11 de abril de 2024

Mirror Drumming

Douceur de n’avoir rien à dire, droit de n’avoir rien à dire, puisque c’est la condition pour que se forme quelque chose de rare ou de rarefié qui mériterait um peut d’être dit.
 
Gilles Deleuze, «Les intercesseurs», Pourparlers 1972-1990.
 
Visando o limite do humano ou, talvez seja indispensável dizer, da humanidade naquilo que é humano, a referência no trabalho de João Biscainho ao silêncio e à linguagem, ao conhecimento e à consciência, à interpretação e à relação com os outros, como também, no extremo oposto, à distorção da identidade e à subversão, tem sido uma constante sem ser, contudo, objeto de uma separação ou de uma oposição entre um «nós» e um «eles». No seu trabalho como artista, mas também como curador, de forma muitas vezes provocatória, essas referências remetem a uma investigação fundamental sobre o corpo e sobre a arte onde as ideias de progresso, mecanismos de perceção e indução de estados mentais, assumem uma relevância particular. Demonstrando como corpo e consciência estão indelevelmente vinculados ao seu contexto social e tecnológico, bem como, desde o alvorar do século XX, a aceleração tecnológica tem vindo a marcar a evolução humana, encontramos no trabalho de Biscainho um permanente e inescapável confronto entre espaço interior e exterior.
 
Num exercício de correspondência notavelmente rigoroso entre os materiais utilizados e a matéria da obra, em Mirror Drumming Biscainho questiona a noção de limite. Limites sociais e humanos, limites éticos e tecnológicos, limites que dizem respeito a um todo e não apenas a uma parte. Nas paredes da Appleton estão fotografias da série Landscapes for a Free Field cujo reflexo treme, vibra e se distorce na superfície de instrumentos de percussão onde a pele foi trocada por uma película de espelho de alta definição. As vibrações são provocadas por um som, curtas frases de percussão previamente gravadas, tocadas por Marco Franco, são intercaladas por períodos aleatórios de silêncio. Nestas fotografias estão pormenores de interiores de algumas das câmaras anecóicas mais avançadas que existem atualmente, fabricadas na Califórnia, que Biscainho visitou e fotografou em 2014. Uma câmara anecóica, ou seja, uma câmara privada de ecos, é uma sala em cujo interior o reflexo de ondas sonoras e de ondas eletromagnéticas é anulado. Aqui, qualquer interferência é absorvida no embate com as paredes forradas com pirâmides de espuma e, assim, este espaço interior pode ser definido como um campo livre. Uma câmara anecóica é o simulacro de um espaço aberto com uma dimensão infinita. Ao lado das imagens onde vemos enquadramentos destas anecóicas, Biscainho instala vários painéis pintados com pigmentos pretos e grafeno que bloqueiam as radiofrequências e a emissão de ondas eletromagnéticas no espaço (proteção RF). De que está o artista a proteger-nos?
 
A exposição continua com This silence for a new society... (that makes me to go back in time): uma mandíbula de cobre parcialmente mergulhada em leite em cima de um plinto construído pelo artista. Tudo nesta peça, de uma beleza alucinante, me interroga. Sou levada a pensar sobre a caracterização deste silêncio. A manutenção do mundo — das relações, no sentido tanto de cuidado como de conservação — é feita através de um escrupuloso uso do silêncio. O que é silenciado tem poder na exata medida em que é formador de uma identidade e define a elasticidade de um vínculo. A linguagem mostra-se particularmente inadequada e ineficaz para dar conta daquilo que se desenvolve na sensibilidade individual e o silêncio acaba por ser a possibilidade que temos de fazer face à nossa incompletude e contradição constitutiva. São categorias como estas — a fissura, a imperfeição, o inconveniente — que nos situam na relação com os outros. Há coisas que, uma vez ditas, arruinariam uma relação. São também essas que nos permitem verificar as suas fundações. O silêncio é um processo interativo que responde ao comportamento de outros seres humanos. Como fizeram as pessoas escravizadas, pode ser a única forma de resposta e resistência ao opressor.
 
