10 de dezembro de 2017

One evening I was walking along a path, the city was on one side and the fjord below. I felt tired and ill. I stopped and looked out over the fjord—the sun was setting, and the clouds turning blood red. I sensed a scream passing through nature; it seemed to me that I heard the scream. I painted this picture, painted the clouds as actual blood. The color shrieked. This became The Scream.

Edvard Munch
FLOR AZUL, de Raul Domingues 

A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.

Walter Benjamin


O silêncio e a natureza revelam-nos que estamos numa aldeia. Não sabemos qual, pode ser uma aldeia qualquer. Também não sabemos quem são aquelas pessoas, mas percebemos que se trata de um ambiente familiar. Há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver. Muita delicadeza, uma beleza comovente atingem-nos sem que possamos decidir exatamente de onde vem ou o que a motiva. Essa familiaridade transborda, como se fossemos bem-vindos a todos os lugares, incluindo aquele onde nos encontramos agora (a sala de cinema, o teatro, a nossa vida). Como dizia Nuno Lisboa numa conversa justamente a propósito do trabalho de Raul Domingues, Cinema é tudo aquilo que começa quando acaba o filme.

Foi muito curioso descobrir, alguns meses depois de ter visto FLOR AZUL, que o filme tinha sido feito para terminar um curso que o Raul estava a fazer nas Caldas. Não deve haver nada mais surpreendente do que pensar em FLOR AZUL, um filme que rompe todas as regras, como um exercício de escola. É um filme intemporal. Tudo nele é uma fulguração, cada plano, cada som, cada gesto, cada forma, nos catapulta para o presente, concreto e absoluto. Por isso, este filme não termina na sala de cinema, com a sua exibição. Sem dúvida não terminou para mim, tornando-se a cada plano um filme extremamente pessoal. Um acontecimento.

Se digo que FLOR AZUL rompe com as regras, não quero contudo com isso afirmar que haja uma rejeição direta e propositada de quaisquer regras, tal como se diz que o discípulo deverá fazer em relação ao mestre. É verdade que não vejo qualquer tentativa de influenciar o mundo mas não vejo também nenhuma necessidade de o repudiar. Não há qualquer tentativa de devassar ou destruir nada. Não há pretensões em corrigir a vida.

Nunca neste filme estamos completamente sozinhos. A companhia dos animais é uma constante desde o início (um cavalo, um burro, galinhas, galos, gatos, ovelhas, pássaros). Para além disso, há também a ideia de que «aquilo que se está a fazer há-de ser recebido por outros». Assim é, com uma vinha que se inicia, com a recolha de galhos, a preparação de uma festa e com o próprio filme. Creio que uma das coisas mais importantes deste filme é o facto de não se constituir como pura contemplação. Parece-me ser esse o principal motivo porque não se trate aqui de nostalgia mas sim de presente. Explicava a certa altura o Raul que A câmara está presente, é como eu. Assim, o seu nome ouve-se algumas vezes, há conselhos que lhe são dirigidos (o senhor com o burro aconselha-o a mudar de sítio para filmar melhor a oliveira, por exemplo), alguém lhe dedica uma música quase no final. E tudo nos inclui.

