25 de janeiro de 2015
23 de janeiro de 2015
às vezes conto uma história só para poder dizer o nome de uma personagem. a história é relativa. o que acontece, tanto acontece depois de uma esquina como acontece do lado de lá de uma porta e dentro de um vagão de comboio. o que existe é esse nome, com o seu tempo, o seu lugar, a sua pontuação e o seu corpo próprios.
22 de janeiro de 2015
19 de janeiro de 2015
a primeira coisa em que repara quando entra é num ramo de flores secas ao fundo da sala. estão dentro de um jarro de vidro opalino azul, em cima do parapeito da janela maior, e há pétalas perto da base e no chão. apesar de secas, mantêm uma cor viva, sobretudo nas extremidades. conversam animados quando entram, estão a despir os casacos, compridos, molhados, a pousar os guarda-chuvas, as malas, os livros. ela é morena, o cabelo fino está apanhado na nuca, usa-o quase sempre assim. tem um pequeno gancho de lado, um gancho invisível que usa como adorno, como outra mulher teria usado um laço vermelho ou um gancho de marfim. estou a vê-la, poderia desenhar cada detalhe do seu rosto, do seu corpo, mas não quero descrevê-la para além disto. tem os lábios rosa escuro. está a falar. a ele não o vejo. sei que está ali, atrás dela. também despiu o casaco, segura-o ainda no braço esquerdo, que está dobrado. está de costas, não a viu olhar para o jarro, embora ela o temesse e por isso olhasse furtivamente para ele, para perceber se tinha sido vista a ver. está curvado para o chão a arrumar qualquer coisa parece-me. ela vê o jarro e baixa o olhar como se, sem intenção, tivesse visto uma cena muito íntima, como se qualquer coisa muito íntima tivesse sido exposta ao seu olhar. não tem a certeza que ele não tenha reparado. baixa os olhos, não consegue voltar a olhar para elas quando entram na sala, está tensa. coloca-se de lado, os braços cruzados, a atenção atraída para as flores secas. agora começo a vê-lo. ela pensa naquilo e quase não o ouve. pensa em porque teria ido ali hoje. pensa que nada há de mais natural do que ter encontrado alguma coisa da intimidade da pessoa que habita aquele apartamento. ¿que outro sítio para a intimidade estar exposta? ¿porque sente pudor perante um ramo de flores secas e não perante a meia suja caída junto do pé do sofá, essa sem qualquer relevância para ela? ¿o que poderia haver de íntimo — estranha escolha de palavra — num ramo de flores a secar, um ramo porventura esquecido à beira de uma janela? melhor: ¿o que é que na intimidade lhe provocava pudor? ali estava, entre as coisas dele, transtornada a pensar nas flores e a olhar para ele, que fazia mil coisas enquanto conversavam. ainda não se tinham sequer sentado. ele falará do ramo de flores. mais tarde, ao jantar. é um homem bastante alto, pouco mais novo do que ela. tem uma voz surpreendentemente grave. quando sorri olha sempre para ela. de resto quase nunca. fala muito, faz coisas enquanto fala, muitas delas coisas que nunca acabam e não têm significado, é falsamente irrequieto. depois do jantar, apagará a luz da sala, dirigir-se-á a ela na penumbra.
18 de janeiro de 2015
17 de janeiro de 2015
Memories,
they say my images are my memories. No no no! These are not memories:
this is all real what you see — every image, every detail, everything is
real, everything is real and it’s not a memory, it has nothing to do
with my memories anymore. Memories are gone, but the images are here,
and they are real! What you see, every second of what you see, here, is
real. Is real. Right there in front of your eyes, what you see, it’s
real. There, in front of you. Yes, from that screen, it’s all real.
Jonas Mekas, Out-Takes from the Life of a Happy Man, 2012.
Jonas Mekas, Out-Takes from the Life of a Happy Man, 2012.
