7 de maio de 2020

Tenho uma enorme dificuldade em descrever um rosto. A cada tentativa saio frustrada, tendo escrito pouco ou nada. Mesmo esse pouco, arrancado com sorte e a ferros, nada revela sobre aquele rosto em particular, nem sobre as suas milimétricas manifestações. Não estou bem de outra maneira senão a escrever e, no entanto, não sou prolixa, eis a grande contradição da minha vida. Pelo contrário, em A Contraluz, Rachel Cusk tem descrições de rostos admiráveis, com adjetivos e metáforas de toda a espécie:

"Há qualquer coisa de personagem de desenho animado na cara de Paniotis: tudo nela é exagerado, as maçãs do rosto são muito magras, a testa muito alta, as sobrancelhas projetando-se como pontos de exclamação, o cabelo voando em todas as direções, e por isso, quando olhamos para ele, temos a sensação curiosa de estarmos a olhar para uma ilustração do Paniotis e não para o próprio Paniotis. Mesmo quando está descontraído, ostenta a expressão de alguém a quem acabaram de contar alguma coisa extraordinária, ou de alguém que abriu uma porta e ficou muito surpreendido com aquilo que viu à sua frente. Os olhos, emoldurados pelo ricto desta expressão, são irrequietos e voláteis e muitas vezes ficam dramaticamente protuberantes, como se algum dia pudessem voar, abandonando de vez o seu rosto, perplexos com aquilo que testemunharam."

Há nestas descrições a frieza de quem os imagina, de quem os trabalha, de quem tem a capacidade de criar um mundo. Eu, que tenho a insignificante ambição de descrever este mundo, debato-me com a falta de memória e com os afetos que perturbam a emissão de sinal. A regra, porém, é a mesma: trabalhar, trabalhar, trabalhar. A realidade também é imaginada.

3 de maio de 2020

A maioria das minhas amigas é casada e tem filhos. Durante a quarentena, todas se queixaram de ter demasiadas coisas para fazer e não estar a conseguir dar conta. Cuidar da casa (limpar, arrumar, organizar), dos filhos (tratar da roupa, da escola, imaginar atividades de recreio e exercício), cozinhar (pensar em receitas, ir às compras, preparar a comida) e, enfim, estar em teletrabalho. Ingénua sobre esta realidade do que é estar em casal, pergunto «E ele?», mas invariavelmente a resposta é incompreensível: «Ele está a trabalhar». Nunca me armei em defensora, porque nenhuma delas precisa de defesa. São todas mulheres altamente instruídas, competentes, inteligentes, criativas e empáticas. Porque não agem? Como chegámos até aqui? Em relação ou não, pobres ou ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. O que temos de mudar? Como vamos mudar? Não sei responder.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.

2 de maio de 2020

— Se eu antes já não conhecia ninguém, como é que vou fazer agora?
— E antes, como é que fazias?
— Então, antes podíamos ir onde quiséssemos, havia coisas a acontecer, podíamos sair.
— E saías?

29 de abril de 2020

Speed-dating

o mundo está num dos seus alvoreceres e em breve chegará a enxurrada que nos levará a todos até à noite dos tempos. fico à janela, como noutra época as moças ficavam, e olho para a parede da casa do outro lado, para o jardim e para a nespereira, para os pombos, para o lago, para as mulheres que fumam à esquina da rua ouvindo caladas os homens gritar. dou comida aos pombos, dou-lhes muito pão, não quero que a enxurrada os leve com fome. nisto, vou ensaiando a história da minha vida. há dias em que me perco, já não sei se o que conto está antes ou depois do que acabei de contar. por vezes pareço ter tido uma vida extraordinária, se não em fama e glória, e menos ainda em felicidade, pelo menos em acontecimentos verdadeiramente raros, e acabo por perguntar-me «e depois, o que aconteceu?», mas não tenho resposta. a maioria das vezes, contudo, a história da minha vida é demasiado curta. em grande antecipação, abro os diários e encontro sempre alguma coisa que não vivi.

