9 de janeiro de 2014

Ontem li o seguinte, escrito a 19 de Julho de 2007:

"Durante a noite tive um sonho indicador.
Sonhei que estava num piquenique, já tinha composto o meu prato e estava a dirigir-me para uma mesa de madeira no parque e a conversar com as pessoas muito animada e satisfeita. Nisto, encontro a minha irmã que me começa a por mais comida no prato. Poe imensas coisas, coisas de que eu até gostava mas não me apetecia, coisas que eu não gostava de todo também, até que o prato ficou muito cheio, a abarrotar. 
Não quis dizer nada por medo de a magoar ou ofender. Quando ela acabou, toda contente por me ter enchido o prato, fui-me sentar na mesa de madeira a olhar para aquela pilha de comida com asco.
Acordei aflita e imediatamente surgiu esta frase na minha cabeça: «Não ponhas no teu prato mais do que és capaz de comer.»".

Podia ter sido ontem à noite.

8 de janeiro de 2014

Se há textos que me aparecem noutras línguas que não a minha, quantas coisas oiço em línguas que desconheço?

6 de janeiro de 2014

No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:

- Está bem. Então fazemos uma experiência, vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e quando tiveres tomado banho conversamos.

Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um 'statement'. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava sobretudo que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa.
Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Tive a tentação de me esconder. Não o fiz. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos, face à realidade com que me confrontava, que era peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:

- Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.

Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.

13 de dezembro de 2013

No último Verão, enquanto fumava um cigarro à janela com um amigo a casa de quem tinha ido jantar, vimos numa varanda abaixo dessa janela dois adolescentes a namorar. Era uma noite de Sábado, um rumor de vozes, vindas de dentro da casa onde eles estavam, distinguia-se entre a música e o som do calor. Estavam sentados num banco de alpendre em madeira, de costas voltadas para o vazio. Ele procurava convencê-la, ela procurava dizer-lhe como não era preciso convencê-la. Houve poucos gestos verdadeiramente transgressores entre eles, mas houve o suficiente para que eu e o meu amigo ficássemos à janela a ver o folhetim e para que eu percebesse finalmente que dentro da casa não estavam adultos. O meu amigo disse «Temos de falar baixo para que eles não nos vejam e fiquem com vergonha».
A princípio, pensei que não me tinha dado conta imediatamente do que estava a ver, e que por isso tinha ficado. Pensei ainda que talvez observasse por divertimento, por estar a ver de fora e com distância o que me aconteceu a mim há apenas alguns anos atrás. Também pensei que fosse uma estratégia oportunista, e pretender estar a usar a intimidade de outrem como um auxiliar de memória. E pensei que talvez fosse aquilo ser adulto, talvez fosse aquilo o tempo, se nele houver algum privilégio. Foi depois, quando o meu amigo disse aquela frase, que comecei a aperceber-me que a minha satisfação em poder observá-los secretamente não estava ligada a nada. É certo que podia distinguir entre os ardis, o desejo e o pudor sem ser afectada por eles. Mas o que nós observávamos era a possibilidade do amor estar a nascer naquele momento. Fosse esse o caso, o que éramos, eu e o meu amigo? Queria que todos os seus gestos e palavras pudessem estar a ser gravados em mim, como uma memória, porventura decisiva, mas não apenas para eles. A satisfação que sentia era indecorosa, partilhada e insaciável.
Da varanda deles após o vazio e da nossa janela, via-se Lisboa, ao fundo o rio, a ponte, à direita um ou dois palácios, algumas nuvens numa noite muito quente, pouco silêncio. Mas só eu e o meu amigo víamos o horizonte da cidade. Os dois adolescentes viam a pele. Viam o que viam mesmo quando desviavam o olhar um do outro. Um chorrilho de palavras procurava a absorção dos seus ritmos. Eu e o meu amigo víamos a possibilidade e não conseguíamos desviar o olhar.

