8 de janeiro de 2024
Hoje no metro tresandava a fogo. Nos corredores o fumo era tanto que picava os olhos. Mas não se ouvia nenhum alarme. Do outro lado da linha, ninguém se movia. Coloquei um lenço sobre a boca e o nariz e sentei-me à espera do próximo. Havia um comboio parado na linha oposta. As pessoas levavam as mãos à cabeça, entravam e saíam rapidamente das carruagens e sorriam ao falar umas com as outras, esse sorriso torpe que acompanha as tragédias que não se abateram sobre nós próprios. Dois seguranças estavam parados numa das extremidades do túnel. Olhavam ora um para o outro, ora para a carruagem parada, e não diziam palavra. Equipados com coletes refletores, outros dois seguranças chegaram a correr, do outro lado do túnel. Ficaram a conversar calmamente sem se dirigir nem aos passageiros nem às carruagens. Os passos das pessoas que desciam os degraus para entrar na linha, tornavam-se progressivamente mais lentos; as pessoas hesitavam. Algumas entravam no túnel, outras, mais raramente, voltavam a subir os degraus depois de lançar um olhar em volta e desapareciam. Na plataforma, os homens punham as mãos nas ancas e arqueavam as costas. As mulheres sentavam-se e olhavam em volta como passarinhos. Esperei que algo acontecesse. Deveria ir-me embora? Não queria ir-me embora. Não queria mexer-me. Fiquei muito tempo sentada. Tinha um sentimento estranho ao que via, de tranquilidade. Na verdade, todos tinham, os seguranças, os passageiros que permaneceram sentados dentro da carruagem do comboio parado na linha oposta, os passageiros que aguardavam o próximo comboio do meu lado da linha e os que aguardavam na outra plataforma que a situação se resolvesse. Cheira a fogo, vê-se fumo, e é tudo. Não se sabe onde arde, não se sabe se temos de fugir, não deflagra.
1 de janeiro de 2024
"E voltou para junto da raposa:
— Adeus, disse...
— Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se pode ver com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
— O essencial é invisível aos olhos, repetiu o principezinho de modo a poder recordar-se.
— É o tempo que perdeste com a tua rosa que torna a tua rosa tão importante.
— É o tempo que eu perdi com a minha rosa... disse o principezinho para se recordar.
Os homens esqueceram esta verdade, disse a raposa. Mas tu não deves esquecer-te. Tornaste-te para sempre responsável por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa... repetiu o principezinho, para se recordar."
Antoine de Saint-Exupéry
22 de dezembro de 2023
16 de dezembro de 2023
“Discordo de tudo isto. Chegaria ao ponto de dizer que a forma natural, apropriada e adequada do romance, pode ser a de um saco, de uma cesta. Um livro carrega palavras. As palavras guardam coisas. Transportam significados. Um romance é um frasco medicinal, que mantém as coisas numa relação particular e poderosa entre si e connosco. Uma das relações entre elementos de um romance pode muito bem ser o conflito, mas a redução da narrativa ao conflito é absurda.”
Ursula K. Le Guin, A ficção como cesta: uma teoria.
12 de dezembro de 2023
“E a visão longínqua do centro que mal se vê, e a visão que as clareiras do bosque oferecem, parecem prometer, mais que uma visão nova, um meio de visibilidade onde a imagem seja real e o pensamento e o sentir se identifiquem sem ser à custa de se perderem um no outro, ou de se anularem.”
María Zambrano, Clareiras do Bosque.
6 de dezembro de 2023
3 de dezembro de 2023
Acabo de ver o início de um vídeo no Terreiro do Paço onde uma multidão se reuniu ontem ao fim da tarde para ver acender luzes numa árvore de Natal gigantesca que lá construíram. Também houve fogo de artifício. Vi as pessoas, eram de todas as idades, estavam jovens famílias com bebés ao colo, carrinhos de bebé ao lado e crianças pela mão, mas também adolescentes com pouca roupa colada aos corpos magros, pessoas de cabelo branco, grupos relativamente grandes de adultos numa festa animada à espera das luzes, a conversar, a dar saltos, a dançar, provavelmente para ajudar a espantar o frio. Vi este vídeo com a mesma perplexidade com que vejo vídeos de crimes de guerra. O que estão aquelas pessoas a fazer? O que significa tudo isto? O que esperam? Porque se reúnem milhares de estranhos numa praça para ver luzes? Terão motivações religiosas? Haverá outro pretexto a atraí-las de que não esteja a par, estão a distribuir dinheiro, a oferecer casas, brinquedos? Não bastava a vida lenta e isolada que levo, fazendo e evitando os mesmos caminhos, numa frugalidade extrema. Sinto-me completamente alienada. No fundo, se for a ver, talvez as inveje. Talvez estejam mais vivas do que eu por estarem juntas. Uma conversa no Facebook leva-me por estes dias a inquirir sobre as minhas razões para aquilo que defini, com um inesperado excesso de convicção, ser uma falta de vontade de escrever sobre um filme, e me levou a perceber que não se tratava de uma falta. Acontece-me