29 de fevereiro de 2024

"É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida." 

Marguerite Duras, Escrever (1993, três anos antes da sua morte).

20 de fevereiro de 2024

"«A minha filha», sussurrou Madame ao acompanhar-me ao elevador, «tentou queimar-me.» Disse-o com uma doçura tal, que parecia arrependimento. Abriu a porta do elevador. Lá dentro, um espelho e um banco. «Elle n'est pas responsable.»"

Fleur Jaeggy, Felizes anos de castigo.
[Trad. Ana Cláudia Santos]

12 de fevereiro de 2024

Escrevi vinte e oito páginas de uma carta. Parei a meio de uma frase, alarmada, como se a estranheza de ver de soslaio o número a um canto me tivesse despertado de uma alucinação. Tive a sensação de estar cega e voltar a ver, de ser puxada de um lugar insondável para a superfície, de ter esquecido a existência e de regressar a ela porque alguém estalou os dedos. Tenho o que se parece com um corpo, estou aqui, mas não foi este corpo que escreveu, escrevi como um animal mata, sem hesitação. Nem sequer compreendo como foi possível escrever tanto tão rapidamente, costumo demorar dias a preencher duas ou três páginas. Tenho a sensação assustadora de estar diante de uma massa impenetrável expelida num vómito e a certeza com que comecei, de haver um destinatário, desfaz-se como o desejo dissoluto depois do orgasmo: um repúdio cínico nega que alguma vez tenha existido.

11 de fevereiro de 2024