30 de novembro de 2013

Cheiro à minha tia na minha infância, a por lápis azul nos olhos diante da cómoda e do espelho. Eu estou sentada aos pés da cama, com os olhos muito abertos, a tentar perceber porque está ela a fazer o que está a fazer e a admirar todos estes objectos reunidos em torno de um rosto. A colcha é um pano rosa-velho bordado. Ou seriam as paredes? Havia um papel de parede em tecido, julgo eu, e era rosa-velho. Através da janela aberta daquele quarto, alguns anos mais tarde, num mês de Agosto, haveria de ouvir as cigarras e pensar que não pertencia nem àquele lugar nem a nenhuma daquelas pessoas. A solidão aos 10 anos, uma deriva sem quaisquer amarras e contudo já tão amarga.
Era Domingo. Antes de irmos almoçar, a minha tia saía do banho e vestia-se em frente à cómoda. Antes, ajudava-me a sentar na cama, logo atrás dela, os meus pés ficavam a balouçar. Um pouco na diagonal conseguia ver o rosto dela de lado e no espelho. Seguiam-se cremes atrás de embalagens de cremes, com vários formatos e cores. Ela ía espalhando no corpo e quando olhava para mim, qualquer coisa, que me trazia nula curiosidade, a fazia sorrir. Os cheiros invadiam o quarto: vários os cremes, de perfume, de pó de arroz, de maquilhagem, de laca, mas também dos objectos no quarto, como da caixa de madeira de jacarandá, aberta no final de tudo, onde estavam as pulseiras, os colares, os brincos, que ela me deixava sempre espreitar.
Por vezes perguntava-lhe: «Esse é para quê?», porque percebi que todos os produtos tinham uma utilização específica. Havia naquilo qualquer coisa de alquimia, incluíndo por serem segredos a que eu queria aceder. Nem sempre tinha a sorte de receber um pouco de creme ou uma nuvem de bâton na cara, mas nesses dias, quando finalmente saíamos à rua para ir ao café, eu tinha poderes sobrenaturais. Poderes silenciosos, daqueles que detêm uma verdade.
Esperei que, com a velhice a aproximar-se, o corpo me trouxesse todos os degredos. Mas este cheiro a creme Nivea e perfume surpreendeu-me com a mulher que na infância eu queria ser.

27 de novembro de 2013

Coisas sobre o funeral da minha avó:

O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e começar a chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança. Não falava. Não conseguia mover-se. Achei bonito que ninguém o tivesse impedido de não conseguir mover-se.

Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó: não as conseguia largar. Talvez porque, apesar de inertes, lembrava o seu calor.

Não querer que ninguém me desse os sentimentos.

Apetecer-me expulsar toda a gente da casa mortuária. Queria enterrá-la sozinha, com as minhas mãos, e longe de todos os olhares.


Coisas sobre a morte da minha avó:

Primeiro, o telefonema. O telefonema que se espera. A voz: «É melhor vires.» Levantei-me, peguei na chave do carro, e fui.

«É provável que ela não te reconheça», disse a voz. O que é que se sente quando se ouve isto? Não sei dizer. Um silêncio cuja qualidade não sei identificar.

Um quarto de hospital, um corpo que não reconheci. Beijo-a no rosto, os olhos dela muito azuis e muito fixos nos meus, como que para substituir a fala que tinha desaparecido. «Sabes quem eu sou?» Um sorriso.

