27 de setembro de 2014

A incúria perante o sofrimento de outrem converte o amado em ridículo, que é enfim a natureza de todo o carrasco.

26 de setembro de 2014

24 de setembro de 2014

Estava há uns dias em convalescença em casa, depois de umas semanas num coma inesperado que, entre outras complicações, resultou numa paragem cardíaca da qual tinha sido difícil regressar. Andava de muletas, tinha um fémur partido, e pouco mais podia fazer senão esperar. Um dia, os meus amigos ligaram-me e disseram-me para estar pronta para sair no dia seguinte cedo. Avisei-os que mal podia andar, onde é que vamos, o que é que vamos fazer, olhem que eu não posso, não disseram. Na verdade eu não tinha vontade de sair de casa. Onde estava melhor era a olhar para nada e que me deixassem estar, sossegada. No dia seguinte vesti qualquer coisa a custo e à pressa, porque eles sempre apareceram. Íamos a qualquer lado de carro. 
Lembro-me que a minha primeira surpresa foi sentir que o meu silêncio não era desconfortável dentro do carro. As conversas entre eles eram as mesmas. A intimidade entre nós prevalecia apesar de eu já não saber muito bem onde estava nem quem era. A certa altura vi o mar no horizonte. Estacionaram junto da areia. Saí do carro e eles começaram a caminhar em direção à água. Mas olharam para trás. As dores e a inexperiência com as muletas não me deixavam avançar. Estava encalhada, a olhar para os pés e a preparar-me para me sentar por ali. Eles voltaram para trás, tiraram-me as muletas e dois deles levaram-me ao colo até à beira da água. Ficámos ali até o sol se por.
É tudo.
Ao que mais tarde me disseram, devo ter-me mantido excepcionalmente silencioso, e por isso deduziram que, ou morreria muito depressa ou, se sobrevivesse aos primeiros tempos críticos, seria muito apto para o adestramento. Sobrevivi a esses tempos. Soluçar surdamente; caçar pulgas até à dor; lamber com lassidão uma noz de coco; golpear a parede do caixote com o crânio e deitar a língua de fora a quem se aproximasse - tais eram as primeiras ocupações da minha nova vida. E no meio disso tudo uma só evidência: não há saída. É claro, hoje só com palavras de homem posso transmitir o que então sentia como macaco, e por isso mesmo o desvirtuo, mas mesmo não podendo já atingir a antiga verdade simiesca, que ela corresponde pelo menos ao quadro geral que tracei, não há quaisquer dúvidas. 

Franz Kafka, Relatório a uma academia, in Os Contos.

23 de setembro de 2014

A casa da minha avó tinha um portão branco que tinha um truque para ficar fechado e atrás dele, em frente à direita, uma escadaria que levava à casa dela e cada degrau da escadaria tinha um vaso com uma flor diferente. Ela estava sempre de volta das flores. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresceriam, se era pé que pegasse, se deveriam ser transplantadas para o quintal. Até ao fim da vida, as suas flores desviaram-lhe a atenção da saudação ou da despedida às netas. Foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escadaria sem mexer nas flores, a olhar para nós, com os seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou espanto. E admiração.

Estou a subir a escada da rua de São Bento que vai dar à Assembleia da República concentrada no que vou ter de fazer dali a cinco minutos e um som estranho à paisagem perturba-me, forçando-me a abandonar os meus pensamentos. Mal acabo de a subir, tenho à minha esquerda um homem sentado no muro, voltado para a Assembleia. Camisa de xadrez, boné ribatejano, perna cruzada. Tem um pequeno rádio na mão, como esses usados para ouvir o relato da bola. É isso que me confunde e me parece estranho no som. Não é um relato. Apuro o ouvido, procuro isolar tudo o que não seja o som que sai do rádio e percebo que é um rancho. Um rancho a cantar canções tradicionais. Em milésimos de segundo, olhamo-nos. Ele mostra-se imperturbável. Há no seu olhar uma ferocidade que me provoca uma certa inveja. É demasiado tranquila. Como se fôssemos de países diferentes e ele mo afirmasse. Noutra língua. Que eu gostaria de saber falar.

