30 de janeiro de 2022

A minha mão de homem

 

E todos gritaremos
Viva a mão delicada
Da menina bem-criada
Que pratica a virtude.

Natalia Ginzburg, Léxico Familiar.



1.

Na abertura do terceiro episódio das Norton Lectures da Laurie Anderson, a cabeça e as mãos da artista emergem de um fundo negro. Logo depois, um outro par de mãos surge em transparência, ocupando quase todo o ecrã. Estão banhadas em sangue e, subitamente, são substituídas por uns cascos de animal.

Não me lembro do que ouvi, mas pensei que era a única pessoa no mundo capaz de compreender inteiramente o que estava a ver. Por associação, veio-me à cabeça a Primavera, uma litografia de Chagall onde um bode com uma mão direita e um casco esquerdo tenta segurar um violino ao mesmo tempo que tem uma pequena mulher sentada no ombro esquerdo. Com a boca entreaberta e o joelho esquerdo ligeiramente levantado, não se percebe se o bode está a tentar tocar o instrumento, se está apenas a segurá-lo no colo ou se acaba de o deixar cair, mas a assimetria entre a mão e o casco sugere que a transfiguração está a acontecer no preciso momento em que olhamos para ele.
Quando comecei a escrever, escrevia-se à mão. Durante mais de metade da minha vida, escrevi e desenhei através da força da mão. Não sei se por predisposição natural, se por fazer bastante força a escrever, formei calos na mão da direita muito pronunciados em dois dedos, dois dos três dedos que tocavam no lápis. A minha mão direita começou a desenvolver um músculo, como um atleta na ginástica. Já o crescimento da mão esquerda nunca foi perturbado.
Ao longo da minha infância observei, curiosa, como a minha mão direita crescia de forma desproporcional, mas achei que aquilo havia de parar. Que no futuro os meus dedos seriam longos, finos, graciosos, que seria temporário. Ao ver que o tempo passava e nada se alterava, comecei a sentir urgência em esconder as minhas mãos. Passei a enrolar os dedos agarrando com força o polegar. Ainda assim, o pulso, as costas e os nós dos dedos mantinham-se visíveis. Nunca deixava ver as pontas dos dedos onde os calos e as peles se formavam e, enroladas sobre si mesmas, as minhas mãos pareciam os cascos de um animal.
Quando usava manga comprida, escondia as mãos dentro das mangas segurando as pontas e os meus braços desembocavam numa bola. Se usava roupa com bolsos, punha as mãos nos bolsos. Também inventei uma maneira de cruzar os braços que me permitia esconder os dedos. Ao mesmo tempo, deixei de me ocupar com as mãos e passei a observar a formação de cutículas em torno das unhas, que deixava crescer demasiado, produzindo feridas que demoravam a sarar e cuja remoção era dolorosa. Não roas as peles dos dedos!, dizia a minha avó todos os dias, ao ver os meus dedos sangrar.
Constatei — muitas vezes, com desespero —, que é um desafio esconder as mãos. É quase impossível, a não ser que andemos sempre de luvas. À medida que multiplicava os estratagemas para esconder as minhas mãos, descobria que, na realidade, esconder as mãos atrai demasiado os olhares, acabando por resultar no oposto do objetivo.
Não sei quando é que a preocupação com as minhas mãos se tornou excessiva. Houve momentos em que não queria sair de casa para que ninguém as visse. Repetido de forma metódica, o hábito de enrolar os dedos tornou-se automático e uniformizou-se, diluindo-se no quotidiano.
Mas ainda que procurasse esquecê-las, a cada instante eu carregava o segredo das minhas mãos: tenho uma mão de homem e uma mão de mulher. A esquerda tem dedos finos e delicados, pele macia, leve, é bonita. A direita tem dedos grossos e tortuosidades, é crespa, pesada, compacta, como a mão de um agricultor.



2.