17 de novembro de 2013

Como duas torradas, não acabo o café mas nunca o acabo, fico sentada na cadeira à mesa, com o computador à frente, a visão turvada, a turvar-se, no corpo o formigueiro da noite. Parece que espero mas não sei exactamente o quê nem tenho a certeza de ser uma espera. Apetece-me fumar, talvez seja isso, espero que passe o tempo para poder fumar, não quero começar a fumar demasiado cedo. O formigueiro ainda, espreguiço-me na cadeira. O gato vê e espreguiça-se também. De resto, nada. Na verdade, sei-o, o que espero é uma razão para me levantar da cadeira, como a fome me deu minutos atrás uma razão para sair da cama. Nada me resta senão esperar.
A luz já caía quando me levantei. Observo como a luz cai. Decido fumar um cigarro, depois de decidir que quero escrever. Para mim, é tudo uma questão de velocidade. Porque excluímos sempre a ideia de lentidão da palavra velocidade?

16 de novembro de 2013

Sonhei toda a noite com infanticídios e naufrágios. Havia sempre um duplo, eu própria, que era ao mesmo tempo a criminosa e um dos bebés mortos. Mas o que me fez acordar de cada sonho, foi ser incapaz de dissimular a minha abjecção pelo assassinato da minha irmã, o outro dos bebés. Mesmo enquanto me afogava, era isso que me trazia em fuga para a vigília.

14 de novembro de 2013

Sou uma intrincada constelação de ironias.

13 de novembro de 2013

Do que me lembro é de pensar que tudo era uma história.
Por exemplo, quando passava de mão dada com a minha mãe em frente à oficina do cesteiro que havia no andar de baixo da casa ao lado da minha casa. A secreta excitação à ida e ao regresso da praia, uma vez por ano, para ver a estrada dos ciprestes (ainda lá estão). Quando me levavam à alfaiataria do meu avô. Quando entrava no pequeno anexo no quintal da casa dos meus bisavós. Quando chegava ao recinto da escola, o espaço vazio primeiro e ao fundo os pavilhões à volta, as oliveiras atrás deles, a cerca de arame e lá fora a estrada em direcção à autoestrada, à saída. Enquanto dava as primeiras passas no meu primeiro cigarro, um SG Gigante, deitada no colchão no sótão e expelindo o fumo contra a luz que entrava pela janela no tecto sem tossir uma única vez.
Tudo era uma história, tudo haveria de ser uma história. E o esquecimento?, pensava eu enquanto olhava a longa mesa de madeira maciça na alfaiataria do meu avô, marcada por inumeráveis cortes, marcas de caneta, manchas. Como lidar com o esquecimento quando quisesse lembrar; e quando seria isto? Não sabia. E no entanto o que eu vivia era já futuro, feito para o futuro, uma escarpa cujo horizonte estava no futuro. E o que eu via era frágil.
Fazia listas. «Mesa de madeira, tesoura grande e pesada de metal, veludo dos cortinados, mais escuro aqui, muita luz naquele canto, a régua de madeira com um formato estranho e com o dobro da minha altura, giz com a aparência de uma borracha, a posição da minha avó a coser, o vulto a subir as escadas em caracol, um cliente, os pontos a linha branca nos fatos a serem experimentados ainda sem mangas, os provadores de madeira com pinturas, o manequim sem cabeça e sem pernas, o ferro de vapor num local para onde era impossível encaminhar-me sem começar logo a ouvir muitos gritos», uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, fiquei à beira dele sem me mexer apesar de não ter água nem estar quente, esperei serenamente os gritos e aproveitei para observar tudo o que podia o mais rápido que pudesse, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, a minha cabeça ficava abaixo do ferro, pus a mão na boca, sentia nisso satisfação, a saliva abundante e quente nos dedos, a luz era diferente no local onde estava o ferro e eu nunca podia ir e pensei que talvez a visse assim porque era a primeira vez que a estava a ver, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto e ter pensado tens de te lembrar.

