25 de novembro de 2025

‘Suddenly I heard Virginia’s voice calling to me from the sitting room window: “Hitler is making a speech.” I shouted back, “I shan’t come, I’m planting iris and they will be flowering long after he is dead”.’

Leonard Woolf, Downhill All The Way. 

20 de novembro de 2025

E então aconteceu qualquer coisa.
O que aconteceu foi isto.
Toda a gente começou a sentir a falta de qualquer coisa e não era de um beijo, aposto a minha vida em como não era de um beijo de que toda a gente começou a sentir a falta. E daí talvez fosse.
De qualquer forma, aconteceu alguma coisa e toda a gente ficou muito excitada por ser alguma coisa e por ter acontecido. Aconteceu lentamente e depois foi acontecendo e a seguir aconteceu um pouco mais depressa e continuou a acontecer e aconteceu e aconteceu na verdade aconteceu e depois tinha acontecido e foi acontecendo e por fim lá estava o acontecimento e se estava é porque estava, mas agora já ninguém se importava.
E tudo isto parece estranho, mas é absolutamente verdade.

Gertrude Stein, Ida.

13 de novembro de 2025

“É preciso arrancar alegria ao futuro.”

Maiakovski

3 de novembro de 2025

Fez ontem trinta anos que desembarquei em Lisboa. Os Portishead tinham lançado o Dummy em agosto e eu ouvia uma cassete gravada da rádio com as músicas que tinha conseguido apanhar. Foi uma das coisas que trouxe comigo. Vim para Lisboa no dia 2 de novembro de 1994 e não me lembro de outro desejo tão forte na minha vida. Um desejo sofrido. Ao longo de anos. Sempre me vi a viver aqui. Via-me aqui porque me sentia daqui. No dia em que o Chiado ardeu, eu tinha doze anos, a minha avó chamou-me aos gritos para ir ver o incêndio na televisão. Estava um alvoroço lá em casa. O meu avô era alfaiate e ele e a minha avó tinham o hábito de ir aos Grandella e aos Armazéns do Chiado comprar atoalhados, fazendas, sedas, lãs, e abastecerem-se nos retroseiros. Era aí que o meu avô comprava os chapéus de feltro que usava todos os dias. Nesse dia não almocei. Fiquei à frente da televisão a ver as chamas consumirem um prédio que eu não conhecia e a constatar que era aquilo que acontecia com o tempo, ou no tempo, é tudo a mesma coisa: as coisas mudavam. Mesmo quando eu queria que esperassem por mim. No Colégio, os professores penduraram papel de cenário ao fundo da sala para eu desenhar. Disseram que era assim que me mantinham atenta. Eu ficava ali a desenhar quanto quisesse, e quando queria apontar alguma coisa no caderno ia para a secretária. A professora de Matemática era a única que não me deixava, mas como nunca consegui ficar atenta quando exigem a minha atenção, não aprendi nada nessas aulas. Nas aulas de Geografia não era preciso desenhar: a professora fazia desenhos no quadro com giz de muitas cores, de vulcões, das camadas da Terra, de rios subterrâneos. Mais tarde, na secundária, o meu professor de Filosofia via-me a olhar para o horizonte sem perder nada do que ele dizia e chamava-me nefelibata. Estava a olhar para o limite da estrada que levava à autoestrada que levava a Lisboa. Dizer estas coisas parece-me hoje o essencial do que tenho para dizer, mas ainda não sei como se dizem coisas tão simples.
 
Fez ontem trinta anos andava neste sentimento de incómodo espanto com as coisas novas: o meu nome escrito numa pauta de papel verde claro, uma mala de pele fechada a fivelas em cima da cama, a minha irmã e a minha mãe paradas no tapete da entrada a tentarem não chorar. Julgava que a história com a cidade onde nasci tinha acabado nesse dia e no dia a seguir comecei a escrever sobre ela. Escrevi meia-dúzia de frases desengonçadas apenas porque era a primeira vez que podia fazê-lo sem medo de que alguém viesse a abrir o caderno. 