É um dos sonhos que recordo com mais vivacidade: as minhas mãos estão a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, que me transmite uma sensação de profundo conforto. Ao longo de várias noites, a meio de qualquer sonho, olho para as minhas mãos e vejo uma película fina de pele a formar-se. Como uma larva, as minhas mãos desaparecem pouco a pouco dentro de um casulo e, quando estão praticamente cobertas de branco, alguém ao meu lado repara no que está a acontecer e avisa-me. Não fico surpreendida. Sei o que está a acontecer, apesar de não saber porquê, mas não quero ser obrigada a esconder as mãos e a sua cápsula. Acho o casulo extraordinário. Forço a pessoa a olhar para o que estamos a fazer nesse momento tocando-lhe no braço mais próximo e dizendo Sim, já vi, não te preocupes e, mais tarde (É hora, penso), escondo-as cuidadosamente nos bolsos do casaco quando entro numa rua cheia de gente. Sou invadida por sentimentos contraditórios. Entre eles, surge uma sensação de bem-estar e segurança por ser capaz de proteger uma coisa tão delicada de cuja beleza todos duvidam. Pressinto que pode destruir-me, mas estou apaixonada. Sinto um prazer enorme por fazer parte do meu corpo e quero ver o que vai ser.
Noutro sonho frequente, acontece o que não podia acontecer, o que era proibido, tabu: verem as minhas mãos. Caminho na rua a pensar que não devia ter saído de casa sem arranjar as mãos. Preciso de cortar as unhas, cortar pequenas peles, cortar todas essas coisas que continuamente crescem e se desdobram a partir delas, excrescências descontroladas. Penso nisto e, de vez em quando, olho para as mãos com repulsa e vergonha, até que, subitamente, a pessoa que caminha a meu lado, também as vê. Assim que as vê, olha-me nos olhos e diz tens de arranjar as mãos. Não consigo sequer chegar a responder. Acordo.
Outro sonho surge várias vezes em diferentes momentos da vida: doem-me as mãos. Vejo que tenho umas mãos de gigante, olho para elas com nojo, mas ao mesmo tempo, gosto delas. Sinto que posso fazer tudo com elas. Só que não consigo dobrar os dedos. Custa-me mexer sobretudo o dedo médio da mão direita — o dedo onde tenho o calo maior. Custa-me segurar na faca para comer, custa-me abrir a porta, custa-me apertar os atacadores. Tenho vontade de chorar. Tenho medo. Acordo sempre como se tivesse de me salvar, de dar braçadas contra a corrente até à vigília, e sinto um enorme alívio quando acordo, por me ver devolvida ao meu corpo e às minhas pequenas mãos.
No dia seguinte a um desses sonhos, em 2014, fui ao Museu Nacional de Arte Contemporânea ver a exposição Exercício de estilo, de Sara & André, e entre as peças estava um vídeo chamado mãos, cabelos. Primeiro vi os cabelos: o topo de duas cabeças moviam-se lentamente diante de um fundo negro, os cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados. Condicionada pelo título, imaginei as mãos ainda antes de aparecerem: dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. Mal pensei nesta imagem, dois pares de mãos aparecem no ecrã e, para meu choque, tocam-se. Tocam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha concebido a possibilidade de se tocarem. As imagens do sonho que tinha tido na noite anterior, entretanto esquecido, regressaram nesse momento, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se: um dia de sol em que procuro esconder as mãos nos bolsos do casaco a todo o custo.
Porque nem sequer me tinha ocorrido que as mãos se pudessem tocar? Porque é que na minha imaginação as separei como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada? Umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, amassar, apalpar? As mãos agem, sabem, falam. São um órgão de conhecimento que assimila o mundo através do tato e um órgão de comunicação que transmite emoções para além das palavras, incluindo o desejo sexual. As mãos pensam sobre aquilo que os olhos não veem.
Abandonei o museu com uma pergunta: o que é que não podia ser tocado?



3.

