15 de janeiro de 2015

não sei se é possível fazer sempre a mesma escolha. ¿que significado teria perseverar sempre na mesma renúncia? descubro que há coisas imunes à ação do tempo e de certa forma, porventura por tão raras, isso choca-me. um choque lento, indolente, com o insidioso poder de ocultar a sua própria violência. ¿que sentido, se em algum momento o houve, tem então a fuga? e no entanto não existem dois caminhos. nunca há tempo, nunca se sabe o suficiente. nada nos protege de uma vida não vivida. ¿mas quantas coisas intensamente vividas não passam de fantasias que o tempo apaga indelevelmente? um dia recordamo-las, em certos vislumbres que nos ocorrem por acaso, como por acaso se encontra um livro que desconhecíamos ou um amigo antigo na rua e, de tão distantes, é como se nem sequer tivessem sido vividas. estranhamente distantes, ainda assim apenas distantes. entre as primeiras e as segundas coisas, existem estoutras, para as quais nunca estamos preparados e que não pedem que nos preparemos. incólumes a tudo o resto, o resto perde força perante elas e não faz mais do que mostrar-se volúvel e transitório, retribuindo permanentemente o seu consumo corrosivo. quando estas coisas chegam — se um dia estas coisas chegam —, não perguntam nada. e nós talvez nos queiramos defender da oferta pura, podem assustar-nos. mas o vestígio do nosso medo não as afeta. onde quer que estejamos, elas irrompem e são claras, sem estratégias. não há nelas nada da ordem da revelação mas a sua mera sugestão toca o coração de um tempo constante, que não passa.

7 de janeiro de 2015

Msabu's bleeding.
She does not have this ox.
This lion is hungry.
He does not have this ox.
This wagon is heavy.
It doesn't have this ox.
God is happy, msabu.
He plays with us.

Out of Africa
fascinou-me em adolescente que a formação das cidades portuguesas estivesse normalmente associada a uma lenda. nada mais expectável para quem vive num mundo de fantasia, onde nenhuma dúvida atormenta. para mim, cada uma dessas lendas retinha uma verdade arquetípica sobre os nativos. parti pois do princípio que também a cidade onde vivia (na altura, a vila) teria uma e, desejosa de me rever no modelo que me correspondia, procurei saber qual era. a resposta deixou-me em choque.
em 1372, altura em que os castelhanos tinham tomado a vila, exigindo a rendição do castelo em troca, Gil Paes era alcaide-mor do castelo de Torres Novas. os inimigos tinham aprisionado um dos seus filhos (de quem nunca descobri o nome), na altura com 18 anos, devido ao insucesso de uma surtida noturna às forças castelhanas que sitiavam o castelo, e ameaçavam matá-lo. Gil Paes terá então dito às tropas sitiantes que o assassem e comessem, mas que Deus não permitisse que fosse traidor do seu Rei e Senhor. após vários dias de cerco, perante a inflexível recusa em entregar as chaves da fortificação, o magistrado assistiu por fim à execução do filho às portas do castelo, primeiro enforcado e depois pendurado pelas pernas. em seguida, comandados por Henrique II de Trastâmara, os castelhanos levantaram o cerco e abandonaram a praça.
durante anos pedi que me repetissem a história, como as crianças pedem para repetir a fábula do escorpião e da tartaruga vezes sem conta. quis saber até que ponto se tratava de facto de uma lenda ou se tinha alguma validade histórica, descobrindo assim que existia na Torre do Tombo em Lisboa, um documento assinado pela mão de Fernão Lopes com a descrição do episódio. a informação que encontrei à altura na biblioteca de Torres Novas, contudo, não abundava sobre a matéria, limitando-se o mais das vezes a reproduzir invariavelmente os principais elementos da história, com poucos detalhes, na maioria das vezes omitindo até nomes ou datas. passou a intrigar-me que lhe chamassem lenda e achei que, sem dúvida por se tratar de um episódio de tamanha violência, as pessoas preferiram imaginar que não tivesse de facto acontecido, inscrevendo o engano na linguagem, depois perpetuado através de gerações. e de facto, quando me contavam a história, quantas vezes os castelhanos não foram mouros (ou outras incorreções, como se comprova na página três desta edição do Jornal Almonda).
o enigma vincou-se. coeso e intangível, eu não podia ver-me através dele. uma natureza insubmissa não chegava para explicar, ou antes, para justificar a ressonância da alegoria, até porque, se por um lado havia uma declarada insubmissão ao inimigo, por outro havia devoção ao soberano. perante a coincidência perfeita entre o vínculo parental e a mais pura frieza, o pensamento colapsava. pelo menos o meu. que o assem e o comam, teria dito o alcaide. imaginei a cumplicidade da praça, os olhares trocados entre castelhanos e portugueses, entre Henrique e Gil, entre o pai e o filho, o eco das vozes, o rumor da movimentação das tropas, os vários dias de batalhas desde que levantaram o cerco, talvez chovesse, talvez o sol brilhasse implacavelmente, haveria pó, muito pó ou muita lama, as armaduras pesavam, cavalos relinchavam, pássaros indiferentes chilreavam, o eco, dos pensamentos, dos olhares, um rapaz de 18 anos feito prisioneiro pelo inimigo em sua própria casa, de quem sequer sabemos se chora, se grita, se fala, ninguém para o denunciar à posteridade. terá alguém escrito o seu nome?
Gil Paes preconiza um tipo de resistência extremo. aparentemente indiferente durante o cerco, cerca de um ano mais tarde terá sido necessário convencer D. Fernando I a colocar a sua filha D. Isabel de Portugal sob a custódia de Gil Paes, antes desta casar com Afonso, conde de Noronha e Gijon. parece que o tempo terá auxiliado na instauração de uma manobra política de indelével firmeza: a barbárie converte-se em lealdade e por sua vez a lealdade em lenda. a abjeção reveste-se de nobreza e entra para a História. enquanto eu crescia, ergueram na praça principal da cidade um grande painel de azulejos que retrata o episódio, onde um corpo jaz no centro com grilhões nos tornozelos. no verão passado, a feira medieval que ali se organiza teve como tema o sacrifício do herói. e quem é o herói? não a criança, não o filho, o inocente, mas Gil Paes. o mártir.
conheci a palavra agelasta através da gravação de uma conferência que Ricardo Araújo Pereira deu na capela do Rato em Lisboa. trata-se de um dos neologismos de François Rabelais que tem origem grega e que em qualquer dicionário se refere «àquele ou ao que (este que é curioso) não ri». Rabelais terá encontrado a palavra no mito de Deméter, deusa da fertilidade, que perde Perséfone, sua única filha com Zeus, porque Hades, o senhor do mundo dos mortos, a rapta. Deméter está à sua procura quando, a determinado momento, percebe. nesse momento, está sentada sobre uma pedra chamada agelasta. uma rápida busca no Google levou-me a Milan Kundera:  