15 de janeiro de 2015
não sei se é possível fazer sempre a mesma escolha. ¿que significado teria perseverar sempre na mesma renúncia? descubro que há coisas imunes à ação do tempo e de certa forma, porventura por tão raras, isso choca-me. um choque lento, indolente, com o insidioso poder de ocultar a sua própria violência. ¿que sentido, se em algum momento o houve, tem então a fuga? e no entanto não existem dois caminhos. nunca há tempo, nunca se sabe o suficiente. nada nos protege de uma vida não vivida. ¿mas quantas coisas intensamente vividas não passam de fantasias que o tempo apaga indelevelmente? um dia recordamo-las, em certos vislumbres que nos ocorrem por acaso, como por acaso se encontra um livro que desconhecíamos ou um amigo antigo na rua e, de tão distantes, é como se nem sequer tivessem sido vividas. estranhamente distantes, ainda assim apenas distantes. entre as primeiras e as segundas coisas, existem estoutras, para as quais nunca estamos preparados e que não pedem que nos preparemos. incólumes a tudo o resto, o resto perde força perante elas e não faz mais do que mostrar-se volúvel e transitório, retribuindo permanentemente o seu consumo corrosivo. quando estas coisas chegam — se um dia estas coisas chegam —, não perguntam nada. e nós talvez nos queiramos defender da oferta pura, podem assustar-nos. mas o vestígio do nosso medo não as afeta. onde quer que estejamos, elas irrompem e são claras, sem estratégias. não há nelas nada da ordem da revelação mas a sua mera sugestão toca o coração de um tempo constante, que não passa.
7 de janeiro de 2015
fascinou-me em adolescente que a formação das cidades portuguesas estivesse normalmente associada a uma lenda. nada mais expectável para quem vive num mundo de fantasia, onde nenhuma dúvida atormenta. para mim, cada uma dessas lendas retinha uma verdade arquetípica sobre os nativos. parti pois do princípio que também a cidade onde vivia (na altura, a vila) teria uma e, desejosa de me rever no modelo que me correspondia, procurei saber qual era. a resposta deixou-me em choque.
em 1372, altura em que os castelhanos tinham tomado a vila, exigindo a rendição do castelo em troca, Gil Paes era alcaide-mor do castelo de Torres Novas. os inimigos tinham aprisionado um dos seus filhos (de quem nunca descobri o nome), na altura com 18 anos, devido ao insucesso de uma surtida noturna às forças castelhanas que sitiavam o castelo, e ameaçavam matá-lo. Gil Paes terá então dito às tropas sitiantes que o assassem e comessem, mas que Deus não permitisse que fosse traidor do seu Rei e Senhor. após vários dias de cerco, perante a inflexível recusa em entregar as chaves da fortificação, o magistrado assistiu por fim à execução do filho às portas do castelo, primeiro enforcado e depois pendurado pelas pernas. em seguida, comandados por Henrique II de Trastâmara, os castelhanos levantaram o cerco e abandonaram a praça.
durante anos pedi que me repetissem a história, como as crianças pedem para repetir a fábula do escorpião e da tartaruga vezes sem conta. quis saber até que ponto se tratava de facto de uma lenda ou se tinha alguma validade histórica, descobrindo assim que existia na Torre do Tombo em Lisboa, um documento assinado pela mão de Fernão Lopes com a descrição do episódio. a informação que encontrei à altura na biblioteca de Torres Novas, contudo, não abundava sobre a matéria, limitando-se o mais das vezes a reproduzir invariavelmente os principais elementos da história, com poucos detalhes, na maioria das vezes omitindo até nomes ou datas. passou a intrigar-me que lhe chamassem lenda e achei que, sem dúvida por se tratar de um episódio de tamanha violência, as pessoas preferiram imaginar que não tivesse de facto acontecido, inscrevendo o engano na linguagem, depois perpetuado através de gerações. e de facto, quando me contavam a história, quantas vezes os castelhanos não foram mouros (ou outras incorreções, como se comprova na página três desta edição do Jornal Almonda).
o enigma vincou-se. coeso e intangível, eu não podia ver-me através dele. uma natureza insubmissa não chegava para explicar, ou antes, para justificar a ressonância da alegoria, até porque, se por um lado havia uma declarada insubmissão ao inimigo, por outro havia devoção ao soberano. perante a coincidência perfeita entre o vínculo parental e a mais pura frieza, o pensamento colapsava. pelo menos o meu. que o assem e o comam, teria dito o alcaide. imaginei a cumplicidade da praça, os olhares trocados entre castelhanos e portugueses, entre Henrique e Gil, entre o pai e o filho, o eco das vozes, o rumor da movimentação das tropas, os vários dias de batalhas desde que levantaram o cerco, talvez chovesse, talvez o sol brilhasse implacavelmente, haveria pó, muito pó ou muita lama, as armaduras pesavam, cavalos relinchavam, pássaros indiferentes chilreavam, o eco, dos pensamentos, dos olhares, um rapaz de 18 anos feito prisioneiro pelo inimigo em sua própria casa, de quem sequer sabemos se chora, se grita, se fala, ninguém para o denunciar à posteridade. terá alguém escrito o seu nome?