8 de novembro de 2013

O tempo passou. Não encontro o caminho entre mim e a cidade onde nasci. Tudo o que resta se transformou em memória, cuja trama trabalho ferozmente. E já nada importa. As feridas que pensei nunca sararem, nem cicatriz deixaram, liso como um deserto ficou o corpo.
Vem agora à tona aquilo que amei e sobretudo como amei. A memória delicada daquela certeza, uma única certeza: sair dali. Partir. Há uns dias vi o A. no supermercado, sabendo que o B. tinha morrido há uns dias. Tive vontade de me dirigir a ele e apertar-lhe a mão. E essa vontade tão independente e tão pura transtornou-me. Para explicar isso preciso de dizer: o sítio onde estava deixou de ser um sítio para passar a ser um instante. O incómodo trazido por essa vontade era violento como uma consciência que deixa de dar ordens.
Optar por a viver, o que seria? Uma loucura para os outros ou para mim? Contra todas as minhas forças desenterrou-se em mim um espectro, a lembrança de um homem que conheci, que amava e que sofria. Achei que sabia o que ele estava a sentir, ao mesmo tempo sabendo que não conheço aquela pessoa.
Nesse momento percebi que era eu quem estava viva nessa lembrança. O novelo de uma ligação que pensei ter morrido há muito tempo, vi-o pulsar. Esse amor que nos ligou em adolescentes e me fez esquecer. Quente, íntimo, duradouro. Escrever isto repugna-me.
Encontrei-me numa confusão enorme, sem conseguir fazer o que tinha ido fazer ao supermercado. Tinha a sensação de poder ficar ali retida, retida num pensamento, numa emoção. Dei voltas aos corredores mais perto do local onde ele se encontrava a falar com alguém. Vou ou não apertar-lhe a mão?, a pergunta repetia-se como um grito de socorro. Mais ninguém, absolutamente ninguém para além de nós conhece a história; a decisão, de me devolver o aperto de mão, pertencia-lhe apenas a ele. Seria possível voltar a encontrar esse coração adolescente que vive e sabe o que quer?
Eu ardia. O transtorno avolumava-se com a minha indecisão, fabricada pela incapacidade de distinguir entre a dúvida e o desejo de que ele pudesse retribuir-me um caloroso aperto de mão. Comecei a recordar outras coisas, como uma avalanche. Entre o princípio e o fim, vi-me diante de um enorme fosso temporal que ao invés de revelar mudança congelou tudo nos seus lugares. Incluindo a minha solidão.
Reparei que estava a caminhar repetidamente nos corredores dos iogurtes e gelados. Isso fez-me sorrir. Depois fui-me embora, sem vontade de reparar o irreparável com que me fiz.

1 de novembro de 2013

No África Minha há uma cena em que o Robert Redford diz à Meryl Streep que está por cima dele na cama: «Don't move.» Ela responde: «But I want to move.» Penso muitas vezes neste diálogo quando escrevo.

29 de outubro de 2013

*

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.

Marguerite Yourcenar in Fogos.