Não existe paz possível entre o romancista e o agelasta. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastas estão convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem se torna indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território onde ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas onde todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin. (...). O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor.

Kundera explica ainda que Rabelais tinha pavor dos agelastas. detestava-os e temia-os. dizia ele que os agelastas eram tão atrozes consigo, que tinha chegado a pensar em deixar de escrever para sempre. o que é temido por Rabelais? não a sua incapacidade de rir, pois em última análise essa só a eles lhes diz respeito, mas sim a capacidade de fazerem um escritor deixar de escrever. o que é detestado por Rabelais? a capacidade que o agelasta tem de fazer propagar a sombra ao coração daquele que ri, torna-o por sua vez incapaz de fazer o agelasta rir. tudo se passa como se esta incapacidade lhe transmitisse uma força sobre-humana. por isso Rabelais os define como pertencentes a dois planos distintos da existência, mais exatamente, o da possibilidade e o da sua carência, o da empatia e o da irascibilidade ou, como Kundera dirá, o plano da verdade e o plano da imaginação. entre um e outro (a acreditarmos no romancista), só há espaço para a inquietação e para a hostilidade. posso sempre estar errada, mas Gil Paes parece ser um destes agelastas. dele, e do seu ato de lealdade, se ri Deus.

5 de janeiro de 2015

em 1999, no museu de Orsay em Paris, estes dois quadros estavam praticamente um frente ao outro.

3 de janeiro de 2015

30 de dezembro de 2014

Il avait 3 ans. Un jour, il arrive et il me dit: ‘Maman, mes ciseaux à découper, mes ciseaux à découper! Où ils sont?’ Il pleurait, il était très malheureux, et je lui dis: ‘Tu n’as qu’à les chercher, tes ciseaux à découper!’ Il recommence: ‘Maman, mes ciseaux à découper!’ Alors je lui dis: ‘Cherche, écoute! Réfléchis! Où les as-tu mis?’ Il me dit: ‘Je ne peux pas réfléchir!’ Je lui dis: ‘Pourquoi tu ne peux pas réfléchir?’ et il me dit: ‘Parce que si je réfléchis, je crois que je les ai foutus par la fenêtre.’

Marguerite Duras

29 de dezembro de 2014

Dearest Max, 

my last request: everything I leave behind me... In the way of diaries, manuscripts, letters (my own and others'), sketches, and so on, [is] to be burned unread...

