5 de outubro de 2017

não é possível escrever sobre tudo o que se pensa porque nunca tudo está disponível ao pensamento. é apenas possível criar, com muito talento, pequenas ilusões, imagens contundentes e suficientemente obscuras sobre aquilo que nos passa pela cabeça.

4 de outubro de 2017

Debaixo de um céu estrangeiro
sombras rosas
sombras
sobre terra estrangeira
entre rosas e sombras
dentro de uma água estrangeira
minha sombra

Ingeborg Bachmann

3 de outubro de 2017

sê silencioso na minha companhia
como o são os gatos.
onde o teu pavor nasce,
a mediocridade encontra pasto.
sem solidez nem duração
as objeções do teu olhar
tecem fantasias
para que não te abandones.
abstém-te, cessa, para,
obedece à vereda pura.

2 de outubro de 2017

Rafael abre a porta para a rua e um raio de sol ofusca-lhe os olhos. Do outro lado da estrada, o vento sopra em direção a ele, ou pelo menos assim lhe parece. Um carro preto passa em grande velocidade. É manhã muito cedo. Não sei para onde vai Rafael. Está a sair de casa, tira os óculos, esfrega os olhos doridos pela luz, volta a colocar os óculos e desce o primeiro degrau. Há sete degraus para a rua. Ao sétimo degrau, Rafael olha para trás, para a porta de casa. Tem a sensação de se ter esquecido de alguma coisa mas não consegue lembrar-se de nada. Fica um momento parado no passeio, voltado para a porta de casa, coça a testa e ajeita os óculos ao nariz. Não se lembra. Depois avança para o lado esquerdo e sente frio. No entanto, é verão. É cedo demais, pensa. É cedo demais nesta manhã e é cedo demais para este arrepio de frio sombrio. Angústia, de onde vem esta angústia? Sacode os ombros, avança pela rua, cumprimenta a dona do supermercado, Bom dia Dona Eduarda, o cão do Augusto que veio sozinho à rua, Olá Berlinde, mas não diz nada, diz tudo para dentro, pois nenhum deles o viu passar. Dirige-se para o café do Júlio, na estação, o único que está aberto àquela hora. Entra e deixa-se ficar ao balcão, Júlio traz-lhe um café e pergunta-lhe qualquer coisa a que ele responde que sim mesmo sem ter ouvido nada. Procura a carteira no bolso das calças e percebe que não a tem. Hoje é por conta da casa, Rafael agradece e pega na chávena, senta-se sozinho numa mesa, não há mais ninguém no café. Tira um maço de cigarros do bolso da camisa e de dentro do maço, que está cheio, um cigarro, que acende depois de ter dado um golo no café. Nesse preciso momento, um odor forte a marmelos atinge-lhe como um choque as narinas. Que estranho. Que confusão, pensa. Não nascem marmelos senão daqui por dois ou três meses, já quase na entrada do outono, quando o sol de verão se enegrece e cepas de amoras rebentam à beira de noites frescas. Dá mais um golo no café e logo a seguir outro. Levanta-se para acabar de fumar o cigarro à porta. Na verdade quer ir espreitar a rua, ver de onde possa vir o cheiro. Apercebe dois vultos ao fundo na estação, um sentado, outro em pé a falar ao telefone. O céu absorve tudo no seu azul forte sem uma nuvem. Passam um carro cinzento e um branco, completamente fechados e a grande velocidade. O verão chegou finalmente, pensa. Sem que perceba porquê, a ideia não o apazigua. Talvez tenha sido o vento frio de há pouco, ocorre-lhe. 'té logo senhor Júlio e atravessa a estrada para descer a avenida a pé. A Margarida passa do outro lado e finge que não o vê. Que gira, porra, pensa, reparando nos calções brancos muito curtos ou, mais precisamente, no contorno da púbis que os calções acentuam. Quando ela fica de costas, Rafael vê o cabelo solto castanho tocar-lhe na cintura e imagina-se a despi-la. Já na entrada da avenida, volta a olhar para a frente. Os castanheiros e os plátanos adensaram-se, que frescura, tanto verde. Um cão amarelo passa por ele a cheirar os canteiros do jardim e a base das árvores. Quase a meio da avenida, o seu olhar é atraído para a esquerda onde vê um denso nevoeiro subir para a estrada. Estou a ver mal, pensa. Se calhar não é nevoeiro. Mas é nevoeiro. O rio está tão longe, não pode ser, a manhã já vai alta. Onde está o sol? Rafael espreita pela copa das árvores, o sol brilha, amarelo e quente. Nesse momento, um vento forte empurra-o, Rafael desequilibra-se e vê aos seus pés folhas douradas secas e em grande número. Volta a olhar em frente, caminhando em direção a ele, o nevoeiro é tal que já nem se vê nada a partir dele. Como é belo, pensa. Parece uma montanha. Uma montanha que realmente vem até nós. Que raio de dia, o que se passa? Ainda estou a dormir? Volta para trás evitando o bloco de nevoeiro, um pouco zangado. Altas sobre o muro, as sebes da casa dos Patrocínio esclarecem-no. Todas elas estão em flor, flores de primavera, flores de verão, flores de outono, flores de inverno, cada uma das sebes, lado a lado, as ostenta. Daqui não há volta. Os segredos que não foram desvendados aninham-se e a vida passou a ser uma terrível confusão de estações. Uma rosa tem em si todas as rosas, como se fosse a última e não a primeira vez que visse uma.