isto muitas vezes, ter uma forte convicção sem que saiba porquê, sem procurar saber porquê, como se a determinação bastasse para me dispensar da sua necessidade ou da sua irrelevância. Não questionar a nossa determinação, ainda que forte, sobretudo se forte, torná-la-á cega? Seremos apenas tacanhos quando insistimos no dogma das nossas reflexões? De que apaziguamento irei à procura na resposta? É o mais difícil, descobrir a exata morada do medo. Abomino o consolo das respostas apaziguadoras, a abjeta mentira de não nos vermos pelo que somos que usamos impunemente para cometer atrocidades ou sacrifícios, e para nos refugiarmos em modos de vida insensatos movidos pela busca de poder. Mas também sei que há coisas que prefiro não ver. Quero romper o coração do outro lado, mas prefiro não saber como é que isto afeta quem o lê, por exemplo, e morrer mal o publique. Prefiro a invisibilidade à exposição, na qual arriscamos ser atacados ou louvados. Um amigo instigava-me a contrariar essa tendência, a resistir-lhe contra mim, e aconselhava-me a publicar a ligação aos textos em todas as redes sociais que estivesse a usar. «Perdido por cem, perdido por mil», pensava, e ouvia-o. Depois sentia uma alegria enorme quando alguém publicava um texto, me escrevia, me enviava alguma coisa a propósito. Contrariava-me, reconhecendo o equívoco da predisposição em esconder o pouco que tenho de valor na esperança que o distanciamento, ainda que sustentado pelo temor ou pela ousadia, o preserve. As imagens desse filme mostram-me uma coisa que sempre desejei e nunca tive e não quero adulterar ou desperdiçar, não quero deixar de a ver. Num tempo em que tudo o que dizemos tem a aparência de uma defesa hostil, corria o risco de cair na mediocridade do individual, de fazer ficção para o camuflar ou pior, corria o risco de ser arguta, de nomear, como os críticos. A intenção condena a narrativa, se procuro alguma coisa quando escrevo é ser totalmente negligente. Não consegui sequer chegar perto. Que posso dizer sobre o silêncio que não o estrague? Tudo me parece inadequado, como se a inaptidão estivesse do lado do próprio dizer e a coincidência com as imagens fosse impossível. Prefiro soçobrar sob o peso da imanência. É uma teimosia cega, claro, é absurdo. Não tem sentido, estou alienada. Tudo verdade. As coisas mais importantes que acontecem na vida não são vividas em silêncio, mas precisamente quando o quebramos, e nunca é cedo demais. Quando chegamos ao jardim e está sol, parece que vai durar.
2 de dezembro de 2023
Não conseguiria nunca dizer nada sobre a minha mãe:
como ela repetia, vais arrepender-te um dia,
quando já cá não estiver, e como eu não acreditava
nem no “não estiver” nem no “já não”,
como gostava de a observar quando lia os grandes êxitos,
começando sempre pelo último capítulo,
como na cozinha, convencida de que não era
lugar para ela, fazia o café dominical
ou, pior ainda, filetes de bacalhau,
como estudava o espelho enquanto esperava os convidados,
fazendo a cara que melhor a impedia
de se ver como era (nisto
e em mais umas tantas fraquezas saio a ela),
como falava demais sobre coisas
que não eram o seu forte e como eu estupidamente
a arreliava, por exemplo, quando
se comparava a Beethoven ao ficar surda
e eu dizia, cruelmente, mas sabes ele
era talentoso, como perdoava tudo,
como eu recordo isso e como, de Houston, fui de avião
ao seu funeral, fui incapaz de dizer uma palavra
e ainda hoje não consigo.
como ela repetia, vais arrepender-te um dia,
quando já cá não estiver, e como eu não acreditava
nem no “não estiver” nem no “já não”,
como gostava de a observar quando lia os grandes êxitos,
começando sempre pelo último capítulo,
como na cozinha, convencida de que não era
lugar para ela, fazia o café dominical
ou, pior ainda, filetes de bacalhau,
como estudava o espelho enquanto esperava os convidados,
fazendo a cara que melhor a impedia
de se ver como era (nisto
e em mais umas tantas fraquezas saio a ela),
como falava demais sobre coisas
que não eram o seu forte e como eu estupidamente
a arreliava, por exemplo, quando
se comparava a Beethoven ao ficar surda
e eu dizia, cruelmente, mas sabes ele
era talentoso, como perdoava tudo,
como eu recordo isso e como, de Houston, fui de avião
ao seu funeral, fui incapaz de dizer uma palavra
e ainda hoje não consigo.
Adam Zagajewski
30 de novembro de 2023
“Se quisesse, apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas; uma vítima da mitologia do fogo e da água, das razões misteriosas da morte e transfiguração, ou do princípio de que aquilo que está em baixo é igual ao que está em cima, das práticas sexuais angélicas no fundo do inferno; vítima, enfim, da oposição ao mundo e do radicalismo com que alguém se empenha na utopia do ouro onde gloriosamente queima os dedos. Poderia dizer: sou um leproso!”
Herberto Helder, Photomaton & Vox.
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