Em minha casa há uma moldura que abre e fecha, em forma de livro, lacada a preto com uma gravura japonesa. Está sempre fechada, equilibrada em cima de uma estante. É o objeto mais bonito que tenho em casa. Ramos dourados e uma ave refulgem no fundo negro brilhante. Estando meio aberta, meio fechada, é misteriosa, estende o enigma ao espaço. A sala toda olha para ela. No entanto, para além de mim, nunca ninguém lhe tocou. Dentro dessa moldura estão duas fotografias amareladas. As duas são fotografias do meu pai. Uma delas, anterior ao ano em que nasci, é da avenida que corta a vila contígua ao jardim e ao rio. Vê-se o passeio largo, os plátanos, uma luz outonal entre os ramos. A outra é uma fotografia minha, com cerca de um ano, desdentada, a dar uma gargalhada. Passado o susto, as pessoas costumam dizer em coro que gostam da minha gargalhada, que é contagiante. Mas é raro encontrar quem se ria comigo. Um pouco da mesma maneira, mesmo que alguém abra a moldura e veja essas fotografias, ainda que me embarace a nudez, não vai perceber nada. Diriam, «esta fotografia é bonita, quase a desaparecer». Diriam, «que bela gargalhada». Ou «que gira eras». Do ponto de vista simbólico, porém, estas duas fotografias contêm praticamente tudo o que poderia ser dito sobre mim, e a moldura está ali na estante a boiar sobre estratos de tempo a acumular-se até que eu o decida fazer. 

Quarenta e oito horas antes de chegar a Lisboa fiquei a saber que tinha conseguido entrar na faculdade. Era a segunda chamada. Estava num estado de fragilidade tão brutal que, quando cheguei a Santarém para ver os resultados, mal dei um passo após o portão da escola onde as pautas estavam afixadas, parei e senti-me tentada a dar uma desculpa, fingir um ataque de loucura adolescente, um desmaio ou outra coisa qualquer só para poder voltar para trás, e entrar no carro sem ter de mais uma vez consultar pautas onde o meu nome podia não estar. Tinha falhado a primeira chamada por 0,01 pontos percentuais, pontuação que fez de mim a primeira pessoa a não entrar na faculdade que tinha escolhido, apesar da média de quase 90%. O meu pai, que caminha sempre uns passos à frente de toda a gente, olhou brevemente para mim com o cigarro na boca. Para que não se apercebesse do meu pavor — a inutilidade do nosso pavor é a sinalética mais eficaz que existe —, avancei relutantemente e de cabeça baixa. Misturámo-nos com a pequena multidão de cabeças que se esticavam para consultar as pautas. Foi ele a encontrar o meu nome. «Entraste. Filosofia», disse, com um sorriso contido, mas expressivo. Não acreditei, e, apesar de estar ao lado dele, não conseguia encontrar o meu nome na pauta. Teve de ser ele a apontar-mo e a mostrar-me. Reli várias vezes. Era o meu nome. O meu nome completo, com o curso e o nome da faculdade à frente. Ainda assim, inventei uma desculpa sobre uma pergunta acerca da matrícula para ir à secretaria confirmar que não havia nenhum erro. A mulher atrás do balcão confirmou. 

O primeiro curso que escolhi era para escrever. Com a média alta, nunca me ocorreu pensar numa alternativa e fiquei tão deprimida a seguir que, no dia em que tive de me inscrever na segunda chamada, não sabia que curso escolher. Também era indiferente. Na sala de candidaturas, onde entrei pela segunda vez já a sentir-me uma veterana — uma sala de aula num contentor cheio de luz natural onde uma centena de papéis verde claro, que adolescentes excitados preenchiam com os pais, tinha explodido em cima das mesas —, peguei desolada num dossiê cheio de micas que anunciava na capa ter o registo de todos os cursos de todas as faculdades do país. Encostei-me a uma mesa e comecei a passar as páginas plastificadas sem as ler. Pensei em não me candidatar. Pensei em abrir ao calhas e apontar. Pensei em escolher o curso com a média mais baixa em humanidades, em Lisboa. Pensei que não valia a pena. Sentada à mesa, a cerca de um metro numa diagonal para trás de mim, estava uma rapariga a passar as páginas muito mais lentamente do que eu. Em pé à frente dela, do outro lado da mesa, com uma voz calma e doce, a mãe disse: «Filosofia, o curso com mais livros para ler.» Fechei o dossiê, levantei-me, puxei uma cadeira, peguei num papel verde, e inscrevi no formulário todos os cursos de Filosofia que havia em Lisboa. A última linha ficou vazia e preenchi ao calhas, com Antropologia. Não era importante. Ia entrar na primeira opção. Não li mais nada sobre o curso nem antes nem depois de sair da escola. Só duas coisas me interessavam e já as sabia: que me ia embora e que, se ia poder ler muitos livros, havia de arranjar maneira de escrever. 