Um dia vi uma amiga roer as unhas na escola. Deslumbrada com a descoberta, comecei a roer as minhas nesse mesmo dia. Também deixei de usar qualquer instrumento de manicura, tesouras, corta-unhas, limas ou alicates, cujo contacto abominava.
A minha mãe não gostou, disse-me que ia ficar com as mãos feias. Não fiz caso. De resto, não fazer aquilo que a minha mãe achava que eu devia fazer, era exatamente aquilo que eu achava que devia fazer.
Os anos passaram. Comecei a namorar. O desejo de abandonar a cidade onde nasci motivava-me. Queria romper com o isolamento daquela pequena cidade de interior. De uma criança afável e cativante, evoluí para uma adolescente rancorosa, hostil e muda. Ganhei uma aversão a agradar e interesse em desafiar. Irritava-me facilmente, sobretudo quando me impunham deveres. Era provocadora. Troquei os vestidos pelas calças de ganga rasgadas e pelas camisas de fazenda. A biblioteca, reduto da infância, sofreu uma inundação e fechou. Não havia cinema, teatro, não podia sair da cidade. Podia ler, desenhar e ir à escola, que via como a minha tábua de salvação dali para fora, e tinha o ritual de escrever ao final do dia em cadernos A4 pretos com a ambição de relatar tudo o que via e acontecia.
A família do meu namorado era bastante religiosa e eu, que tinha frequentado um colégio de freiras durante onze anos, mas tinha, entretanto, chegado à conclusão que era ateia, queria a todo o custo transgredir esse contexto. Um dia, passeando no jardim com o meu belo namorado de cabelo comprido, encontrámos o pai dele. Era um homem que tinha frequentado o seminário e que, mesmo depois do casamento, se manteve ligado a vários projetos religiosos. Usava fato de fazenda completo e gravata, era dirigente de um partido de direita e professor de filosofia do tipo que eu não queria ter. Tinha asco a esse homem de ar bafiento e certinho, mas, se quisesse sair à noite, tinha de demonstrar bom comportamento e ser amável. Depois de o cumprimentar, deixei que falassem entre eles, percebendo que ele, como sempre que nos encontrávamos, me avaliava, examinando dissimuladamente a minha postura, as minhas roupas, as palavras que escolhia. Era um dia de sol, estávamos de férias, despreocupados e preguiçosos. Indolente, encostei-me ao meu namorado e, desejando que a conversa durasse pouco tempo e fôssemos libertados, mantive-me praticamente em silêncio. Ele também quase não falou comigo. Ao despedir-se, antes de voltar costas, olhou fixamente para as minhas mãos, depois para os meus olhos e disse: Tens de arranjar as mãos, Marta.
Escrever esta frase ainda me mortifica.



4.

À noite, por vezes, escondia a cabeça debaixo dos lençóis para observar as minhas mãos. Eram pequenas, os dedos curtos, e em cada uma das palmas havia um M perfeito desenhado. Depois eram montes e fissuras, vales e acidentes. Pensava no que existia debaixo da pele, quantos nervos, ligamentos, ossos, veias e artérias. Pensava que havia quem lesse as mãos e interrogava-me sobre que enigma detinham as minhas.
Observava a minha mão de homem e, com enorme curiosidade, interrogava-me sobre se iria continuar a crescer e a deformar-se. Achava-a hedionda. Os dedos grossos e curtos, o calo no dedo médio muito saliente e duro, o do indicador já bastante nodoso. A minha mão de mulher era pequena, tinha uma graça natural. Não fazia quase nada com a mão esquerda e ela mantinha uma espécie de inocência, de lentidão. Já a direita, carregava, escrevia, empurrava, tocava, pressionava, apertava, manipulava. Era hábil, tinha destreza, desenvoltura, avidez. A mão que eu mais queria esconder era a mão que mais usava. Por esse motivo, treinei várias vezes para ser canhota. Cheia de determinação, começava por tentar fazer as coisas mais simples com a mão esquerda, como pegar em objetos, abrir portas, lavar os dentes. No momento em que tentava escrever, desistia.



5.

Quando entrei na faculdade, já raramente pensava nas minhas mãos. O hábito de enrolar os dedos tinha-se imiscuído entre os gestos mais vulgares e já não pensava em escondê-las, escondia-as. Mesmo assim, ao longo de um dia tinha-as muitas vezes expostas aos olhares. Uma dessas situações era quando reunia com colegas para fazer trabalhos de grupo. Escrever à frente dos outros implicava não só mostrar as mãos, como assumir os calos nos dedos, nesta altura bastante pronunciados, duas protuberâncias nos dedos que seguravam a caneta, como os bolbos de algumas plantas.
Trabalhava bastante com duas raparigas da minha turma. Reuníamos em casa de alguma de nós, às vezes ao longo de vários dias para preparar uma apresentação. Eram duas mulheres fascinantes e eu estava encantada com elas. Contavam-me coisas sobre a nossa História que eu nunca tinha ouvido, falavam de poetas, reis e visionários cujos livros eu ia procurar no dia seguinte. Uma delas fazia teatro, era caótica e sugava cigarros. Eu seguia atenta os seus gestos largos, as expressões de rosto muito abertas, o raciocínio franco e meticuloso. Tinha o carro sempre desarrumado e sujo e, para mim, que tinha a mania da ordem e da limpeza, isso era admirável. Eu queria ser igualmente inteligente, bonita e desarrumada. A outra tinha uma elegância atípica. Silenciosa e aparentemente frágil, era muito magra, cruzava as pernas de uma forma que eu passei a imitar e pousava as mãos no colo, deixando os ombros descair. Por vezes segurava a cabeça com a mão, apoiando o braço na cadeira como se não estivesse sob a tensão de um prazo, mas sim entregue a um momento de lazer. Guardo num álbum uma fotografia que fiz das mãos dela.
Num desses dias de trabalho, a meio de um desvio em que falámos de corpos e beleza feminina, a minha colega do teatro para de falar entre duas passas, olha espantada para as minhas mãos, arranjadas na noite anterior, e diz-me que as devia arranjar mais vezes. Tive a tentação de esconder as mãos, como se nem a sua perfeição pudesse ser vista, mas fiz um esforço para sorrir e agradecer. Pelas janelas entrava uma intensa luz de início de verão. A sala estava agradavelmente abafada. Sem perceberem o meu desconforto, começaram a falar das suas mãos, levantando-as, exibindo-as, mostrando-as, apontando os seus pequenos defeitos e nomeando o familiar de quem tinham herdado uma ou outra característica. Falámos sobre mãos e mitologia até ser noite. Mais tarde, ao regressar a casa, percebi que, no meio do meu cansaço, havia uma ponta de tristeza. Ninguém senão eu via a minha mão de homem.



