21 de janeiro de 2014

Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.

W. G. Sebald, O Caminhante Solitário


Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.



Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.

18 de janeiro de 2014

10 de janeiro de 2014

Alors, je peux déjà raccrocher quelque chose de la schizophrénie. Je peux dire : Bien oui, essayons de voir en quoi précisément le schizophrène éprouve l’impression lui-même de voyager, avec tout ce que ça implique. Chacun, chaque fois qu’on considère ou chaque fois qu’on s’occupe de quelque chose, on privilégie certains aspects. Moi, forcément, quand on rencontrait la schizophrénie, nous, qu’est-ce qu’on était amené à privilégier (?) les mille déclarations finalement des schizophrènes, où leur problème, "ça n’est pas celui de la personne", leur problème "ce n’est pas celui d’une structure". Leur problème, c’est celui d’un problème, mais... qu’est-ce qui m’emporte, et ça m’emporte aussi ? Qu’est-ce qui m’emporte et ça m’emporte où ça ? - ben oui c’est... Bien. Or à cet égard, moi ce qui me fascine, c’est la manière dont les schizophrènes, ils ont affaire à quoi (?) vous comprenez, ils passent leur temps.
C’est ça qui faisait une de nos réactions contre les éternelles coordonnées de famille de la psychanalyse. C’est que moi je n’ai jamais vu un schizophrène qui ait vraiment des problèmes familiaux, c’est même tout à fait autre chose. Enfin c’est trop facile ce que je dis parce qu’on peut toujours dire : Il y a des problèmes familiaux, mais en tout cas, au moins qu’on m’accorde qu’il ne les énonce pas et ne les vit pas comme des problème familiaux. Comment il les vit ?
Une des choses fortes il me semble, vraiment là, c’est presque ce qui maintenant me plaît le plus quand je repense à "L’anti-Œdipe", une des choses fortes de "L’anti-Œdipe", à mon avis et ça, ça devrait pouvoir rester, c’est l’idée que le délire est immédiatement investissement d’un champ social historique. Je dis ça devrait pouvoir rester parce que c’est le type d’une idée simple, c’est pas compliqué de dire : ben vous savez hein, qu’est-ce que vous délirez finalement, vous délirez l’histoire et la société, c’est pas votre famille ! Votre famille, je repense toujours au mot si satisfaisant de Charlus, dans la "Recherche du temps perdu", quand Charlus arrive, pince l’oreille du narrateur et lui dit : "hein ta petite grand-mère tu t’en fous, tu t’en fous canaille ?". D’une certaine manière on en est tous là. Ça ne veut pas dire qu’on ne les aime pas nos grand-mères, nos pères, nos mères, bien sûr on les aime. Mais la question c’est de savoir sous quelle forme et en tant que quoi.

9 de janeiro de 2014

Ontem li o seguinte, escrito a 19 de Julho de 2007:

"Durante a noite tive um sonho indicador.
Sonhei que estava num piquenique, já tinha composto o meu prato e estava a dirigir-me para uma mesa de madeira no parque e a conversar com as pessoas muito animada e satisfeita. Nisto, encontro a minha irmã que me começa a por mais comida no prato. Poe imensas coisas, coisas de que eu até gostava mas não me apetecia, coisas que eu não gostava de todo também, até que o prato ficou muito cheio, a abarrotar. 
Não quis dizer nada por medo de a magoar ou ofender. Quando ela acabou, toda contente por me ter enchido o prato, fui-me sentar na mesa de madeira a olhar para aquela pilha de comida com asco.
Acordei aflita e imediatamente surgiu esta frase na minha cabeça: «Não ponhas no teu prato mais do que és capaz de comer.»".

Podia ter sido ontem à noite.

8 de janeiro de 2014

Se há textos que me aparecem noutras línguas que não a minha, quantas coisas oiço em línguas que desconheço?

6 de janeiro de 2014

No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:

- Está bem. Então fazemos uma experiência, vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e quando tiveres tomado banho conversamos.

Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um 'statement'. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava sobretudo que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa.
Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Tive a tentação de me esconder. Não o fiz. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos, face à realidade com que me confrontava, que era peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:

- Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.

Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.