22 de setembro de 2014

Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.

Giorgio Agamben


Tenho memórias vagas desse dia e contudo é uma das memórias mais pungentes que frequentemente me assaltam. Eu tinha uns sapatos novos. Eram azuis escuros, de pele rija, encaixavam na perfeição apertando no tornozelo. Foi um presente. Já os tinha estreado numa ocasião especial anterior a este dia, hoje era dia de escola. Sabia que não podia usá-los e mesmo assim pedi à minha mãe para os levar para o colégio. Insisti duas vezes apenas e ela cedeu. Sim, teria todo o cuidado. Retirei os sapatos velhos dos pés, calcei os novos e fui. Não sei porque regressei sozinha a casa nesse dia. Poderia eu ter apenas seis anos? Aproximava-se uma tempestade, as freiras estavam a reter as crianças que não tivessem os pais à porta para aguardarem abrigadas. Não sei porque assim quis, lembro-me do meu coração bater tanto que quase doía, consegui escapulir-me sozinha e seguir para casa através do Largo do Rossio. O deserto. A escuridão abateu-se, era tremenda. O vento e a água eram mais fortes do que poderia ter imaginado. O meu corpo ia sendo empurrado, dava pequenos saltos involuntários, nem sempre em frente. A água inundou tudo em segundos. A lama, poças de água que eram piscinas. O chapéu de chuva ser arrancado da minha mão e voar. A bata e o meu vestido de lã por baixo ficaram encharcados. Pensei nos meus livros, havia que protegê-los. Quando finalmente cheguei a casa não tinha um sapato.
A minha mãe estava furiosa. Porque não tinha esperado. Subitamente olha para os meus pés. Eu olhei também. Tinha umas meias brancas. Fiquei quieta, muda.
Onde está o sapato?
Não sabia responder.
Naturalmente a minha mãe não acreditou. Porém eu dizia a verdade: quando a minha mãe me perguntou pelo sapato foi como se começasse a regressar de muito longe. Fiquei a olhar para os meus pés, o esquerdo calçado, o direito descalço, atónita, emudecida. Constatei que não me lembrava de parte do caminho. Pensei que tinha passado muito tempo, milénios, Eras. Senti necessidade de olhar para o espelho. Mas os meus pés pareciam-me inalterados e para além da ausência do sapato a minha mãe não tinha notado nenhuma diferença. Fiquei muda. Sabia que ela nunca acreditaria em mim mas não tinha outra explicação a oferecer para além da incógnita. Eu própria queria saber o que tinha acontecido ao sapato. O meu belo sapato azul escuro novo em folha.
Sempre quis escrever sobre esta recordação. Mas não sei como. Algo me constrange a tentar desvendar o que aconteceu naquele tempo branco e me impede de o substituir através da ficção. A estranha angústia do enigma gravou-se em mim no momento em que a minha mãe me perguntou Onde está o sapato. Acreditei que tivesse acontecido algo de sobrenatural. E essas eram as coisas de que não se falava. Mas como, se eu própria não me lembrava quer do mensageiro quer da mensagem? Um recorte de tempo tinha-me sido retirado, era tudo. E portanto a espera instala-se: um dia vou perceber, um dia vou-me lembrar. Anos mais tarde, a propósito de um acidente de carro que tive, descobri que os acidentados perdem sempre um dos sapatos. Cheguei a investigar sobre isso, vi fotografias dos pés das vítimas a que de facto faltava sempre um sapato. Como temos sempre teorias para tudo, também havia uma teoria qualquer para explicar isso, que não me trouxe contentamento. Procurei refazer o caminho até à exaustão, nada. A última coisa de que me lembro, é de estar debaixo de um fabuloso céu negro a ser empurrada, o chapéu voar, proteger a pasta. Mas isto foi ainda no início do largo. Depois toquei à campainha.