6.

Pouco tempo depois da visita à exposição de Sara & André, no final de uma tarde de inverno quase amena, debaixo de um céu negro como chumbo, ao caminhar numa rua deserta fui arrebatada nos meus devaneios por imagens do nascimento de um bebé. Vi a pele transparente e enrugada, os berros, os líquidos, o cordão e os dedos das mãos que se estendem para logo voltarem a cerrar-se. Imediatamente, a forma das suas mãos aderiu à forma das minhas, que eu fechava como um recém-nascido: enrolando os dedos em volta do polegar. Assaltou-me a sensação de ser intocada como um bebé em gestação. Nesse momento, como uma máquina que dá um salto e deixa de funcionar, uma espécie de convulsão atravessou-me o corpo.
Era estranho como, debaixo de um céu tão negro, nenhuma brisa se levantava, a temperatura era quase tépida. A alegria inicial dissipou-se e o meu corpo assumiu gradualmente uma postura mais descontraída: na realidade, a força com que estava sempre a fechar as mãos tinha desaparecido. Pensei no poder das formas que geram outras formas, a partir das quais se instauram relações que oferecem caminho à reconstrução da consciência. Nesse dia, a forma das minhas mãos começou a parecer-me mais do que uma deformidade, um enigma para ser decifrado através da linguagem.



7.

Tudo aquilo que eu escrevia era como a minha mão direita: tinha de ser escondido. Era incompreensível, por vezes cruel. Onde eu via verdade, parecia existir uma qualidade hostil.
Ninguém falava daquilo que eu sentia necessidade de escrever, ou melhor, eu escrevia sobre aquilo que ninguém à minha volta tinha vontade de falar. Mas a escrita era também imprevisível. Funcionava como um prolongamento de mim mesma. Também na escrita continuamente lidava com excrescências: entre o dito e o não dito, entre o exposto e o oculto, o claro e o obscuro, o falso e o sincero, o visível e o invisível. A escrita era como uma pele que tinha de descascar, retirar uma pele após a outra até fazer ferida. Não sabia porque escrevia. Mas tinha um profundo terror de perder essa liberdade.
A causa direta do crescimento dos meus calos era uma coisa comum a que se chamava «calos de escrita». Praticamente toda a gente tinha calos de escrita. Contudo, eu desejava ser como a minha mão esquerda — leve, graciosa, doce, sem imperfeições — e rejeitava aquilo que a minha mão direita — contorcida, disforme, sem candura — poderia revelar de mim: uma criatura onde tudo parecia ser obscuro e estar retorcido.
Como se cede ao sono e ao prazer, acabei por ir cedendo a mim própria. Hoje escrevo no computador e um dos calos da minha mão direita praticamente desapareceu. O outro suavizou-se. Na verdade, neste momento apenas eu sei que ele lá está. Quem eu sou foi deixando de estar distorcido pela culpa ou por divisões artificiais entre o interior e o exterior, o bom e o mau, o feminino e o masculino.
Cresci em conflito com tudo o que à minha volta me dizia que a vida seria mais fácil se fosse um homem. Na altura teria sido incapaz de o admitir, mas reprimir uma característica com conotação masculina, era uma forma de não participar dessa opressão.
Lentamente, assumi o orgulho que não aceitava ter na minha mão de homem, no tempo em que receava que a minha feminilidade estivesse aquém daquilo que eu achava que uma mulher devia ser: livre.