1 de outubro de 2017

A negação do tempo, lê-se no texto sobre Orbis Tertius, seria o axioma mais importante das escolas filosóficas de Tlön. Em virtude deste princípio, a realidade futura tem uma única forma, a dos nossos temores e esperanças presentes, e o passado é apenas recordação. De uma outra perspetiva, o mundo e tudo o que nele vive agora foi criado há pouco minutos, juntamente com a sua história anterior, tão completa como ilusória. Para uma terceira teoria, a Terra, ou é um beco sem saída na grande cidade de Deus, ou uma caverna escura cheia de imagens incompreensíveis, ou um halo de vapor em torno de um sol melhor. Os representantes de uma quarta escola filosófica defendem que o tempo já decorreu todo e a nossa vida é apenas o reflexo crepuscular de um processo irrecuperável. A verdade é que não sabemos por quantas das mutações possíveis passou já o mundo e quanto tempo resta ainda, se é que o há. Certeza, só temos a de que a noite dura muito mais que o dia quando se mede uma vida, a vida em geral ou o próprio tempo pelo sistema mais vasto em que até aqui tem estado ordenado.

W. G. Sebald, Os Anéis de Saturno.
Ao fim de alguns minutos pareceu-me estar a atravessar uma terra por descobrir e senti-me, lembro-me bem, ao mesmo tempo completamente liberto e terrivelmente ansioso. Não tinha uma única ideia na cabeça. A cada passo que dava crescia o vazio por dentro e o vazio por fora, adensava-se o silêncio. Deve ter sido por isso que apanhei um susto de morte quando uma lebre que tinha estado escondida nos tufos de erva à beira do caminho saltou mesmo à frente dos meus pés e partiu à desfilada, primeiro pelo caminho a direito, depois guinou para um lado, para o outro, e voltou a entrar no campo. Devia ter estado encolhida no seu sítio enquanto me aproximei, o coração a bater furiosamente até ser quase demasiado tarde para salvar a vida. O instante ínfimo em que a paralisia que a tinha tomado se transformou em movimento de pânico de fuga foi também o momento em que o medo dela penetrou em mim.

W. G. Sebald, Os Anéis de Saturno.

24 de setembro de 2017

16 de setembro de 2017

eram sombras longínquas, com uma expressão de piedade puramente mecânica, cuja aproximação me repugnava, pois estavam destinadas a perder-se facilmente. uma solidão supérflua e incómoda, inconcebível, persistia no limiar da memória. é isto que constitui o poder, pensei. uma ânsia vem mendigando atenção e, quem a veja, vai apoiá-la, de forma ingénua ou cómica. pelo menos mergulho na terra com espanto e, sem pestanejar, descubro em silêncio o milagre. toco-o e ele desaparece, pois a sua organização interna é inapreensível. para minha deceção, o seu ar de desprezo e de superioridade, ainda que subterrâneo, preenche o céu. embriaga-me um sentimento de culpa, sou impelida por um gesto inoportuno que se esfuma perigosamente. uma força ostensiva impele-me a renunciar à alegria e a inclinar-me à pobreza e à história. é esse o instante da transgressão, quando não há esperança. ergue-se um pó pesado e sujo, o mundo é o mundo na sua despreocupada falta. dela nasce o riso.
chego tarde às coisas, quando sobre elas já se sabe tudo e por isso foram deixadas para trás, devedoras do que a elas se seguiu. é, portanto, com enorme sossego que as abordo, sem contaminações de olhares externos. as descobertas tardias envolvem uma vontade serena, mas precisa, pois o tempo e o espaço foram trabalhados para as receber. o que é o momento certo? aquele que engolfa o corpo no espaço.

