27 de abril de 2020

Em 2015, quando rebentou a crise dos refugiados, estive disposta a abandonar tudo — casa, trabalho, cidade, família, país, língua, segurança — para trabalhar como voluntária em operações de salvamento no mar, assistência nas rotas terrestres e no acolhimento e integração de refugiados. Em 2020, quando a pandemia chegou a Portugal, fechei-me em casa sozinha com víveres para duas semanas em estado de terror pelo eventual contacto com a rua e com as pessoas lá fora. Li artigos de enfiada tanto de filósofos como de autoridades de saúde, avisando quer sobre a atual ameaça de novos totalitarismos, quer sobre formas eficazes de proteção. Ainda leio. Em minha defesa não posso senão dizer o seguinte: foi apenas em dezembro passado que estive duas semanas de cama com uma gripe que incluiu episódios de febre de 40º, vómitos, tosse (uma tosse que que durou mais de dois meses) e total incapacidade de me mexer para o que quer que fosse. Nessa altura escrevi o seguinte:

A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.

Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.» Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar, pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas, signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.

26 de abril de 2020

Ao contrário dos livros, as fotografias não eram, inicialmente, catalogadas ou incluídas em registos bibliográficos, mas simplesmente arquivadas. E, por vezes, tinham de esperar mais de cem anos até serem observadas uma segunda vez. (...).
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.

Bernd Stiegler, Fotografia e esquecimento.
(...) quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa, justificar-me perante um juiz desconhecido.

Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.

20 de abril de 2020

fazer anos é difícil. é complicado assegurar equilibradamente que devolvo o carinho que me é mostrado, efusivo, alegre e festivo, sem trair o núcleo da minha identidade, introvertida, equânime, austera. em criança simplesmente chorava. chorava convulsivamente dentro do vestido a estrear, rodeada da família e dos amigos, no momento de apagar as velas do bolo de aniversário, e imediatamente queria ficar só, desligar-me de todo o ruído e de toda a atenção, inclusive da minha mãe, e retirar-me para um canto esquecido até acabar o dia. continuo igual, dividida entre a gratidão pelos que me querem bem e a necessidade de quietude de uma existência sem alarme. a náusea, implacável e intransigente, é a mesma e o preço a pagar por lhe resistir, porventura demasiado alto: outrora, até a escuridão era límpida. hoje, para onde quer que me volte, as quimeras interpretam o seu espetáculo e para além da alegria e da vontade, deixam o impuro lastro da esperança.

19 de abril de 2020

a escrita de uma nova carta levou-me a um texto cheio de reminiscências que se tornou muito maior do que pensei e que começa a revelar estar repleto de ramificações para múltiplas histórias. muito embora tema não conseguir urdi-las a todas, enquanto termino blocos de texto, o vocabulário começa a surgir com facilidade como um rio que jorra da montanha e vou enchendo o documento de anotações para que a memória mais tarde não me falhe sabendo, contudo, que não tenho garantias nem de me recordar dos textos (completos em segundos na minha cabeça) a que aquelas anotações apressadas me deverão conduzir nem de, quando a elas regressar, ainda fazerem sentido. depois de ter escrito, sinto-me tão realizada como se tivesse cumprido uma vida de tarefas absolutamente necessárias para a melhoria do mundo. não tenho ilusões: fui agora mesmo reler esse texto e estou em luta com ele, com as coisas pouco claras, contraditórias e dúbias que escrevi. ainda assim, sinto-me bafejada pela sorte por, ao decidir tirar tempo para escrever, ter sido possível retirar-me por momentos da pandemia, das dificuldades e da consciência por vezes atrofiante que tenho de mim própria. não há nada que dê mais sentido à vida do que podermos esquecer-nos de nós próprios.

14 de abril de 2020

No meio disto tudo, há quem tenha visões tão otimistas sobre o nosso futuro próximo que me pergunto o que há de errado comigo. Um amigo com quem falei recentemente, vê as rendas e o turismo a baixar. Parece-me uma visão maravilhosa. No final de um artigo extremamente crítico dos líderes políticos na Índia, a Arundhati Roy consegue imaginar — nas condições em que nos encontramos, que tendem a piorar, pelo menos do ponto de vista político, social e económico —, que conseguiremos lutar pela construção de um novo mundo (artigo aqui). O próprio Byung-Chul Han acaba um artigo devastador sobre o capitalismo de vigilância em que vivemos com um parágrafo que mais parece um salto sobre o vazio: "O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta." (Sublinhados meus, aqui está o artigo). Desde quando é que a racionalidade contribuiu para gerar a união coletiva? O que me está vedado compreender é o que é que indica que o mundo poderá melhorar radicalmente por causa do vírus. O que é que indica que as mentalidades vão mudar de tal forma a ponto de salvar o planeta ou contribuir para um mundo mais justo do ponto de vista social. Em que é que as pessoas se baseiam para defender que o vírus transformou o humano. Temos a sensação de estarmos a viver o tempo mais importante da nossa vida. Mas a verdade é que as escolhas que estamos a fazer são perigosas e altamente questionáveis. Por causa do contágio, suspendeu-se de forma pacífica precisamente aquilo que nos torna humanos: a afetividade. Por isso não vejo que, como alguns defendem, o vírus nos tenha tornado mais conscientes das desigualdades ou tenha agido sobre o consumismo, a nível dos bens, do tempo e da interioridade. Pelo contrário. O vírus enfraqueceu-nos. As nossas vidas vão ficar indelevelmente marcadas pelo distanciamento social, que as autoridades não se cansam de anunciar nos telejornais que é para ser mantido.
My own opinion is enough for me, and I claim the right to have it defended against any consensus, any majority, anywhere, any place, any time. And anyone who disagrees with this can pick a number, get in line, and kiss my ass.

Christopher Hitchens

10 de abril de 2020

No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:

— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.

Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
 

— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.

Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.


crianças pintam ovos
uma migração de pássaros
alegria para os olhos
insuperável
a infância
perdura

a atualidade
do seu silêncio
nela deflagra

em coincidência
com a imoderada
delicadeza

corrosiva e
assombrosa
dão-lhe encontro

todas as suspeitas
primevas
vagas e concisas

como
por exemplo
a da morte