28 de abril de 2020

Assisti a muitas mortes. Conheço os campos de batalha onde até os cães são rasgados de alto a baixo e, ainda assim, a vida perdura. Vem deles um silêncio conspirativo que acabou por me corroer. O que se salvou, tem a resistência dos astros e escreve.

27 de abril de 2020

Em 2015, quando rebentou a crise dos refugiados, estive disposta a abandonar tudo — casa, trabalho, cidade, família, país, língua, segurança — para trabalhar como voluntária em operações de salvamento no mar, assistência nas rotas terrestres e no acolhimento e integração de refugiados. Em 2020, quando a pandemia chegou a Portugal, fechei-me em casa sozinha com víveres para duas semanas em estado de terror pelo eventual contacto com a rua e com as pessoas lá fora. Li artigos de enfiada tanto de filósofos como de autoridades de saúde, avisando quer sobre a atual ameaça de novos totalitarismos, quer sobre formas eficazes de proteção. Ainda leio. Em minha defesa não posso senão dizer o seguinte: foi apenas em dezembro passado que estive duas semanas de cama com uma gripe que incluiu episódios de febre de 40º, vómitos, tosse (uma tosse que que durou mais de dois meses) e total incapacidade de me mexer para o que quer que fosse. Nessa altura escrevi o seguinte:

A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.

Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.» Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar, pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas, signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.

26 de abril de 2020

Ao contrário dos livros, as fotografias não eram, inicialmente, catalogadas ou incluídas em registos bibliográficos, mas simplesmente arquivadas. E, por vezes, tinham de esperar mais de cem anos até serem observadas uma segunda vez. (...).
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.

Bernd Stiegler, Fotografia e esquecimento.
(...) quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa, justificar-me perante um juiz desconhecido.

Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.

20 de abril de 2020

fazer anos é difícil. é complicado assegurar equilibradamente que devolvo o carinho que me é mostrado, efusivo, alegre e festivo, sem trair o núcleo da minha identidade, introvertida, equânime, austera. em criança simplesmente chorava. chorava convulsivamente dentro do vestido a estrear, rodeada da família e dos amigos, no momento de apagar as velas do bolo de aniversário, e imediatamente queria ficar só, desligar-me de todo o ruído e de toda a atenção, inclusive da minha mãe, e retirar-me para um canto esquecido até acabar o dia. continuo igual, dividida entre a gratidão pelos que me querem bem e a necessidade de quietude de uma existência sem alarme. a náusea, implacável e intransigente, é a mesma e o preço a pagar por lhe resistir, porventura demasiado alto: outrora, até a escuridão era límpida. hoje, para onde quer que me volte, as quimeras interpretam o seu espetáculo e para além da alegria e da vontade, deixam o impuro lastro da esperança.

19 de abril de 2020

a escrita de uma nova carta levou-me a um texto cheio de reminiscências que se tornou muito maior do que pensei e que começa a revelar estar repleto de ramificações para múltiplas histórias. muito embora tema não conseguir urdi-las a todas, enquanto termino blocos de texto, o vocabulário começa a surgir com facilidade como um rio que jorra da montanha e vou enchendo o documento de anotações para que a memória mais tarde não me falhe sabendo, contudo, que não tenho garantias nem de me recordar dos textos (completos em segundos na minha cabeça) a que aquelas anotações apressadas me deverão conduzir nem de, quando a elas regressar, ainda fazerem sentido. depois de ter escrito, sinto-me tão realizada como se tivesse cumprido uma vida de tarefas absolutamente necessárias para a melhoria do mundo. não tenho ilusões: fui agora mesmo reler esse texto e estou em luta com ele, com as coisas pouco claras, contraditórias e dúbias que escrevi. ainda assim, sinto-me bafejada pela sorte por, ao decidir tirar tempo para escrever, ter sido possível retirar-me por momentos da pandemia, das dificuldades e da consciência por vezes atrofiante que tenho de mim própria. não há nada que dê mais sentido à vida do que podermos esquecer-nos de nós próprios.