração do outro lado, mas prefiro não saber como é que isto afeta quem o lê, por exemplo, e morrer mal o publique. Prefiro a invisibilidade à exposição, na qual arriscamos ser atacados ou louvados. Um amigo instigava-me a contrariar essa tendência, a resistir-lhe contra mim, e aconselhava-me a publicar a ligação aos textos em todas as redes sociais que estivesse a usar. «Perdido por cem, perdido por mil», pensava, e ouvia-o. Depois sentia uma alegria enorme quando alguém publicava um texto, me escrevia, me enviava alguma coisa a propósito. Contrariava-me, reconhecendo o equívoco da predisposição em esconder o pouco que tenho de valor na esperança que o distanciamento, ainda que sustentado pelo temor ou pela ousadia, o preserve. As imagens desse filme mostram-me uma coisa que sempre desejei e nunca tive e não quero adulterar ou desperdiçar, não quero deixar de a ver. Num tempo em que tudo o que dizemos tem a aparência de uma defesa hostil, corria o risco de cair na mediocridade do individual, de fazer ficção para o camuflar ou pior, corria o risco de ser arguta, de nomear, como os críticos. A intenção condena a narrativa, se procuro alguma coisa quando escrevo é ser totalmente negligente. Não consegui sequer chegar perto. Que posso dizer sobre o silêncio que não o estrague? Tudo me parece inadequado, como se a inaptidão estivesse do lado do próprio dizer e a coincidência com as imagens fosse impossível. Prefiro soçobrar sob o peso da imanência. É uma teimosia cega, claro, é absurdo. Não tem sentido, estou alienada. Tudo verdade. As coisas mais importantes que acontecem na vida não são vividas em silêncio, mas precisamente quando o quebramos, e nunca é cedo demais. Quando chegamos ao jardim e está sol, parece que vai durar.