28 de outubro de 2013

A casa em frente à minha casa de infância, um apartamento perto do centro da cidade, era uma grande vivenda com paredes amarelo torrado, um terraço alto, árvores, arbustos, canteiros de flores (buganvílias, brincos-de-princesa, camélias), chão de calçada portuguesa, bancos de pedra e uma catatua branca de crista amarelo claro. Ao lado dessa casa e em frente à minha, ficava uma enorme ladeira que eu e a minha irmã subíamos e descíamos todos os dias de mão dada para ir para a escola. Foi frente a essas paredes pintadas de amarelo torrado, quando um dia vinha de mão dada com o meu pai a descer a ladeira, que vi um preto pela primeira vez.
Era um homem muito alto, careca, com uma expressão de seriedade no rosto que me perturbou por não revelar aspereza ou sisudez mas sim beleza. Pensei: «É um rei.» Mais tarde, já na cama depois da história para adormecer que nunca me adormecia, procurei encontrar respostas nas minhas fantasias para o facto de trazer roupas normais e estar sozinho ao invés de trazer um séquito e uma princesa, com ele. Não encontrei nenhuma resposta e guardei até hoje a imagem do rosto dele. A primeira vez que vi um preto foi a primeira vez que vi um nobre.
Muitos anos após este acontecimento, provavelmente mais de 10 anos, a minha mãe reencontrou os pais, o tio e um irmão, cujo paradeiro perdeu ao emigrar e desconheceu ao longo dos primeiros 16 anos em Portugal. Portanto marcou-se uma viagem para o reencontro que seria também um encontro. A minha família materna tinha-se estabelecido numa aldeia no Norte, perto de Barcelos, com meia-dúzia de casas, muitas vacas, um cruzeiro no meio da estrada, uma loja onde havia também um telefone, uma igreja, muros de pedra e o silêncio mais belo que ouvi na minha vida. Antes de chegarmos a esta aldeia, já as pessoas nos sabiam dar indicações para a casa dos Oliveiras. Ao entrarmos na rua principal a minha mãe tremia como varas verdes e parecia ter o corpo de um passarinho. Aquela mulher muralha que me trazia tudo o que eu precisava e me tinha salvo da morte (esta história fica para outra história) era a filha de alguém, como eu. No final dessa rua estava a casa dos meus avós, uma casa com curral, tanque e fazenda e enquanto o meu pai entrava pelo caminho de terra, os meus avós e o meu tio (o irmão mais novo da minha mãe) assomaram à escadaria.
Foi a segunda vez que vi um preto. A minha avó materna era minhota. Tinha a pele transparente, os olhos azuis como mar e o cabelo tão branco que parecia neve. O meu tio era a pessoa mais alta que tinha visto, tão alto que dava a impressão de ir cair, com uma cor de pele igual à cor do café com leite. Tinha uma carapinha muito curta, olhos verdes, uma mão sem força e um discurso difícil de entender. O meu avô era um homem de estatura baixa, com o rosto e o nariz muito redondos e o cabelo grisalho. Foi como estar diante de um espelho bizarro: o meu avô era eu em homem, em velho e em preto. Tinha as mãos nos bolsos e não sabia para onde havia de olhar. Quando entrámos em casa, depois dos abraços, vi-o chorar. Não conseguia entender como é que ninguém nunca me havia dito que existia no mundo uma pessoa com quem eu era tão parecida. À medida que me fui apercebendo que uma parte da minha história me havia sido sonegada comecei a ficar muito zangada e em poucas horas a minha única paisagem era uma montanha de perguntas. De onde vinha eu se não vinha de onde tinha vindo há umas horas atrás? E quem era eu se o meu corpo descendia daqueles traços e daquela matéria? E talvez a mais angustiante de todas: quem era a minha mãe?
Naquele dia ficámos em casa a comer, a recuperar da viagem e a ver álbuns de fotografias muito antigos. Mais tarde o meu tio-avô, irmão da minha avó, que vivia umas casas adiante e fazia vinho verde, entrou pela casa dentro sem bater à porta e vendo a minha mãe à frente disse muito alto com os braços abertos e erguidos no ar: «Zita!», que era a alcunha da minha mãe em Benguela. Depois soltou uma gargalhada tal que fiquei sem saber se havia de ter medo. Estava toda estilhaçada naquela casa. Aquele era o meu riso.