Todo o campo da atividade humana é investido pela linguagem. "Não há sociedade sem linguagem, tal como não há sociedade sem comunicação." (1) Uma condição: a fala é, na definição de Saussure, «um ato individual de vontade e inteligência». (2) A existência de discurso implica a participação ativa do sujeito, ou seja, o discurso é sempre intencional. É esta a razão principal para que a linguagem seja o terreno da psicanálise. Dominar a linguagem é dominar o homem e as classes dominantes souberam explorar a arte da oratória para consolidar a sua supremacia. Da mesma maneira, as classes subjugadas desenvolvem um sentido de união e de resistência através da linguagem que aperfeiçoam, afinando sinais em que é possível reconhecer a sua insubmissão ou a sua rendição. O modo de falar não é, por conseguinte, indiferente ao conteúdo da fala, pelo contrário, o modo de falar estrutura o conteúdo ideológico.
 
Mas ter uma ideia não é comunicar.
 
O homem moderno está imerso em signos, gestos e imagens. Mas as ideias não são necessariamente tornadas visíveis. O silêncio de que se fala em Mirror Drumming é uma relação entre o momento atual e o desenvolvimento de certos dispositivos tecnológicos. Com um ensaio clínico atualmente a aceitar participantes, desenvolvido por Elon Musk, o Neuralink (3) será instalado no cérebro e permitirá influenciar o seu funcionamento, nomeadamente emocional (induzir tristeza, prazer, etc.). A hipótese que vem trazer encontra-se na linha daquilo que tem vindo a ser implementado através da manipulação algorítmica e levará a que seja possível ler os pensamentos de um indivíduo sem que este produza som ou externalize qualquer tipo de pensamento. Criado pelo cientista informático Arnav Kapur, o Alter Ego (4) é simplesmente aplicado no queixo e faz a leitura em tempo real das vibrações emitidas pela mandíbula humana inferior quando pensamos em algo, sem verbalizar qualquer som. Trata-se de um dispositivo de leitura do pensamento através da leitura de micro vibrações traduzidas por algoritmo para a nossa linguagem escrita convencional.
 
O quadrado de cobre suspenso ao lado da mandíbula — um material altamente condutor que permite captar e transmitir sinais e energia —, é uma forma de ligação à terra frequentemente usada como dispositivo de segurança de descargas elétricas. Neste caso, ligado à mandíbula mergulhada na cama de leite, também ela feita em cobre, serve de antena que captura a atividade eletromagnética do cosmos (background noise). O quadrado de cobre não está aqui porque o artista pretenda traduzir o cosmos. Nas palavras do próprio, "o cosmos é esmagador". É antes esse não significado que é adicionado à tecnologia das vibrações fisiológicas e íntimas. No fundo, esta antena adaptada vai captar e transmitir ruído sobre a mandíbula em cobre, camuflando os sinais neurais periféricos que o nosso pensamento emite ao osso do maxilar, tornando assim impossível a sua leitura pelo algoritmo. Aquilo em que estamos a pensar deixa de poder ser lido. This silence for a new society... (that makes me to go back in time) é um objeto de intervenção política. João Biscainho criou um instrumento de resistência.
 
Se a subordinação ao momento é o Ás de trunfo da ética, a sua superação é o do poder. É com os interesses mais elementares da vida quotidiana que o poder joga e oportunamente instaura os seus mecanismos de controlo. Quem sabe domina. Quem acredita é dominado. E é também aqui que surge a fronteira: entre silêncio e linguagem, entre ato e potência, reside esta zona fechada, impenetrável à observação, à reflexão ou à teoria, pois a fronteira não é nem silêncio nem linguagem, nem consciente nem inconsciente. Que atos estão representados em Mirror Drumming? Os atos primitivos, que indicam a presença de certos ritos. Comunicar. Celebrar. A fome. É nesta relação entre a ideia e o ato invisível que a exprime, que se produz uma unidade e não uma distinção, uma simultaneidade de causa e efeito e não uma sucessão de ações e reações. É esta ausência da História que marca o posicionamento crítico dos trabalhos do artista.

Vista da exposição. Fotografia de Pedro Tropa, cortesia da Appleton.

(1) Julia Kristeva, História da Linguagem [Le language, cet inconnu], Edições 70, col. Signos, Lisboa, 1969, p. 18.
(2) Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Paris: Payot, 1949, 30–1.
(3) Neuralink: https://neuralink.com/
(4) Alter Ego: https://www.media.mit.edu/projects/alterego/overview/
 
Texto para folha de sala de Mirror Drumming, de João Biscainho, que esteve patente na Appleton, em Lisboa, de 8 de fevereiro a 7 de março de 2024. O catálogo da exposição, com o texto original, está prestes a publicar-se.

7 de abril de 2024

Ana Mendieta, Silueta en fuego (1975).