o teu filho
há-de conhecer
a subtileza da noite
no seu corpo
desvendar-se-á a ciência da solidão
e a terra
apesar de bela
manterá silêncio
quando ele lhe fizer apelo
Quando fiz o Jacarandá com o Jonas Lopes, queria falar sobre a fragilidade. Estávamos os dois integrados num curso que a companhia Clara Andermatt promoveu em 2013 e para meu grande gáudio e surpresa, o Jonas declarou subitamente querer trabalhar comigo. Depois de lhe explicar o que tinha em mente fazer, o Jonas disse: «deixa cair tudo o que é acessório.» Foi nesse momento que comecei a trabalhar. 
Escrevi a alguns amigos pedindo que me enviassem «os seus silêncios». Explicava que a palavra silêncio não deveria ser entendida de maneira literal pois referia-se aqui aos momentos em que nós próprios ficamos suspensos, em silêncio, perante o tempo e o espaço particulares a essa suspensão. Podia ser um momento em que decidissem agora vou-me sentar aqui 5 minutos a não fazer nada ou quando deparassem com alguma coisa que os remetesse a esse estado, enfim, seriam possíveis vários exemplos, como esse de sair à rua e descobrir que os jacarandás floriram durante a noite.
Mostrei cinco silêncios: da Vânia Rovisco, do Pietro Romani, da Andrea Brandão, do Gonçalo Alegria e da Vanda Medeiros. Conhecia todas as histórias por detrás destes silêncios, ou imaginei-as mas referi ao público apenas o lugar e a hora a que tinham sido gravados. A Vânia estava a passear na praça Tahir, em Istambul, poucos dias após a ocupação ter começado. O Pietro gravou o seu silêncio no jardim de Torres Novas, a poucos metros do lugar onde nasci. No silêncio da Andrea, o som da respiração e do coração dela ecoaram pela sala. O Gonçalo gravou o silêncio noturno da última casa onde viveu com a sua gata, dias antes de sair. A Vanda enviou-me o som do coração do filho dela, a bater no meio das suas águas, e nessa altura prestes a nascer. Entre as gravações contei uma história, explicando porque é que aos 10 anos comecei a interessar-me pela questão do silêncio. No processo, tudo isto era muito claro.
Um dia, estávamos ainda a ensaiar, a propósito de uma dificuldade que eu tinha de resolver, o Jonas interrompeu-me e perguntou-me: «o que é que tu queres mesmo fazer.» Tive um bocadinho de medo daquilo, mas respondi logo: «quero mostrar a minha mão a tremer. Porque nesse dia vou estar a tremer.» O Jonas respondeu «feito». No desenho de luz anotámos APAGAR TODAS AS LUZES e pacientemente o Jonas iluminou a minha mão com uma pequena lanterna. No entanto, quando mostrámos isto a primeira vez, recebi muitas hesitações em relação a este momento. Uma mão a tremer, isso não se mostra, disfarça-se. Havia que criar um movimento qualquer, uma diversão, beleza. Tentei aprender a fazer isso (como gostaria de saber dançar mesmo que fosse só com as mãos...). Mas qualquer coisa em mim se obstinava em limpar tudo em torno daquela mão e deixá-la tremer. Fosse como fosse, para o público bastariam os silêncios para a peça ser insuportável e o que eu queria fazer era demasiado depurado para uma primeira experiência. E o movimento para a mão foi estudado e ensaiado. Mas, embora tremesse muito menos do que tinha esperado (e neste caso, desejado), no dia da estreia deixei a mão praticamente imóvel sob a luz.
Para mim continua a ser o momento alto da peça. Não estou a falar de silêncio, estou a mostrar, a todos, o meu silêncio.