14 de setembro de 2017

haverei de hesitar sempre entre as paisagens desconhecidas e as familiares, sem que dessa hesitação venha algum privilégio ou ganho. preciso de viver num sítio onde saiba que há ruas onde nunca entrei, mas há um consolo inestimável em ver aquelas onde aprendi a andar. contudo, não preciso de as visitar. desde que me lembro que o meu movimento se afasta das coisas familiares como da sarna, como se houvesse uma rejeição da intimidade. contrariá-lo é particularmente exigente e nunca me trouxe grandes benefícios. não acredito em coisas que mudam, acredito em coisas que são. às vezes é preciso interpor uma distância entre nós e a intimidade, para que ela não julgue que nos pode fazer promessas. o progresso é o estertor da evidência.
O Campo

Pensei em ti
quando me dizias para nunca deixar
a caixa de fósforos de madeira, daqueles de emergência,
perdida pela casa, uma vez que os ratos


podiam chegar-lhe e começar um incêndio.
Mas a tua cara estava absolutamente séria
quando enroscaste a tampa da lata redonda
em que os fósforos, como disseste, estão guardados.

Quem poderia dormir naquela noite?
Quem poderia afastar a imagem
de um desses improváveis ratos
caminhando por um cano de água fria

por trás do papel de parede às flores
a agarrar um único fósforo
entre as agulhas dos dentes?
Quem não conseguiria imaginá-lo a dobrar a esquina,

a ponta azul raspando contra a madeira rugosa,
a súbita chama, e a criatura
por um claro e brilhante momento
subitamente levada adiante do seu tempo —

agora um pirómano, agora um portador da tocha
de um ritual esquecido, pequeno druida acastanhado
iluminando uma qualquer noite antiquíssima.
Quem poderia deixar de notar,

iluminados pelo radiante isolamento,
o minúsculo ar de surpresa nas faces
dos ratos seus amigos, outrora co-habitantes
daquela que fora a tua casa de campo?

Billy Collins, Amor Universal.

13 de setembro de 2017

falava como se esperasse que ninguém o entendesse, finalizando as frases num tom baixo e arrastado, quase melancólico, que a audiência tinha dificuldade em ouvir. pelo contrário, o orador ao lado falava num estado de exaltação permanente, com frases ritmadas em choque que nos faziam ficar em defesa, como de um ataque pessoal. nisto, entra a mais bela mulher do mundo. uma eletricidade frenética percorre-me o corpo, sou completamente distraída do motivo da reunião para não dizer da existência. a sua beleza atinge-me em pleno no coração aliviando-o de todas as mágoas, feridas e máculas. enquanto se move e fala, sinto-me diante de uma aparição divina que veio ao mundo só para mim. reparo na sua postura indolente, despreocupada. esta mulher traz com ela um tempo que se anula. a cor transparente dos seus olhos e o cabelo em desalinho, que esculpe em diferentes penteados sucessivos, não são deste mundo. dando ares da pessoa mais segura do mundo, falo-lhe e ela o que faz? cora. de olhos no chão e um sorriso tímido no rosto, cora tanto que olho para as suas mãos para ver se não coraram também.
encontrei há anos a desculpa certa para manter este blogue: um caderno de exercícios. o que ninguém sabe é que estou sempre a ter de resistir à tentação de publicar os próprios rascunhos dos textos, quando eles não são mais do que um esqueleto ou uma mera lista de apontamentos incompreensíveis.
as coisas que ele diz são avolumadas. têm mais definição que o resto dos fenómenos, a sua extensão tem força, firmeza, uma ligeira violência devo dizer, que se acentua ou se atenua conforme o seu bom ou mau humor e, sobretudo, as suas intenções. assim, a sua voz amacia-se ou avulta-se em momentos diferentes de uma mesma conversa. quando nos separamos, os seus discursos ecoam por muito tempo na minha memória, criando nela vincos que resistem ao tempo, largamente isolados dos múltiplos discursos das outras pessoas que encontro. por vezes, é apenas uma palavra que se destaca, tão lisa e contrastante que se mostra colossal perante mim própria. é por isso quase incredível descobrir que, sabe-se lá quantas vezes, dissolvo esses discursos no mar do inconsciente, absorvendo-os como se tivessem origem em mim.

12 de setembro de 2017

acredito que, no geral, um homem não é capaz de suportar o envelhecimento de uma mulher. acredito que, por isso, somos invadidos por apelos não só ao rejuvenescimento, como à magreza e ao cuidado com a pele: a beleza está indissociavelmente ligada a uma arreigada sociedade patriarcal. pintar o cabelo, usar cremes contra estrias, rugas, celulite e manchas, tomar remédios para emagrecer, fazer exercício para emagrecer, a tudo isso as mulheres cedem deixando irreconhecível a vida tal como ela é.

