28 de agosto de 2019

O dia em que cheguei a Lisboa também era branco. Era um fim de tarde de novembro e eu não sabia onde estava. Deixei a mala no quarto e saí pela primeira vez, ansiosa e anestesiada. Queria ir até ao cruzamento com mais trânsito e ficar aí para ver como o dia mudava até ser noite, como eram as pessoas, saber se me perdia. Quando tinha feito cinco metros de rua dei de caras com o deus grego que eu observava ao longe na praia da Nazaré todos os verões.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Tudo em mim se calava profundamente. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o: o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Era a primeira vez que falávamos, a primeira vez que lhe ouvia claramente a voz. Fiquei sempre na mesma posição e, ao que me lembro, com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei diretamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas para ele e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.

17 de agosto de 2019

dos teus escombros nenhum ato emerge e, sobre eles, nenhum passo fica gravado, torpe imprevisto que arrasta dia por dia. aqui estou eu, ouvindo-te ao longe como se num sonho, procurando redimir a minha revolta no amor. dirijo-me a ti enquanto os cães uivam na noite do estio e espero, e espero, e espero. a minha carne lembra-se de ti, a minha voz traz a tua imagem refletida no espelho. odeio tudo o que te sobreviveu.

9 de agosto de 2019

Lembro-me a esse propósito, da ironia penetrante com que Brecht falava de um governo que enfrentava a eventualidade de ter de dissolver o seu povo para eleger outro. Foi justamente com esse fim em vista que, a 17 de Junho de 1953, o meu amigo Fritz Klein, dedicado comunista com vinte e nove anos de idade, apoiou a intervenção soviética que se seguiu à grande revolta operária, considerando o regime estabelecido socialmente mais justo e, do ponto de vista político, mais efectivamente antifascista que a República Federal. Do mesmo modo, em 1961, apoiaria a construção do Muro de Berlim. «A minha opinião nesse momento», escreveria ele, «era que devíamos aceitá-lo como um mal menor, quando considerávamos a outra alternativa possível: abandonar a experiência, que continuava a ser legítima, da instauração de uma nova sociedade».

Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes.

8 de agosto de 2019

No meu sonho da noite passada o amor era novamente relacionado a uma máquina. Eu era já muito velha quando ele finalmente a completou e, pondo um fim à minha espera, a acionou pela primeira vez, fazendo soar uma música que chegando às mais altas esferas, trouxe o meu sorriso à vigília.

1 de agosto de 2019

Gostava de ser uma leitora pouco ambiciosa. Leria de seguida coleções completas de uma única editora, estudaria um filósofo anos a fio, dedicar-me-ia a um período da História, um poeta, um romancista, tudo com tempo e sem sofreguidão, sem pensar no livro seguinte ou no livro que me aparecesse diante dos olhos, me passasse pelas mãos, me encontrasse. Mas é inútil. A prateleira dos livros que tenho para ler ocupa agora um móvel inteiro e isso inclui alguns livros que me emprestaram. Também me esqueço dos livros que li. Não sinto angústia, mas tenho pena. Significa que um livro lido volta, após algum tempo, a ser um livro que posso reler sem me lembrar de nada, ou seja, volta a ser acrescentado à pilha dos livros que tenho em casa para ler. Também me esqueço dos filmes, mas não das fotografias nem das músicas e não tenho a mínima pista para o explicar. Os nomes, as palavras, foram sempre mais difíceis para mim: primeiro tardam em aparecer e depois desaparecem sem deixar rasto. Começo sempre vários livros, mas, por vezes, acontece entregar-me apenas a um, sem deixar que nada nos interrompa, que nada se interfira entre mim e a leitura. Eu e o livro desaparecemos, somos um universo constante preenchido por uma audição tátil, saborosa, e quanto mais o tempo passa, mais quero estar a sós com o meu livro. Única exceção, o tempo da escrita. Quando a escrita se torna exigente não leio nada e penso sempre que nunca mais quero ler.

23 de julho de 2019

impressionou-me recentemente encontrar o mesmo rapaz a atender em duas lojas diferentes. com a sua farda, como se de um regime militar se tratasse, devolveu-me o olhar vago e desinteressado de sempre, enquanto me servia um café. «por esta hora, já devia saber o nome dele», pensei, procurando preencher essa vagueza com um sentimento de familiaridade. naquele momento quis saber tudo sobre a sua vida: o que gostava de fazer, se estaria a estudar e o quê ou se não e porquê, se tinha um amor, se morava longe ou por ali. ele foi compreensivo e deixou passar a fixidez do meu olhar sobre o seu rosto, como se o desenhasse.

11 de julho de 2019

Texto e ilustração de A to Z Picture Book, de Gyo Fujikawa.
imprudente performer
falas de ti como se fosses
a pessoa mais importante 
do mundo
e acrescentas sempre o sinal
da tua comoção
perante quem o reconhece.