Vemos desfocado, vemos próximo, vemos o silêncio. Na grande maioria do tempo ficamos imóveis e não podemos avançar. É então apenas isto?, perguntamos. Também aqui o filme é de uma enorme genuinidade: há nele qualquer coisa da ordem do isolamento. É essa a contrapartida a pagar pela beleza. Contudo, em vez de inacessibilidade e impotência, o que temos é um universo para além da banalidade. Quando focamos as coisas ao pormenor, como Raul Domingues faz aqui, não é tanto para ver mas antes porque nos entendemos próximos daquilo que vemos. E, nessa medida, porque somos vistos por aquilo que vemos. Objetos, animais, luz, sons, pessoas, é no lugar que ocupamos que as formas se decifram. O espaço puro não existe, isso é uma abstração geométrica. Há um fragmento muito conhecido de Blaise Pascal (Pensées, 1670), que fala da sua ignorância sobre todas as coisas, desde o seu corpo, à sua alma e ao mundo. Diz ele que se vê, insignificante como uma sombra, preso a uma imensa vastidão e nela coloca-se inúmeras perguntas: porquê este lugar e não outro, porquê, de toda a eternidade, este tempo e não outro. Aqui não existe essa dúvida. Somos levados numa deriva, com o seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, através de uma treva onde toda a intimidade do mundo se aloja. É uma solidão infantil, que ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas. Há por isso a sensação de poder ver as coisas pela primeira vez, de estar aqui (a abelha que poisa na flor, seguir uma borboleta). Estamos condenados a conviver com a forma das coisas, e a retirar delas o máximo possível de sinais para a nossa própria decifração. Mas a verdade é que, por muitos truques que possam ter sido utilizados, não sinto que alguém me quer dar algo a ver. Há antes um convite a ver com. Contra a fealdade e a ignorância, FLOR AZUL revela um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns.

Há aqui também um grande investimento no silêncio, que me é particularmente caro. Pois o silêncio não é uma ausência de som é a intensificação da escuta. É através dele, enquanto é presença e apelo, que se incorpora a matéria, é ele que dá forma ao corpo pleno — que se forma entre o espetador e o filme. O estado de atenção a que o filme nos convoca — pelo movimento constante da câmara, pela exuberância das formas a que cada plano nos dá acesso e pela grande vitalidade de sons —, remove tudo o que é acessório da lógica do corpo. Recordo agora a timidez do Raul, que frequentemente, embora com uma certa doçura, o leva a afirmar não gostar muito de palavras. Recordo que o tédio faz-nos falar, o sábio não fala muito.

Não é possível distinguir entre o filme e o mundo. A visão desaparece e a verdade do mundo ordenado dá lugar a uma tensão: toda a imagem porta toda a verdade. Todo o devir quer comunicar. Para lá da sua aparente candura, há nestas imagens a grande violência da juventude, sua força, bonança, aventura, toda a doçura da luz.

Uma das aulas da Professora Maria Filomena Molder a que tive oportunidade de assistir (Universidade Nova de Lisboa, 10.12.2014), terminou com a seguinte frase: «Ser-se livre é nunca mais nos envergonharmos daquilo que somos, é esse o conteúdo inteiro de uma coisa que não está terminada». Este filme lembra-me que cada momento é irrepetível. Que da vida não há redenção. Somos radicalmente livres, e é dessa forma que temos de viver no mundo e uns com os outros.

Escrito a convite de Raul Domingues e André Dias para apresentação do filme em Leiria, no dia 31 de julho de 2015, no Teatro Miguel Franco.

8 de dezembro de 2017

uma vida nova sem um novo fôlego
a escuridão selada, um ponto ínfimo
livre de qualquer tributo
e abundantemente
a manutenção das relações é feita através de um escrupuloso uso do silêncio. enquanto instrumento de autopreservação, esse silêncio pode introduzir um certo mal-estar ao revelar inadequação, incapacidade, impossibilidade ou simplesmente ao dar a perceber a relação com o outro como uma relação complexa e contraditória. aquilo que preferimos não dizer, porque não queremos, não podemos ou não devemos, constitui a essência dessas relações e determina a sua verdade porventura mais do que o que é dito. isto significa que o que é silenciado tem mais poder na medida em que é formador de uma identidade e define a elasticidade de um vínculo. é por isso que séries como Friends ou Seinfeld têm tanto sucesso: um grupo de amigos que vivem praticamente juntos e veem tudo o que sentem e pensam ser acolhido por uma aceitação incondicional, sem nunca provocar a grande calamidade da rutura, o que pode haver de mais consolador? na realidade as pessoas não são assim. enquanto instrumento de comunicação, a linguagem mostra-se particularmente inadequada e ineficaz para dar conta daquilo que se desenvolve na sensibilidade individual e o silêncio acaba por ser a possibilidade que temos de fazer face à nossa incompletude e contradição constitutiva. são categorias como estas — a fissura, a imperfeição, o inconveniente — que nos situam na relação com os outros e nos deixam ver como qualquer discurso remete sempre para outro discurso. há coisas que, uma vez ditas, arruinariam uma relação e é precisamente isso que nos permite verificar as suas bases. se o silêncio ameaça o discurso, o diálogo, a expressão e a comunicação, é também nos silêncios que tentamos captar, interpretar e assimilar os fluxos de pensamento. é neste sentido que o silêncio não é uma alternativa simples à palavra e pode ser pressentido como um sintoma de perigo ou de dor, revelando por sua vez a superficialidade da relação que as pessoas mantêm: é nos intervalos que algo que subjaz ao discurso continua a ressoar, algo que, voluntariamente retido, é tão ou mais importante do que aquilo que é dito.