Gil Paes preconiza um tipo de resistência extremo. aparentemente indiferente durante o cerco, cerca de um ano mais tarde terá sido necessário convencer D. Fernando I a colocar a sua filha D. Isabel de Portugal sob a custódia de Gil Paes, antes desta casar com Afonso, conde de Noronha e Gijon. parece que o tempo terá auxiliado na instauração de uma manobra política de indelével firmeza: a barbárie converte-se em lealdade e por sua vez a lealdade em lenda. a abjeção reveste-se de nobreza e entra para a História. enquanto eu crescia, ergueram na praça principal da cidade um grande painel de azulejos que retrata o episódio, onde um corpo jaz no centro com grilhões nos tornozelos. no verão passado, a feira medieval que ali se organiza teve como tema o sacrifício do herói. e quem é o herói? não a criança, não o filho, o inocente, mas Gil Paes. o mártir.
conheci a palavra agelasta através da gravação de uma conferência que Ricardo Araújo Pereira deu na capela do Rato em Lisboa. trata-se de um dos neologismos de François Rabelais que tem origem grega e que em qualquer dicionário se refere «àquele ou ao que (este que é curioso) não ri». Rabelais terá encontrado a palavra no mito de Deméter, deusa da fertilidade, que perde Perséfone, sua única filha com Zeus, porque Hades, o senhor do mundo dos mortos, a rapta. Deméter está à sua procura quando, a determinado momento, percebe. nesse momento, está sentada sobre uma pedra chamada agelasta. uma rápida busca no Google levou-me a Milan Kundera:
Não existe paz possível entre o romancista e o agelasta. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastas estão convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem se torna indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território onde ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas onde todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin. (...). O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor.
Kundera explica ainda que Rabelais tinha pavor dos agelastas. detestava-os e temia-os. dizia ele que os agelastas eram tão atrozes consigo, que tinha chegado a pensar em deixar de escrever para sempre. o que é temido por Rabelais? não a sua incapacidade de rir, pois em última análise essa só a eles lhes diz respeito, mas sim a capacidade de fazerem um escritor deixar de escrever. o que é detestado por Rabelais? a capacidade que o agelasta tem de fazer propagar a sombra ao coração daquele que ri, torna-o por sua vez incapaz de fazer o agelasta rir. tudo se passa como se esta incapacidade lhe transmitisse uma força sobre-humana. por isso Rabelais os define como pertencentes a dois planos distintos da existência, mais exatamente, o da possibilidade e o da sua carência, o da empatia e o da irascibilidade ou, como Kundera dirá, o plano da verdade e o plano da imaginação. entre um e outro (a acreditarmos no romancista), só há espaço para a inquietação e para a hostilidade. posso sempre estar errada, mas Gil Paes parece ser um destes agelastas. dele, e do seu ato de lealdade, se ri Deus.
em 1372, altura em que os castelhanos tinham tomado a vila, exigindo a rendição do castelo em troca, Gil Paes era alcaide-mor do castelo de Torres Novas. os inimigos tinham aprisionado um dos seus filhos (de quem nunca descobri o nome), na altura com 18 anos, devido ao insucesso de uma surtida noturna às forças castelhanas que sitiavam o castelo, e ameaçavam matá-lo. Gil Paes terá então dito às tropas sitiantes que o assassem e comessem, mas que Deus não permitisse que fosse traidor do seu Rei e Senhor. após vários dias de cerco, perante a inflexível recusa em entregar as chaves da fortificação, o magistrado assistiu por fim à execução do filho às portas do castelo, primeiro enforcado e depois pendurado pelas pernas. em seguida, comandados por Henrique II de Trastâmara, os castelhanos levantaram o cerco e abandonaram a praça.
durante anos pedi que me repetissem a história, como as crianças pedem para repetir a fábula do escorpião e da tartaruga vezes sem conta. quis saber até que ponto se tratava de facto de uma lenda ou se tinha alguma validade histórica, descobrindo assim que existia na Torre do Tombo em Lisboa, um documento assinado pela mão de Fernão Lopes com a descrição do episódio. a informação que encontrei à altura na biblioteca de Torres Novas, contudo, não abundava sobre a matéria, limitando-se o mais das vezes a reproduzir invariavelmente os principais elementos da história, com poucos detalhes, na maioria das vezes omitindo até nomes ou datas. passou a intrigar-me que lhe chamassem lenda e achei que, sem dúvida por se tratar de um episódio de tamanha violência, as pessoas preferiram imaginar que não tivesse de facto acontecido, inscrevendo o engano na linguagem, depois perpetuado através de gerações. e de facto, quando me contavam a história, quantas vezes os castelhanos não foram mouros (ou outras incorreções, como se comprova na página três desta edição do Jornal Almonda).