25 de outubro de 2013

Pela terceira (ou será já a quarta...?) noite consecutiva sonho que a meio do sonho olho para as minhas mãos que estão a ficar cobertas de uma película fina de pele a cair, uma espécie de rede muito frágil que a pouco e pouco está a adensar-se e a fortalecer-se. Como a cor da pele que cai é o branco, a cor da pele das minhas mãos está a desaparecer e a certa altura já só se vê dentro dos pequenos alvéolos que rapidamente também desaparecerão.
O que acontece noite após noite nestes sonhos (não é sempre o mesmo, apenas as mãos se repetem) é que a certa altura alguém ao meu lado repara no que está a acontecer e me avisa. Não sou surpreendida, sei o que está a acontecer apesar de não saber porquê mas não quero ter de esconder as mãos, o que também suspeito que serei obrigada a fazer a dado ponto, caso as mãos fiquem totalmente cobertas de pele seca. Forço a pessoa a voltar a olhar para o quer que estejamos a fazer nesse momento tocando-lhe no braço mais próximo e dizendo «Sim sim, já sei, não te preocupes» e mais tarde é o meu próprio pudor que acaba por levar a avante («É hora» penso), forçando-me a escondê-las nos bolsos do casaco enquanto caminho numa rua cheia de gente. Julgo que coro um pouco quando finalmente as escondo, o que é uma sensação estranhíssima e me leva a confirmar se quem julgo ser eu sou realmente eu, tão raro é que eu core. Tenho vários pensamentos contraditórios, oscilo entre a resignação ao recato e a liberdade que haveria em manter-me despreocupada com as minhas mãos. Entre eles começa a chegar uma sensação de conforto e segurança por ter sido capaz de proteger uma coisa tão delicada de cuja beleza todos duvidam. Não sei o que vai acontecer, talvez me mate, mas está a existir. E eu quero ver o que vai ser.

Quando subitamente me recordo disto na vigília estou sentada à secretária e, acto quase contínuo, tenho a necessidade de o escrever. Um par de horas mais tarde, quando acabei de me vestir e vou por creme nas mãos, o meu coração estremece: não tenho a certeza de ter sido um sonho.

21 de outubro de 2013

Futuro

Pousou uma borboleta
sobre uma das pestanas
de um elefante.
Março I

Entro no recinto de terra batida de braço dado com a minha mãe. Estou a olhar em frente, vejo primeiro uma feira, mercadores indianos e máquinas de algodão doce, logo depois vejo os carrosséis e atrás os carrinhos de choque. Eu tinha 5, 8, 10, 11 anos. É algures entre um e outro vislumbre que eu me transformo – mas em quê, se aquilo em que eu me transformo sou eu própria. Não sei dizer. O sentimento de lascívia é tão feroz que tenho a tentação de soltar o braço do braço da minha mãe (chego a movê-lo mas detenho-me).
Os feirantes gritam uns com os outros debaixo da música demasiado alta dos carrosséis, não falam com os visitantes. Tudo me atrai. Os carrosséis giram a uma velocidade assustadora. Olho em volta o espectáculo onde acabo de entrar. Um dos carrosséis tem uns assentos que sobem e descem rapidamente girando em volta ao mesmo tempo, cada um leva duas pessoas. As pessoas riem com as cabeças atiradas para trás e os cabelos a serem empurrados pela força do movimento. Lembro-me que andei nele. Uma viagem enfadonha, em que o medo, a vertigem e o enjoo deram lugar a uma angústia insuportável de que não consegui livrar-me nos dias a seguir. Andei uma vez em todos sempre com o mesmo resultado. Nos anos seguintes, sempre que a Feira de Março chegava à cidade, esquivava-me e andava apenas num para justificar a minha ida e disfarçar a minha vontade de falar com os feirantes, a única coisa que me interessava. Entrava numa chávena de chá que rodava sobre si própria enquanto o carrossel girava e serpenteava acima e abaixo num tapete de tábuas cheio de cavalos, Mickey's, comboios, patos. Gostava de ir sozinha. Solto o braço da minha mãe e dirijo-me a esse carrossel. Quero entrar mais fundo nas minhas recordações, quero voltar a entrar na chávena, voltar a entrar em mim. Vejo-a, subo para pisar pelo menos as tábuas brancas no chão. Já sinto os olhares sobre mim, tenho de regressar à minha mãe não a posso envergonhar. O meu esforço para não chamar a atenção é hercúleo, tal como antigamente. A garganta aperta-se-me, chega-me aos ouvidos um arrepio.
Reparo agora que desde que voltei a entrar neste recinto uma das coisas que mais me atrai é o pó. Tudo aqui dentro está imerso no pó que os nossos sapatos levantam, um pó seco, leve e branco. Vendem-se voltas, bilhetes, fichas, algodão doce, pipocas, farturas, e qualquer outra coisa que raramente consigo definir.
Estamos a sair da feira, as lembranças sucedem-se como imagens de um filme e eu começo à procura. Aí estão elas as casas dos feirantes. Casas sobre rodas. Casas onde desejei entrar.


