29 de julho de 2018
os traumas da minha infância e da minha adolescência continuam a perseguir-me. continuo a sonhar com eles, a agir com a sua lembrança como pano de fundo e a escrever sobre eles. dito isto, sou péssima na ficção que não parte da realidade e exímia em ficcionar o que aconteceu, pois o que aconteceu trabalha ainda em mim. muito do que aconteceu, contudo, ou expõe terceiros ou arrisca mostrar-me como vítima. é aí que entra a ficção, limando as pontas entre os acontecimentos e diluindo, através de uma meticulosa descrição, os seus equívocos. não é fácil transpor essas barreiras e em Nanette, Hannah Gadsby fá-lo de forma eminente. para isso, no entanto, o espetáculo desconstrói e subverte tudo aquilo que pensamos sobre o modo como o humor funciona e rompe com a indefinição deixada pela injustiça inconfessada. aquilo que Gadsby faz de mais radical em Nanette é simples: deixa de ter graça. mesmo as suas piadas estão misturadas com algo de sombrio e cáustico. depois, a certo ponto, explica que quer deixar de fazer comédia (recentemente afirmou que vai continuar) porque toda a sua carreira se baseou na auto-depreciação. "Do you understand what self-deprecation means when it comes from someone who already exists in the margins?", diz. "It’s not humility. It’s humiliation. I put myself down in order to speak, in order to seek permission to speak, and I simply will not do that anymore." Gadsby analisa como a sociedade a ensinou a odiar-se a ela própria, uma mulher lésbica alvo de inúmeras piadas que nasceu num sítio onde, até 1997, a homossexualidade era crime. "I understand the world I live in and my place in it. And I don't have one.", colmata. expressando a sua ira, na segunda parte do espetáculo a comediante assume os danos que lhe foram causados e demonstra o quanto ainda a afetam. mas também assume a sua força. o riso, afirma, "is not our medicine. Stories hold our cure."
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