6 de dezembro de 2017

tenho uma vizinha viúva e sem filhos com princípio de demência. costumava gostar de falar com ela pela sua jovialidade e lucidez, agora aponta para coisas que não estão lá. irá morrer sozinha internada numa instituição hedionda, ausente de si mesma. por vezes, entre o discurso incompreensível, ainda diz uma ou outra coisa com sentido, mas na maioria do tempo é um brotar de ficções animado por qualquer sombra que chegou para ficar. ouço-as a todas hesitando entre deliciada e aterrada. invejo-lhe secretamente a capacidade de criar estas ficções com o material mais ordinário do mundo.
várias notícias, conferências, entrevistas e estudos sobre como morrer feliz têm-me chegado. resumi-los é fácil, pois todos apontam para a mesma resposta: estar com os outros. o otimismo parece ter invadido até mesmo a preocupação com a morte. não estar só deixou de ser apenas uma questão de sobrevivência: é uma forma de passar o tempo. o tédio da solidão dá medo. estar inseparavelmente face ao nosso mundo interno, com as suas personagens interiores, nada dever e nada esperar de ninguém, não ficar ferido pelo vazio das palavras ou dos gestos que desejámos e não apareceram, nada disso é socialmente edificador. a nossa sociedade, onde o que importa é o sucesso e a realização, é gerida pela pressão de conseguir e por uma positividade sufocante. mas é difícil manter o otimismo e o empenhamento quando a nossa capacidade de esperança rapidamente na vida troça da nossa desilusão e da nossa impotência. o que significa estar com os outros senão transpor permanentemente o atrito, as resistências e as oposições que as relações humanas acarretam? não é a solidão ela própria que dá medo, mas o abandono, a rejeição, o isolamento e a morte. o que significa o falhanço? quando nos tornamos um falhanço? falar da solidão como uma aventura que se escolheu, fecunda e desejada, tornou-se enigmático, extravagante, intraduzível. prezar os pequenos acontecimentos como o acordar, o deitar, o comer, o orgulho de conseguir resolver sozinho as mil e uma preocupações diárias, manter-se calmo, longe das tensões, dos gritos, dos trejeitos, não ter de lidar com a inconsequência, o egocentrismo e as presenças-ausência de que apenas com a dose certa de cinismo e sarcasmo se pode tentar escapar, nada disto é prezado como essencial. pergunto-me se não será possível, contudo, encontrar alegria estando face ao seu próprio vazio, uma alegria capaz de gerar certa bonomia que, no fim, seja suficiente.

5 de dezembro de 2017

até o Bartleby tinha alguma coisa a dizer.
LA JETÉE, Chris Marker (1962).

4 de dezembro de 2017

Durante muito tempo fui para a cama tarde. Ficava entretida na sericultura. Chegar tarde à escrita parece ser grave, chegar tarde à vida não é nomeado. O inominável. Equivaler escrita e vida é o nó do enforcamento. Não é metonímia. Não há figuras de estilo para o atraso. Só relógios, calendários, admoestações.