Viemos para casa para dar a notícia à minha mãe. No dia a seguir, Dia de Finados, fiz uma mala à pressa para mudar a vida, despedi-me da minha avó e dos meus tios, e fui para a cama num tumulto emocional difícil de qualificar, onde a emoção mais perturbadora era o receio de que alguma surpresa viesse mais uma vez deitar os meus planos por terra. Acordei com a minha mãe atarefada na cozinha a encher tupperwares com refeições acabadas de fazer. Falei com o meu pai ao telefone, que me anunciou ter alugado um quarto numa residência de estudantes para raparigas. Não me deu mais pormenores e eu também não perguntei. Partíamos dali a duas horas. «De raparigas», pensei. «É quase enternecedor.» Terminei de fazer a mala. Arrumei o meu quarto. Minutos antes de o meu pai chegar enfiei os diários dentro de um saco de plástico preto e desci a escada para os ir deixar ao lixo. Quando voltei a subir as escadas tinha já a certeza de que estava de partida. Despedi-me da minha mãe com um abraço, um nó seco na garganta e uma ira urdida em silêncio. A última pessoa de quem me despedi foi a minha irmã. Só nesse momento me apercebi, com os pés em cima do tapete da porta de entrada e o meu pai à espera lá em baixo no carro, que para me separar do resto também tinha de me separar dela. 

O céu estava negro quando saímos e branco quando entrámos em Lisboa. Subi as escadas de um prédio lúgubre com o meu pai e, minutos depois, num quarto onde havia duas camas, fiquei sozinha pela primeira vez. Foi a primeira vez que me senti livre. Pensei algum tempo no que ninguém tinha achado importante dizer-me até abrir a porta do quarto onde ia ficar e ver duas camas: ia partilhar o quarto com uma desconhecida. Pelo menos, ainda não tinha aparecido, e pude gozar plenamente aqueles primeiros momentos sozinha. Devia ver o resto da casa? Tentar encontrar alguém? Subitamente, percebi que não tinha de ter medo de nada: nenhuma pessoa que pudesse entrar por aquela porta seria uma pessoa conhecida. A liberdade afinal era uma quietude reconfortante. E essa quietude, que cobria o quarto, era um dilúvio de alegria. 

Deixei a mala por desfazer em cima da cama e saí para a rua. Fui ver o trânsito. Queria ser atravessada pelo barulho do trânsito, pela pestilência a sair dos escapes, pelas pessoas a correr, de preferência aos encontrões, por gestos, por uma exuberância de olhares, por velocidade, por uma intensidade qualquer gémea de uma desordem interior obscura. Desci as escadas do prédio na penumbra e virei-me no sentido da luz, para o cimo da ladeira, sem fazer a mínima ideia de onde estava. Dei dois passos nessa direção e o deus grego da praia da Nazaré apareceu-me à frente com os braços abertos a dizer o meu nome.

Durante uns segundos, ou minutos, não me perguntem, o deus grego falou comigo a uma velocidade supersónica. Com o seu longo cabelo louro e a pele queimada dos surfistas, fez-me perguntas, falou dele, da família, as mãos tocavam-me nos braços. Sorria tanto que tive várias vezes vontade de olhar para trás a confirmar se era comigo que estava a falar. Era a primeira vez que falávamos. A primeira vez depois de durante anos ter partilhado com ele o mesmo areal, saídas à noite, canções à guitarra e muitas lágrimas a queimarem-me o rosto no carro no regresso a casa porque mais um ano tinha passado sem que tivesse conseguido falar com ele ou fazer-me notar. Fiquei imóvel. Não me lembro de ter dito nada. «Ele está feliz por me encontrar. Ele veio ter comigo a correr. Ele sabe o meu nome. Ele é lindo e está a estudar Sociologia.» A tocar ligeiramente no meu braço direito para me pressionar a tomar a direção que ele queria tomar, convidou-me para tomar um café. Essa foi a primeira vez que levei um murro na cara, um murro que me deixou imediatamente no chão. No instante a seguir, tomei uma decisão com plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida. Olhei para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas e comecei a andar. Ainda tive tempo de ver uma sombra assustadora alastrar sobre o seu rosto. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar. 

É a primeira vez que conto esta história. Não a parte do deus grego que, com ocultações cirúrgicas, é a parte divertida deste dia e já animou muitos jantares. É a primeira vez, digo, que descrevo estes dias. E esperei trinta anos para escrever sobre isto. Venho há anos a alimentar esta data como um marco. Bem sei que me vão dizer que é ridículo, mas achei que era a distância a que estaria a salvo. Vivo aqui, em Lisboa, onde devia ter nascido, há trinta anos, depois de ter vivido dezoito na terra onde nasci. Já não me quero curar ou salvar de nada. Nem nada me pode ser devolvido, nem quero resgatar nada. Nem os cadernos. Às vezes, gostaria de me socorrer deles e tenho pena de não estarem aqui, de resto foi uma das razões por que os escrevi: para me lembrar dos detalhes. Precisamente o que me levou a deitá-los fora e continua a não me faltar. 
 
Madragoa, antigo lavadouro das francesinhas.