Yours, 
Franz Kafka

28 de dezembro de 2014

O Deus do rouxinol é o Deus que eu sirvo.

Charles Spurgeon

26 de dezembro de 2014

tenho uma chave, entro, já conheço este lugar. há vozes e comida, eu tenho fome e frio mas reparo que estou muda. duvido que a multidão seja real e a profusão transforma-se em confusão. não acredito sequer no que me está a acontecer. não, não é isso. sei é que a realidade das coisas que acontecem muitas vezes revela ser o seu oposto. parece uma festa mas pode ser um crime. não sou inocente. não quero brindar com os ímpios, não quero estar entre eles. desvio-me para o corredor, a madeira gasta, esburacada pelos bichos, húmida, camadas de tinta a estalar. na outra mão, só vejo agora, pesa-me um ramo de flores. a princípio não sei que flores são nem penso nisso, depois as flores ficam horrivelmente nítidas, é um grande ramo de rosas vermelhas, não sei porquê pois nem sequer gosto de rosas, são frescas, perfeitas, um pico está cravado num dos meus dedos, não sei se sangra mas nada muda, continuo a segurar o ramo exatamente com a mesma força antes de pensar na dor. entrei num quarto vazio, está escuro e longe da festa. através de uma janela, a única, passa um imenso clarão amarelo torrado, embora continue a estar escuro e frio dentro do quarto. não faço nada. talvez não saiba o que fazer talvez não queira fazer nada. através do clarão a paisagem é invisível. olho para o clarão sem dar um passo em direção a ele para me debruçar sobre a paisagem. creio que ficaria cega. o tempo passa em grandes ondas e eu permaneço indiferente. dias, noites, meses, estações, porém, sempre o mesmo clarão amarelo através da janela. tenho sede. reparo que não falo há muito tempo e quero falar mas não consigo. não me lembro de nada. talvez nunca tenha aprendido a falar. sou uma imperiosa controvérsia que quer instalar-se comodamente na sombra e conformar-se a ela. sei bem que o que vejo do mundo não passa de uma fantasia fugaz. a minha maneira de ver o mundo nada tem que ver com o mundo, a minha maneira de pensar constitui uma renúncia ao rigor do pensamento. uma incompreensível sucessão de fenómenos tornou o espaço artificial, mera sequência de planos, categorias, dimensões, consequências. não durmo. o tempo não passa mas mesmo assim gostaria de poder dormir.
My soul yearns after the Lord.

25 de dezembro de 2014

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.

24 de dezembro de 2014

da janela avisto uma paisagem reduzida de coisas. são poucos telhados, poderia contá-los, mas os suficientes para tapar a linha do horizonte terrestre. abro-a e debruço-me para fumar um cigarro. não há nada para ver desta janela. nada. nada se passa, nada acontece. a monotonia do que toca o solo deveria invariavelmente atrair os olhos para o céu, ele próprio ainda mais monótono.
desta janela vejo uma buganvília com flores cor de rosa. ontem, ao cimo da buganvília, vi umas flores brancas, de que gosto muito. com os olhos procurei o pé, escondido entre uma profusão de outras plantas foi difícil encontrá-lo. a trepadeira subiu toda a altura da buganvília tapada por ela, resistindo à falta de luz, e agora um pequeno cacho de flores brancas brilha acima dela.
regressei à noite. na escuridão apenas estão visíveis alguns pontos de luz, ao fundo. são candeeiros de estrada. hoje, mesmo no centro do meu quadro, havia um terraço iluminado. a luz, colocada debaixo de uma parreira, revelava a sua amplitude, que ecoava.
lufadas de fumo branco vindo das lareiras alastravam por toda a parte. empurrada por um vento ligeiro, uma dessas nuvens tocou nas minhas mãos.
a lua aparece cedo, primeiro muito alta e branca no céu, mais tarde equilibrada sobre os telhados. há dias estava cheia e completamente cor de rosa, uma das maiores luas que vi até hoje. ali mesmo, à minha frente, sem razão.
há três gatos nos telhados. um amarelo, grande, gordo. um branco, sujo, elegante. um cinzento, que aparece menos vezes, com ar de rufia. deitam-se ao sol e procuram troncos e galhos para se coçar. vigiam o mundo, soberanos, pachorrentos e implacáveis.
hoje depois de almoço vi um melro dentro de um buraco a escavar a terra com o bico.
os limoeiros estão carregados. que belos são os limoeiros. parecem estar sempre carregados, sempre cheios de fruta, sempre cheios de maturidade, sempre prontos.
em dias de sorte, quando abro a janela, o mundo está branco. perante o nevoeiro, oiço apenas. o coração vibrante.