13 de dezembro de 2013

No último Verão, enquanto fumava um cigarro à janela com um amigo a casa de quem tinha ido jantar, vimos numa varanda abaixo dessa janela dois adolescentes a namorar. Era uma noite de Sábado, um rumor de vozes, vindas de dentro da casa onde eles estavam, distinguia-se entre a música e o som do calor. Estavam sentados num banco de alpendre em madeira, de costas voltadas para o vazio. Ele procurava convencê-la, ela procurava dizer-lhe como não era preciso convencê-la. Houve poucos gestos verdadeiramente transgressores entre eles, mas houve o suficiente para que eu e o meu amigo ficássemos à janela a ver o folhetim e para que eu percebesse finalmente que dentro da casa não estavam adultos. O meu amigo disse «Temos de falar baixo para que eles não nos vejam e fiquem com vergonha».
A princípio, pensei que não me tinha dado conta imediatamente do que estava a ver, e que por isso tinha ficado. Pensei ainda que talvez observasse por divertimento, por estar a ver de fora e com distância o que me aconteceu a mim há apenas alguns anos atrás. Também pensei que fosse uma estratégia oportunista, e pretender estar a usar a intimidade de outrem como um auxiliar de memória. E pensei que talvez fosse aquilo ser adulto, talvez fosse aquilo o tempo, se nele houver algum privilégio. Foi depois, quando o meu amigo disse aquela frase, que comecei a aperceber-me que a minha satisfação em poder observá-los secretamente não estava ligada a nada. É certo que podia distinguir entre os ardis, o desejo e o pudor sem ser afectada por eles. Mas o que nós observávamos era a possibilidade do amor estar a nascer naquele momento. Fosse esse o caso, o que éramos, eu e o meu amigo? Queria que todos os seus gestos e palavras pudessem estar a ser gravados em mim, como uma memória, porventura decisiva, mas não apenas para eles. A satisfação que sentia era indecorosa, partilhada e insaciável.
Da varanda deles após o vazio e da nossa janela, via-se Lisboa, ao fundo o rio, a ponte, à direita um ou dois palácios, algumas nuvens numa noite muito quente, pouco silêncio. Mas só eu e o meu amigo víamos o horizonte da cidade. Os dois adolescentes viam a pele. Viam o que viam mesmo quando desviavam o olhar um do outro. Um chorrilho de palavras procurava a absorção dos seus ritmos. Eu e o meu amigo víamos a possibilidade e não conseguíamos desviar o olhar.

30 de novembro de 2013

Cheiro à minha tia na minha infância, a por lápis azul nos olhos diante da cómoda e do espelho. Eu estou sentada aos pés da cama, com os olhos muito abertos, a tentar perceber porque está ela a fazer o que está a fazer e a admirar todos estes objectos reunidos em torno de um rosto. A colcha é um pano rosa-velho bordado. Ou seriam as paredes? Havia um papel de parede em tecido, julgo eu, e era rosa-velho. Através da janela aberta daquele quarto, alguns anos mais tarde, num mês de Agosto, haveria de ouvir as cigarras e pensar que não pertencia nem àquele lugar nem a nenhuma daquelas pessoas. A solidão aos 10 anos, uma deriva sem quaisquer amarras e contudo já tão amarga.
Era Domingo. Antes de irmos almoçar, a minha tia saía do banho e vestia-se em frente à cómoda. Antes, ajudava-me a sentar na cama, logo atrás dela, os meus pés ficavam a balouçar. Um pouco na diagonal conseguia ver o rosto dela de lado e no espelho. Seguiam-se cremes atrás de embalagens de cremes, com vários formatos e cores. Ela ía espalhando no corpo e quando olhava para mim, qualquer coisa, que me trazia nula curiosidade, a fazia sorrir. Os cheiros invadiam o quarto: vários os cremes, de perfume, de pó de arroz, de maquilhagem, de laca, mas também dos objectos no quarto, como da caixa de madeira de jacarandá, aberta no final de tudo, onde estavam as pulseiras, os colares, os brincos, que ela me deixava sempre espreitar.
Por vezes perguntava-lhe: «Esse é para quê?», porque percebi que todos os produtos tinham uma utilização específica. Havia naquilo qualquer coisa de alquimia, incluíndo por serem segredos a que eu queria aceder. Nem sempre tinha a sorte de receber um pouco de creme ou uma nuvem de bâton na cara, mas nesses dias, quando finalmente saíamos à rua para ir ao café, eu tinha poderes sobrenaturais. Poderes silenciosos, daqueles que detêm uma verdade.
Esperei que, com a velhice a aproximar-se, o corpo me trouxesse todos os degredos. Mas este cheiro a creme Nivea e perfume surpreendeu-me com a mulher que na infância eu queria ser.