o enigma vincou-se. coeso e intangível, eu não podia ver-me através dele. uma natureza insubmissa não chegava para explicar, ou antes, para justificar a ressonância da alegoria, até porque, se por um lado havia uma declarada insubmissão ao inimigo, por outro havia devoção ao soberano. perante a coincidência perfeita entre o vínculo parental e a mais pura frieza, o pensamento colapsava. pelo menos o meu. que o assem e o comam, teria dito o alcaide. imaginei a cumplicidade da praça, os olhares trocados entre castelhanos e portugueses, entre Henrique e Gil, entre o pai e o filho, o eco das vozes, o rumor da movimentação das tropas, os vários dias de batalhas desde que levantaram o cerco, talvez chovesse, talvez o sol brilhasse implacavelmente, haveria pó, muito pó ou muita lama, as armaduras pesavam, cavalos relinchavam, pássaros indiferentes chilreavam, o eco, dos pensamentos, dos olhares, um rapaz de 18 anos feito prisioneiro pelo inimigo em sua própria casa, de quem sequer sabemos se chora, se grita, se fala, ninguém para o denunciar à posteridade. terá alguém escrito o seu nome?
Gil Paes preconiza um tipo de resistência extremo. aparentemente indiferente durante o cerco, cerca de um ano mais tarde terá sido necessário convencer D. Fernando I a colocar a sua filha D. Isabel de Portugal sob a custódia de Gil Paes, antes desta casar com Afonso, conde de Noronha e Gijon. parece que o tempo terá auxiliado na instauração de uma manobra política de indelével firmeza: a barbárie converte-se em lealdade e por sua vez a lealdade em lenda. a abjeção reveste-se de nobreza e entra para a História. enquanto eu crescia, ergueram na praça principal da cidade um grande painel de azulejos que retrata o episódio, onde um corpo jaz no centro com grilhões nos tornozelos. no verão passado, a feira medieval que ali se organiza teve como tema o sacrifício do herói. e quem é o herói? não a criança, não o filho, o inocente, mas Gil Paes. o mártir.
conheci a palavra agelasta através da gravação de uma conferência que Ricardo Araújo Pereira deu na capela do Rato em Lisboa. trata-se de um dos neologismos de François Rabelais que tem origem grega e que em qualquer dicionário se refere «àquele ou ao que (este que é curioso) não ri». Rabelais terá encontrado a palavra no mito de Deméter, deusa da fertilidade, que perde Perséfone, sua única filha com Zeus, porque Hades, o senhor do mundo dos mortos, a rapta. Deméter está à sua procura quando, a determinado momento, percebe. nesse momento, está sentada sobre uma pedra chamada agelasta. uma rápida busca no Google levou-me a Milan Kundera:
Não existe paz possível entre o romancista e o agelasta. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastas estão convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem se torna indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território onde ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas onde todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin. (...). O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor.
Kundera explica ainda que Rabelais tinha pavor dos agelastas. detestava-os e temia-os. dizia ele que os agelastas eram tão atrozes consigo, que tinha chegado a pensar em deixar de escrever para sempre. o que é temido por Rabelais? não a sua incapacidade de rir, pois em última análise essa só a eles lhes diz respeito, mas sim a capacidade de fazerem um escritor deixar de escrever. o que é detestado por Rabelais? a capacidade que o agelasta tem de fazer propagar a sombra ao coração daquele que ri, torna-o por sua vez incapaz de fazer o agelasta rir. tudo se passa como se esta incapacidade lhe transmitisse uma força sobre-humana. por isso Rabelais os define como pertencentes a dois planos distintos da existência, mais exatamente, o da possibilidade e o da sua carência, o da empatia e o da irascibilidade ou, como Kundera dirá, o plano da verdade e o plano da imaginação. entre um e outro (a acreditarmos no romancista), só há espaço para a inquietação e para a hostilidade. posso sempre estar errada, mas Gil Paes parece ser um destes agelastas. dele, e do seu ato de lealdade, se ri Deus.
6 de janeiro de 2015
5 de janeiro de 2015
3 de janeiro de 2015
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