11 de setembro de 2017

Les uns pensent, dit-on, les autres agissent! Mais la vraie condition de l’homme, c’est de penser avec ses mains.

Denis de Rougemont, Penser avec les mains.

10 de setembro de 2017

por vezes, quando me levanto depois de escrever, a minha casa parece não ser a minha casa. distante dos objetos que a preenchem, sinto-me nela como se estivesse de visita, como se estivesse longe de onde realmente vivo, numa casa, digamos, emprestada. nem as suas paredes nem aquilo que a ocupa me pertence, não tenho nada para além do corpo que se move no escuro, tateando corredor fora até ao interruptor. e na verdade, mesmo a esse corpo tenho dificuldade em chegar. tudo se passa como se demorasse a voltar de uma viagem a um sítio longínquo. regresso a casa lentamente e penso por vezes que talvez seja essa uma das razões porque não consigo escrever senão no mais completo isolamento e silêncio. não sou só eu que regresso, mas as próprias coisas. também elas voltam a murmurar e a olhar para mim, querem contar-me a sua história. a absoluta normalidade tem algo de comovente e ao mesmo tempo de solene. a vida, destinada a ser perdida, tem qualquer rotina de celebração.

6 de setembro de 2017

o ator entra no elétrico e senta-se no primeiro banco disponível, à minha frente. está suado, tem o cabelo oleoso, umas botas grossas de caminhada apesar de estar calor. vi-o num filme e vi-o depois horas a fio numa performance onde se nomeava «o poeta» e bebia whiskey. tinha o rosto pintado nesse dia e um chapéu, parece-me, mas não dou a certeza. no filme tinha um fato preto e vivia num quarto em madeira. depois de se sentar respirou fundo e abriu um livro. não vi que livro era, tinha uma capa azul e estava bastante usado. quando saí do elétrico continuava a ler. não me viu. não sabe que por vezes recordo a sua voz, uma voz sem palavras, suave e densa. não sei se é um bom ator, mas gosto do nome dele. vi-o entrar no elétrico e a ler um livro hoje ao final da tarde e pensei que não gostaria de ser vista, ainda que não me falassem. ter um rosto público seria uma tortura a que não saberia resistir. não há nada pior do que ser visto, que desconhecidos tenham uma ideia superficial de nós e que essa ideia tenha um qualquer significado. contudo, ter um nome também me desgosta. há em mim uma exaltação pelo anonimato, pelo vulto, o ocluso, por ser uma massa sem espessura e sem sonoridade. existir no corpo e na voz (interior) de um leitor ao invés de no meu próprio corpo e voz. e já que tudo se reduz a isso, ser o múltiplo em vez do uno.

5 de setembro de 2017

é uma mulher. muito curvada, o cabelo todo branco e a pele praticamente da mesma cor, alimenta os gatos que se escondem no jardim abandonado de um palácio lisboeta. de sua casa traz o saco de comida seca e pão duro. dirige-se às traseiras do palácio e ali, no muro com altas grades, distribui a comida por vários recipientes. os gatos não demoram a chegar. um preto, um branco, um cinzento listado, alguns muito sujos, alguns bebés, miam em cima do muro enquanto ela fala e olha para mim desconfiada quando passo por eles. só falámos uma vez. contou-me a vida toda e agora este olhar, duro, hostil, silencioso. esteve para casar, mas a irmã adoeceu e ela veio tomar conta dela para a casa onde ainda hoje vive. passo por lá com frequência e espanta-me sempre que só veja estendidos trapos rasgados, uns a seguir aos outros, ou cuecas. a casa fica num rés-do-chão que mais parece uma cave, com degraus que descem para o interior e janelas ao nível da estrada, sempre protegidas por uma rede contra as moscas. o estendal foi feito com um pau de vassoura e um cordel verde, já muito gasto. sempre que posso, espreito para dentro da casa, como se com isso pudesse saber mais sobre a sua vida. às vezes, quando a encontro a alimentar os gatos, digo boa tarde, mas ela nunca responde, continua imersa na sua tarefa a falar com os gatos que miam. lembro-me que fez bordados e costura para ganhar a vida, que a irmã entretanto morreu e que já não trabalha. nunca, quando passo por casa dela, oiço um rádio ou uma televisão acesos. pergunto-me se se sente só, se precisará de dinheiro, se abre álbuns de fotografias para recordar os tempos de juventude. pergunto-me o que será dos gatos quando morrer.