27 de novembro de 2013

Coisas sobre o funeral da minha avó:

O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e começar a chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança. Não falava. Não conseguia mover-se. Achei bonito que ninguém o tivesse impedido de não conseguir mover-se.

Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó: não as conseguia largar. Talvez porque, apesar de inertes, lembrava o seu calor.

Não querer que ninguém me desse os sentimentos.

Apetecer-me expulsar toda a gente da casa mortuária. Queria enterrá-la sozinha, com as minhas mãos, e longe de todos os olhares.


Coisas sobre a morte da minha avó:

Primeiro, o telefonema. O telefonema que se espera. A voz: «É melhor vires.» Levantei-me, peguei na chave do carro, e fui.

«É provável que ela não te reconheça», disse a voz. O que é que se sente quando se ouve isto? Não sei dizer. Um silêncio cuja qualidade não sei identificar.

Um quarto de hospital, um corpo que não reconheci. Beijo-a no rosto, os olhos dela muito azuis e muito fixos nos meus, como que para substituir a fala que tinha desaparecido. «Sabes quem eu sou?» Um sorriso.

17 de novembro de 2013

Como duas torradas, não acabo o café mas nunca o acabo, fico sentada na cadeira à mesa, com o computador à frente, a visão turvada, a turvar-se, no corpo o formigueiro da noite. Parece que espero mas não sei exactamente o quê nem tenho a certeza de ser uma espera. Apetece-me fumar, talvez seja isso, espero que passe o tempo para poder fumar, não quero começar a fumar demasiado cedo. O formigueiro ainda, espreguiço-me na cadeira. O gato vê e espreguiça-se também. De resto, nada. Na verdade, sei-o, o que espero é uma razão para me levantar da cadeira, como a fome me deu minutos atrás uma razão para sair da cama. Nada me resta senão esperar.
A luz já caía quando me levantei. Observo como a luz cai. Decido fumar um cigarro, depois de decidir que quero escrever. Para mim, é tudo uma questão de velocidade. Porque excluímos sempre a ideia de lentidão da palavra velocidade?

16 de novembro de 2013

Sonhei toda a noite com infanticídios e naufrágios. Havia sempre um duplo, eu própria, que era ao mesmo tempo a criminosa e um dos bebés mortos. Mas o que me fez acordar de cada sonho, foi ser incapaz de dissimular a minha abjecção pelo assassinato da minha irmã, o outro dos bebés. Mesmo enquanto me afogava, era isso que me trazia em fuga para a vigília.

14 de novembro de 2013

Sou uma intrincada constelação de ironias.