Março II

Piso a lama do recinto da feira. Enquanto observo os sapatos enterrarem-se (primeiro prazer), penso na ironia desta feira vir à cidade precisamente no mês de Março. De um lado, estas tendas cheias de perigos (não falem com os feirantes, recomendação), lama, notas velhas de mão em mão, velocidade, do outro lado a chegada da Primavera, pujante e luminosa.
Assim que chego abandono-me como se tivesse acabado de chegar a uma solidão desejada. A feira dá-me a possibilidade de me iludir: cheguei ao futuro, já não vivo nesta cidade. Passo primeiro pelos mercadores de bugigangas, carrinhos de algodão doce e maçãs do amor, não paro. Tenho uma saia às riscas e uma blusa azul, o cabelo apanhado de lado. Ao meu lado de mão dada comigo vem a minha irmã, mais nova um ano. «Combinaste com alguém?». Mas a resposta dela não é a que espero «Hoje ninguém podia vir.». Faço a pergunta que se segue «Quanto dinheiro tens?». Contamos as moedas, não dará para muito mas sei que ela vai querer andar nos carrinhos de choque. Eu tenho medo, fico cá fora. Em torno da pista, sentados nos bancos, estão os rapazes. Vêm das aldeias e das outras escolas; há também os feirantes que nunca estão parados e são os únicos a circular dentro e fora da pista, gritando uns com os outros por causa do barulho das máquinas e da música e exibindo-se, com a pele queimada. É esse o meu momento. Quero vê-los exibir-se. Não vejo nada de belo em todo o recinto mas partilho com eles a animalidade em mim escondida e neles altiva e admiro-os.
Compramos duas fichas para o carrossel e entramos numa chávena de chá que rodopia sobre si própria. Ao sairmos a minha irmã encontra uma amiga e corre para fora do carrossel. Eu dou a volta para sair pelas escadas e aproveito para ir pela zona onde estão as máquinas, que fazem tudo funcionar. É este o meu local preferido. Podia vir à feira só para ouvir este som. Agachado na lama debaixo das tábuas brancas do carrossel encontro um rapaz sujo que fala com um pequeno cão, amarrado com uma corda pelo pescoço. Olha para mim com indiferença. Volta as costas e segue caminho por entre as carrinhas, eu congelo. Sigo-o com o olhar, perco-o, volto a encontrá-lo. Não quero voltar para casa.