Rosa Oliveira, Tardio.

28 de novembro de 2017

Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e de lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo.

Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille Plateaux.

27 de novembro de 2017



Prenda do R., poema do António Reis.

26 de novembro de 2017

a verdade, embora improvável, é a verdade deste momento e — tenho mesmo de o escrever — inocente, fala silenciosamente. o mundo tal como ele é, é lúdico, inapagável, um tanto ameaçador. o melhor seria mesmo inventar um alfabeto, ainda que destinado a perder-se em todo o seu mistério, que celebrasse por momentos todas as contradições. como um transe, através de todas as metamorfoses, ambíguas e arbitrárias, a embriaguez seria ainda maior e mais pungente, o único bem da vida, enquanto à superfície a vida normal, não pensada e prosaica, como uma angústia diligente e firme, se organizaria como um teatro.

24 de novembro de 2017

eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema.

Maria Gabriela Llansol

21 de novembro de 2017

Outono

a nespereira
em frente à casa
deu flor
Le monde est excité le monde est exalté
Comme au festin du plus grand sacrifice
Comme en montant les marches du printemps

*

Moi seul imperturbable
En nouveau-né qui n’a pas encore… ri
Moi seul je vais errant
Sans but précis en homme sans logis

*

Si chacun tient sa richesse
Je parais seul démuni
J’ai l’esprit d’un ignorant
Celui-ci est bien trop lent

*

Si chacun est clairvoyant
Seul je reste obscurité

*

Si chacun est perspicace
Moi seul ai l’esprit voguant
À flotter comme la mer
À souffler comme le vent

*

Si chacun tend vers son but
Moi seul ai l’esprit confus

*

Tel celui d’un paysan
De tout un chacun moi seul diffère
Car je tiens bien à téter ma mère


Lao-Tseu, Tao-Tö King.
eu devia ter sido cantora. penso nisto sempre que oiço música do século XVII para trás (a esticar para poder incluir Bach e Purcell), embora não perceba nada de música. ainda tive umas aulas no Colégio, onde aprendi a ler uma pauta, tocar flauta e uma série de instrumentos de percussão e onde integrei um coro de vozes femininas. cantávamos em todos os naipes, apenas ao som do piano ou, como tantas vezes me calhou, a capela, na missa. os instrumentos estavam reservados às aulas de música e, pelo menos nos anos em que dele fiz parte, não entravam no coro. é possível que a minha breve participação neste coro, contudo, tenha vindo a definir, com maior relevo que aquele que conscientemente lhe atribuo, as minhas preferências musicais. sou ferozmente atraída para uma música de expressão arcaica, que se entremeia com a natureza e com o que há de mais arraigado em nós. nisso, sou coerente até pela escolha de música pop/rock que mais tarde vim a ouvir, onde encontrei muitas vezes ecos do género erudito e do folclórico. o jogo do tempo na música é simultaneamente físico e emocional: vem do interior do corpo, dos nossos ritmos de vida e pertence-nos tanto quanto não nos pertence, trazendo-nos por vezes uma parte de nós que nos falta, como o silêncio.

17 de novembro de 2017

a previsibilidade de uma rotina é o melhor resguardo da intimidade imprevisível.
a criança que eu era engolia caroços porque lhe disseram que assim nasceria uma árvore no estômago.

16 de novembro de 2017

a criança que eu era escondia-se sempre que podia para caminhar para trás, porque lhe disseram que assim estava a ensinar o caminho ao diabo.

15 de novembro de 2017

um sono de chumbo, não sei se de morte se amoroso, cobre-me de forma pueril e embala-me. enquanto na superfície a calma tem tanto de absoluto como de terror, nada tem de limpo a minha vigília, mas sim de turvo e leitoso. embora encerre o indício preciso de uma regularidade obsessiva, este sono tem tanto de insolente como de melancólico: como a lira de Orfeu, a sua hierarquia interna dissolve sem azáfama os tormentos dos condenados e silencia a natureza.