10 de julho de 2019

POESIA

A bala no cérebro de Maiakóvski. A tuberculose de Álvares de Azevedo. O seppuku de Yukio Mishima. A miséria de Orides Fontela. A orelha de Van Gogh. A roupa puída & suja de Edgar Allan Poe. O tráfico de fogo de Arthur Rimbaud. A pindaíba de James Joyce. Os processos de Allen Ginsberg. O gás de cozinha de Torquato Neto. A cirrose hepática de Paulo Leminski. O vômito de Jimi Hendrix. O manicômio de Antonin Artaud. O salto de Ana Cristina Cesar. O tiro de espingarda de Hunter S. Thompson. A mágika sem lágrimas de Aleister Crowley. A gravata de Santos Dumont. O Hotel Inglaterra de Serguei Iessiênin. O desespero idílico de Werther. A convicção de Carlos Marighela. O cárcere de Rubin Carter. Os narcórticos & o forno de Sylvia Plath. O maligno plano virtual de Yoñlu. A heresia de Giordano Bruno. O mar salgado de Hart Crane. A extradição de Olga Benário Prestes. O tiro natalino no peito de Raul Pompéia. A morfina de Jack London. As ondas de Violeta Parra. O Sena de Paul Celan. O desespero de Walter Benjamin. O hospício de Lima Barreto. Os cinco frascos de arseniato de estricnina de Mário de Sá-Carneiro. A conversão de José Vicente. A forca de Ian Curtis. A crucificação de Jesus Cristo. A tara de Pier Paolo Pasolini. O silêncio de Buda. As quarenta doses de uísque de John Bonham. O chumbo na massa encefálica de Kurt Cobain. Os flagrantes delitros de Fernando Pessoa. O copo de vodca sobre a cabeça de Joan de William Burroughs. Os romances de Roberto Bolaño. A queda do helicóptero de Randy Rhoads. A coragem de Ernesto Che Guevara. As janelas de vidro de Unica Zürn. A calma do bosque de Wendy O. Williams. A sífilis nervosa de Manuel Laranjeira. A Praça da Glória de Pedro Nava. O câncer de próstata de Mario Monicelli. A gentileza do Profeta. A solidão do Tartaristão de Marina Tzvietáieva. Os radiogramas de João Cândido. O ataque cardíaco de Antonio Calixto. Os últimos tostões para Regine de Søren Kierkegaard. A decapitação de Zumbi dos Palmares. As proposições factuais da Primeira Guerra de Ludwig Wittgenstein. O esfolamento & o monóxido de carbono de Stuart Angel Jones. A queda de cinco andares de Jeanne Hébuterne. Os dedos triturados de Victor Jara. Os trilhos do Engenho Novo de Marcelo Gama. Os dezesseis tiros de calibre 38 & 45 no coração de Malcolm x. Os dentes no estômago de Joaquim Câmara Ferreira. O violento traumatismo craniano de Steve Biko. O rebolado de Harvey Milk. A copa do álamo de Frei Tito. O câncer no ovário de Clarice Lispector. O sonho de Martin Luther King. O fim do sonho de John Lennon. As 32 fugas, os 73 processos, os 530 inquéritos por roubos assaltos & estelionatos & as 28 facadas no corpo de Lúcio Flávio Vilar Lírio. A angústia de Graciliano Ramos. A cadeira elétrica de Nicola Sacco & Bartolomeo Vanzetti. O tiro no coração de Jacques Rigaut. A valentia de Frank Zappa. Os 109 dias de tortura de Eduardo Collen Leite. A cabeça desaparecida de Antonio Conselheiro. O misticismo de Guimarães Rosa. Os mais de cem tiros na carcaça de Cara de Cavalo. A cachacinha & o torresminho de Hélio Oiticica. A arma (presenteada por Fidel Castro) de Salvador Allende. A estrela no buraco dos olhos & o diálogo da tristeza com o fim de Cesare Pavese. A overdose de barbitúricos de Alejandra Pizarnik. A coragem, o amor, Dorine & André Gorz.

Fabiano Calixto, Telhados de Vidro n.16, 2012.

9 de julho de 2019

No dia a seguir à morte da sua mãe, Hemiette Binger, que faleceu aos 84 anos, a 25 de outubro de 1977, Roland Barthes começa um Diário de Luto. Escrito entre outubro de 1977 e setembro de 1979, isto é, em dois dos seus últimos três anos de vida, o Diário de Luto, de Roland Barthes foi escrito a tinta e a lápis em fichas que o próprio preparava a partir de folhas de papel A4 cortadas em quatro e das quais mantinha sempre uma reserva sobre a mesa. Feito de fragmentos, este diário é constituído por notas breves, sem conexão, e, sobretudo, por uma obsessão sobre o luto entrecortada por outra, a da escrita e da linguagem. Nele, Barthes escreve sobre o afeto pela mãe e sobre a dor da perda, mas também sobre o próprio ato de escrever um diário.

Escrever para recordar? Não para me recordar, mas para combater a dilaceração do esquecimento.

Não quero falar disto com medo de fazer literatura — ou sem a ter a certeza de que não o será — embora de facto a literatura tenha origem nestas verdades.

Habito a minha tristeza e isso faz-me feliz. Tudo o que me impede de habitar a minha tristeza é insuportável para mim.

Uma amiga aconselhou-me o livro pouco tempo depois da morte da minha mãe. Despreparada, peguei nele uns dias depois, com a urgência de encontrar um refúgio longe da cacofonia do mundo e próximo da minha profunda tristeza. Encontrei nele um ribeiro de clarividência e, ao mesmo tempo, um exemplo da grande tenacidade da escrita. Há um enorme cuidado em fazer o relato seja desta morte, seja desta vida que acabou; qualquer abordagem ao sofrimento trazido por ela é feita com delicadeza e com uma exigência de concisão. Não é que, por ser escrito por um cuidador, o discurso esteja impregnado de um amor sem culpa, pelo contrário. Aquele que tudo deu, pensa sempre que podia ter dado mais.

para a minha irmã