13 de novembro de 2013

Do que me lembro é de pensar que tudo era uma história.
Por exemplo, quando passava de mão dada com a minha mãe em frente à oficina do cesteiro que havia no andar de baixo da casa ao lado da minha casa. A secreta excitação à ida e ao regresso da praia, uma vez por ano, para ver a estrada dos ciprestes (ainda lá estão). Quando me levavam à alfaiataria do meu avô. Quando entrava no pequeno anexo no quintal da casa dos meus bisavós. Quando chegava ao recinto da escola, o espaço vazio primeiro e ao fundo os pavilhões à volta, as oliveiras atrás deles, a cerca de arame e lá fora a estrada em direcção à autoestrada, à saída. Enquanto dava as primeiras passas no meu primeiro cigarro, um SG Gigante, deitada no colchão no sótão e expelindo o fumo contra a luz que entrava pela janela no tecto sem tossir uma única vez.
Tudo era uma história, tudo haveria de ser uma história. E o esquecimento?, pensava eu enquanto olhava a longa mesa de madeira maciça na alfaiataria do meu avô, marcada por inumeráveis cortes, marcas de caneta, manchas. Como lidar com o esquecimento quando quisesse lembrar; e quando seria isto? Não sabia. E no entanto o que eu vivia era já futuro, feito para o futuro, uma escarpa cujo horizonte estava no futuro. E o que eu via era frágil.
Fazia listas. «Mesa de madeira, tesoura grande e pesada de metal, veludo dos cortinados, mais escuro aqui, muita luz naquele canto, a régua de madeira com um formato estranho e com o dobro da minha altura, giz com a aparência de uma borracha, a posição da minha avó a coser, o vulto a subir as escadas em caracol, um cliente, os pontos a linha branca nos fatos a serem experimentados ainda sem mangas, os provadores de madeira com pinturas, o manequim sem cabeça e sem pernas, o ferro de vapor num local para onde era impossível encaminhar-me sem começar logo a ouvir muitos gritos», uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, fiquei à beira dele sem me mexer apesar de não ter água nem estar quente, esperei serenamente os gritos e aproveitei para observar tudo o que podia o mais rápido que pudesse, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto, a minha cabeça ficava abaixo do ferro, pus a mão na boca, sentia nisso satisfação, a saliva abundante e quente nos dedos, a luz era diferente no local onde estava o ferro e eu nunca podia ir e pensei que talvez a visse assim porque era a primeira vez que a estava a ver, uma vez apenas me lembro de ter chegado perto e ter pensado tens de te lembrar.

8 de novembro de 2013

O tempo passou. Não encontro o caminho entre mim e a cidade onde nasci. Tudo o que resta se transformou em memória, cuja trama trabalho ferozmente. E já nada importa. As feridas que pensei nunca sararem, nem cicatriz deixaram, liso como um deserto ficou o corpo.
Vem agora à tona aquilo que amei e sobretudo como amei. A memória delicada daquela certeza, uma única certeza: sair dali. Partir. Há uns dias vi o A. no supermercado, sabendo que o B. tinha morrido há uns dias. Tive vontade de me dirigir a ele e apertar-lhe a mão. E essa vontade tão independente e tão pura transtornou-me. Para explicar isso preciso de dizer: o sítio onde estava deixou de ser um sítio para passar a ser um instante. O incómodo trazido por essa vontade era violento como uma consciência que deixa de dar ordens.
Optar por a viver, o que seria? Uma loucura para os outros ou para mim? Contra todas as minhas forças desenterrou-se em mim um espectro, a lembrança de um homem que conheci, que amava e que sofria. Achei que sabia o que ele estava a sentir, ao mesmo tempo sabendo que não conheço aquela pessoa.
Nesse momento percebi que era eu quem estava viva nessa lembrança. O novelo de uma ligação que pensei ter morrido há muito tempo, vi-o pulsar. Esse amor que nos ligou em adolescentes e me fez esquecer. Quente, íntimo, duradouro. Escrever isto repugna-me.
Encontrei-me numa confusão enorme, sem conseguir fazer o que tinha ido fazer ao supermercado. Tinha a sensação de poder ficar ali retida, retida num pensamento, numa emoção. Dei voltas aos corredores mais perto do local onde ele se encontrava a falar com alguém. Vou ou não apertar-lhe a mão?, a pergunta repetia-se como um grito de socorro. Mais ninguém, absolutamente ninguém para além de nós conhece a história; a decisão, de me devolver o aperto de mão, pertencia-lhe apenas a ele. Seria possível voltar a encontrar esse coração adolescente que vive e sabe o que quer?
Eu ardia. O transtorno avolumava-se com a minha indecisão, fabricada pela incapacidade de distinguir entre a dúvida e o desejo de que ele pudesse retribuir-me um caloroso aperto de mão. Comecei a recordar outras coisas, como uma avalanche. Entre o princípio e o fim, vi-me diante de um enorme fosso temporal que ao invés de revelar mudança congelou tudo nos seus lugares. Incluindo a minha solidão.
Reparei que estava a caminhar repetidamente nos corredores dos iogurtes e gelados. Isso fez-me sorrir. Depois fui-me embora, sem vontade de reparar o irreparável com que me fiz.

1 de novembro de 2013

No África Minha há uma cena em que o Robert Redford diz à Meryl Streep que está por cima dele na cama: «Don't move.» Ela responde: «But I want to move.» Penso muitas vezes neste diálogo quando escrevo.