8.

Passei a contrariar o automatismo, obrigando-me a não fechar as mãos e comecei amiúde a arranjar as unhas. Ainda me apanho com frequência com os dedos a agarrar o polegar, a tentar esconder as mãos, à procura de qualquer coisa no supermercado, no cinema, ou numa caminhada solitária na cidade. Mas desapareceu a necessidade.
A minha mão esquerda continua a ser uma mão sem imperfeições, graciosa, onde às vezes uso anéis. A direita tem frequentemente arranhões e pequenos golpes, fruto do seu incessante labor.
Num impulso, há algum tempo contei a um amigo o meu segredo. Levantando as mãos abertas à altura do meu rosto, assumindo um tom de voz despreocupado para disfarçar a importância que o assunto tinha para mim, disse: "Tenho uma mão de homem e uma mão de mulher. A esquerda tem dedos finos, é leve, bonita. A direita tem dedos grossos, é compacta, como a mão de um agricultor". Ele não viu a diferença. Mas era justo pensar que a minha mão direita se parecia com a mão de um agricultor: uma mão que escava de sol a sol aquilo que não pode ser dito a falar.

 


©Isabel Cordovil, 2021.


Texto originalmente publicado na Revista Pessoa.

24 de janeiro de 2022

Regra geral, os homens esperam a deceção: sabem que não precisam de se impacientar, que ela mais cedo ou mais tarde chegará, que lhes concederá o prazo necessário para que se possam dedicar às coisas que estão a fazer. Assim não acontece com o desiludido, para quem ela surge ao mesmo tempo que o ato; ele não precisa de a aguardar, ela já está presente. Ao libertar-se da sucessão, ele devorou o possível e tornou supérfluo o futuro. «Não posso encontrar-me convosco no vosso futuro — diz aos outros. — Não há um único instante que nos seja comum». Pois para ele, todo o futuro está já ali. Quando percebemos o fim no começo, andamos mais depressa do que o tempo. A iluminação, deceção fulminante, concede uma certeza que transforma o desiludido em liberto.

Cioran, Do inconveniente de ter nascido

23 de janeiro de 2022

A dado momento, face aos acontecimentos públicos, sabemos que devemos recusar. A recusa é absoluta, categórica. Não discute nem faz ouvir as suas razões. Ainda que permaneça silenciosa e solitária, mesmo quando se afirma, como deve ser, à luz do dia. Os homens que recusam e que estão ligados pela força da recusa sabem que não estão ainda juntos. O tempo da afirmação comum, precisamente, foi-lhes retirado. O que lhes resta é a irredutível recusa, a amizade desse Não certo, inabalável, rigoroso, que os torna unidos e solidários. O movimento de recusar é raro e difícil, ainda que igual e o mesmo em cada um de nós, assim que o apreendemos. Difícil porquê? É que nos faz recusar, não apenas o pior, mas um razoável aparente, uma solução que se diria feliz e mesmo inesperada. Em 1940, a recusa não teve de exercer-se contra a força invasora (não a aceitar era evidente). Mas contra essa sorte que o marechal Pétain, cheio de boa-fé certamente, afirmava ser e contra todas as justificações de que se podia reclamar. Hoje, a exigência da recusa não interveio por ocasião dos acontecimentos de 13 de maio (que se recusam por si mesmos), mas face a esse poder que pretendia reconciliar-nos honradamente com eles pela autoridade única do nome. Aquilo que recusamos não é desprovido de valor ou de importância. É mesmo por isso que a recusa é necessária. Há uma razão que já não aceitaremos, há uma aparência de sabedoria que nos horroriza, há uma oferta de acordo e de conciliação que não escutaremos. Uma rutura produziu-se. Fomos levados a essa franqueza que já não tolera a cumplicidade. Quando recusamos, recusamos num movimento sem desprezo, sem exaltação, e anónimo, tanto quanto se pode, pois o poder de recusar não se cumpre em nós mesmos nem apenas em nosso nome, mas a partir de um começo bastante pobre que pertence antes de mais àqueles que não podem falar. Hoje dir-se-á que é fácil recusar, que o exercício desse poder comporta poucos riscos. É sem dúvida verdade para a maior parte de entre nós. Creio, no entanto, que recusar nunca é fácil, que devemos aprender a recusar e a manter intacto esse poder de recusa que daqui em diante cada uma das nossas afirmações deveria verificar.

Maurice Blanchot, A recusa (1958).