19 de outubro de 2013

Desde que abri os olhos são incomparavelmente em maior número as coisas que não percebo do que aquelas que percebo e perceber não tem a ver com identificação mas sim com uma certa impassibilidade, que eu penso ser um termo mais justo do que serenidade, sendo que seria pueril acreditar que só se percebe aquilo de que se gosta. Depois há as que percebo com esforço, a seguir as que percebo com paixão e a seguir as que só percebo, de forma tão imediata que me apetece chamar de natural, tal como é natural respirar e beber água. E suponho que funcionamos todos mais ou menos do mesmo modo, com águas de fontes diferentes, de acordo com os nossos padrões e com as idiossincrasias que não pudermos por de parte.
Por exemplo uma coisa que me diverte muito sempre que sai um filme do David Lynch são as conversas das pessoas sobre o seu significado. Na internet aparecem logo listas intermináveis de fóruns em várias línguas onde se discute cada cena, se fazem investigações, comparações, algumas bastantes interessantes, se propõem análises fantasiosas e extra-humanas (isto existe? Deve existir). Se bem que confesso, também me cansa rapidamente. Porque aquilo que eu vejo, pelo contrário, é da ordem da revelação, que é o que não precisa de explicações. Como um sonho a ser sonhado por muitos. O que me traz ao assunto que me interessa.
Há uma xilogravura  de Katsushika Hokusai
de cerca de 1820 chamada «O Sonho da Mulher do Pescador» que representa uma mulher em êxtase sexual provocado por dois polvos. Existem tantas interpretações sobre ela quantas forem as cabeças a pensar e eu conheço muito poucas. Tive conhecimento de algumas numa fase em que já conhecia a imagem há muito tempo e, tal como acontece com os filmes do Lynch, fui surpreendida pela intensa divergência de opiniões que causa, porque nunca me senti questionada por ela. Tenho tantas questões sobre esta imagem como sobre os desenhos de gatos do mesmo pintor, que são sublimes. Para mim a imagem é transparente: ela parou de pensar.
O que é o prazer? O que é o prazer para uma mulher? Como é que uma mulher tem prazer? Quando se sente validada. Fazer a cama e dobrar a roupa seca conta (não duvidem) mas não conta tanto quanto identificar quem está atrás dos véus. Diz-se que para ter prazer as mulheres precisam de se sentir seguras. Concordo. Mas a segurança não é sobre casas quentes no Inverno e passeios no Verão. A segurança é sobre atenção, cuidado (palavra rara), respeito e tempo. A segurança é sobre reconhecimento. Não reconhecimento do seu valor ou da sua importância (blá, blá, blá) mas reconhecimento da pessoa que se é. A roupa seca e a cama desfeita são tarefas - e chatas, nunca acreditei em ninguém que me dissesse que gostava de o fazer -, e o valor das pessoas numa sociedade pode ser medido pelo que se 'faz' mas para quem é que aquela pessoa 'existe'?
Uma partilha, qualquer partilha, é uma existência partilhada. Nada a menos e nada a mais. Por outras palavras, partilhar não é ser tolerado é ser celebrado.
E é escolher não ignorar da mesma forma que é escolher não ser ignorado. A mulher do pescador abandona-se ao prazer puro porque tudo nela é visto e porque aquele que vê se assume visto. O ver e o ser visto não são unilaterais. Havia alguém que dizia que ver é iluminar com o olhar. É isso. Se, como eu acho, ela parou de pensar, é porque alguém chegou ao lugar onde ela está, atrás dos arbustos com espinhos, e a tocou. Só que alguém teve de abrir a porta da torre. As mulheres são seres silenciosos mas existir em silêncio não é o mesmo que não existir. E a grande maioria das mulheres desiste do seu próprio prazer porque ele não é obtido numa noite de sexo nem com o companheiro de anos nem com o amante de uma noite. O prazer de uma mulher é uma coisa vasta que se constrói 24h sobre 24h, 365 dias por ano. Não acontece com um estalar de dedos. A boa notícia é que a parte técnica aprende-se.
Dito isto assim mal dito, desde que percebi que a imagem causa reacções fortes nas pessoas que a tenho usado para as descobrir. E tem sido muito revelador ver o asco, o sobressalto ou a perturbação que na maioria das vezes causa nos homens. As mulheres tentam esconder a rapidez com que começam a estudar a volúpia.

18 de outubro de 2013

Não é porque não se possa falar da saudade que evitamos fazê-lo. Não é tão pouco porque a dilaceração que ela traz ao corpo seja insuportável ao ponto de não a podermos nomear. Até a memória dos acontecimentos mais monstruosos encerra a alegria primitiva que nos trouxe até ao momento em que os lembramos. É isso que nos causa pudor. É isso que é insuportável.
Coisas que não se podem possuir:
  • o vento
  • bolas de sabão
  • os fios da teia de aranha
  • o calor da tua boca
  • água
  • o traço do desenho