20 de setembro de 2014

Truth is stranger than fiction, but it is because fiction is obliged to stick to possibilities. Truth isn't.

Mark Twain
Sur quoi pleurez vous?
Je vous aime.
Jusqu'à ne plus voir.
Ne plus entendre.
Mourir.

18 de setembro de 2014

A minha mãe diz que o dia em que eu nasci era feio de assustar, com uma tempestade violenta a fazer abanar o céu, a crosta terrestre e o que há pelo meio. Depois diz que eu era tão bonita que foi como ver nascer o sol, que todos na maternidade quiseram ver.
Quando contava isto olhávamos sempre uma para a outra a sorrir, como quem reconhece que alguma coisa neste mundo deve estar certo: eu tinha encarnado alguma coisa desse contraste.

16 de setembro de 2014

Lembro-me duma passagem em que o protagonista pensa ter matado o seu perseguidor. E logo pensa: se o matei, não resolvi coisa alguma porque o mal é mais profundo.

(...).

Também é por isso que os meus leitores se afeiçoam a mim; temos em comum o desprezo pelas ideias fixas. Mas reconheço que uma tal personalidade, que envolve na tolerância tanto os erros menores como os pequenos vícios, acaba por desculpar até os crimes.


Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.
Ando pela cidade a resolver pendentes com lassidão, como se estivesse a fazer recados à mãe e houvesse no dever certa chave para a liberdade. Ameaça chover mas não chove, ameaça fazer sol mas o sol só timidamente aparece. O meu leque persegue-me, cada vez mais perto do corpo. Na última casa onde entro, portando já a centelha de melancolia dos fins (que não é melancolia, uma vez li uma palavra que definia isso muito melhor e que infelizmente não recordo agora), encosto-me ao balcão de madeira enquanto espero. A empregada regressa e ao ver o leque negro sair do bolso diz «Isto está impossível» ao que vou para responder que «É verdade, mesmo nas casas com...» mas ela interrompe-me completando de imediato a frase de forma tão eloquente que me deixa sem reação por uns segundos. «Com ar condicionado, sim» e continua. Fala como se adivinhasse os meus pensamentos mas sem a hesitação que me caracteriza. Não diz apenas que está um calor húmido, depois de o descrever faz-lhe corresponder os efeitos que lhe provoca no corpo e no espírito, diz entre as frases esta frase: «Parece que o tempo parou.» Estou maravilhada. Tenho os olhos abertos para ela, sorrio. Puxo mais pelo assunto e ela faz-me a vontade, fala sobre as condições meteorológicas como se falasse de um tratado de paixões da alma ou de Dante. Qualquer coisa assim, qualquer coisa que preenche os espaços e soa virtuosamente. Ouvir a sua voz, foi a coisa mais importante que me aconteceu hoje.

No regresso a casa recordo-me subitamente de Strangers talk only about the weather. Desconheço maior talento que o de fazer repercutir nos outros diálogos de onde nos ausentámos.
o meu destino é desiludir
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.

15 de setembro de 2014

na insónia tudo regressa à infância
que infinita e rigorosa
a nada regressa
Até que me reste apenas a memória de uma dentadura, nego-me a pagar pela minha liberdade.

14 de setembro de 2014

La fille aux cheveux de lin.

13 de setembro de 2014

afinal
as flores eram rubras
tantas
que não falaste 
até ao dia seguinte
quando acordando de um sonho
me explicavas uma receita
com volúpia
e pavor
como se fosse inconfessável
já não estares a sonhar

Da mesma maneira que uma pessoa não nasce com o corpo que escolheu, também não escreve sobre o que quer. Bem posso passar a vida à procura de uma ideia para uma novela, a mão há-de sempre fugir-me para outro lado, com um desejo próprio, que me supera. Foge para ali disposta a desintegrar-se e daí parece não querer sair. Toda a minha aprendizagem serve no fundo para lhe dar ouvidos, me tornar submissa. Sempre fui demasiado rebelde. A insatisfação devora-me e se tivesse de confessar algum pecado teria certamente de ser o da impaciência.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.

Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:

Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?

Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:

Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.

Perguntei-lhe:

Como é que se chamava a bisavó?

Não sei.

Também não.

Nem ele.

Nem eu.

Mas a titi sabe.

Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.