20 de dezembro de 2014

na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. num braseiro o fogo nunca se levanta. as brasas são atiçadas, trocadas, sopradas e nunca incendeiam. isto fascinava-me, bem como o facto da cozinha inteira ficar quente apesar de não haver fogo mas apenas umas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. portanto, mal chegava o inverno começava a perguntar ¿quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia com um sorriso que nunca mostrava e prolongava a espera dizendo que tínhamos de poupar. depois um dia chegava do colégio e a cozinha estava quente. todo o tempo que podia ficar ali sentada, passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível olhá-las. o calor queimava a cara e fechava os olhos. procurava arranjar estratégias, nenhuma que funcionasse, sobretudo talvez para lidar com a minha própria ansiedade. quando finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando. apesar de tudo, era rápido. demasiado rápido. e havia sempre muitas cinzas, sempre me parecia haver mais cinzas do que inicialmente poderia ter havido carvão. mas as cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas, numa operação difícil e melindrosa, que reunia várias mãos e vários olhares. se as brasas acesas me davam a sensação de participar nelas, a frieza do carvão no saco de papel provocava um outro tipo de curiosidade. podia olhá-lo quanto tempo e sempre que desejasse. podia tocar-lhe ou não. podia dar-lhe outro uso, como escrever. intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o ao que existe. quando a minha avó não estava a ver, quebrava pequenos pedaços e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. dizia a mim mesma que alguma coisa no coração do mundo (e portanto em mim própria) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, na realidade apenas cinza. pensava-o sem temor, pelo contrário. não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. ser carvão, ser brasa, ser cinza. viver.

19 de dezembro de 2014

18 de dezembro de 2014

é curioso que toda a gente tenha histórias sobre viagens de autocarro. na paragem ou lá dentro, entre um e outro destino, a viagem no autocarro é uma oportunidade para se estar em suspenso. uma altura para tomar o lugar do observador de que sentimos falta na azáfama. no dia em que a minha história se passa, o autocarro circulava entre a Cidade Universitária e Benfica. era o meio de uma tarde de outono, não chovia. havia a doçura do tempo ameno e das folhas com cores intensas a encher a copa das árvores e a voar por toda a parte. a beleza, por toda a parte. que em muito contribuía para as minhas divagações à janela e tornavam o percurso delicioso. num desses dias, uma mãe que arrastava uma criança pelo braço entraram no autocarro. a criança não gritava nem gemia ou sequer dizia nada, o que seria legítimo da sua parte, dada a forma violenta como era arrastada. os gestos da mãe eram de tal modo impetuosos que, assim que entraram no autocarro, atraíram o meu olhar como um íman. vi que tinha o coração apertado. voltei a olhar através do vidro para me concentrar nas cores da cidade. para esquecer aquela violência. alguns minutos depois, a criança começa a falar:

— Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

julguei não ter ouvido bem. lembro-me de pensar que o autocarro estava cheio mas estranhamente silencioso naquele dia mas será que eu tinha ouvido bem. como que para desfazer as minhas dúvidas, a criança continuou:

— ó Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe!!! as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

quando fazia a pergunta olhava para a mãe e a cada pausa olhava através do vidro da janela do autocarro, em puro devaneio. a sua voz era lancinante. a mãe vigiava o percurso que o autocarro fazia e durante muito tempo nunca o desviou. até que finalmente, respondeu:

— claro que não!!! então tu não sabes já que não?!?

ou seja, a criança continuou sem resposta à pergunta que a dilacerava. continuou a olhar através do vidro durante o resto do percurso e ao sair do autocarro pela mão da mãe, perguntava novamente:

— Mãe, mas... alguém pode nascer duas vezes...?

senti-me atordoada. queria responder-lhe. não tenho filhos e não estou habituada à presença de crianças, talvez por isso não estivesse preparada para esta delícia — terrível — de um pensamento que nasce. não sei que pensamento era esse e tive pena de não poder ter aquela criança como mestre. a pergunta era fabulosa. no caminho para casa, lembrei-me do que dizia Milan Kundera sobre as perguntas, que as verdadeiramente importantes são as que formulamos na infância: são as que não têm resposta. lembrei-me de Dioniso, que pela vingança da ciumenta Hera sobre Sémele, foi retirado do ventre da sua mãe morta e cosido na coxa de Zeus, seu pai, para terminar a gestação e assim nascer uma segunda vez. quando nesse dia me deitei, estava ainda a imaginar a conversa que poderia ter tido com o menino. invariavelmente começava assim: «claro que sim! olha, vou dar-te um exemplo. há muito, muito tempo atrás, havia um menino...»

16 de dezembro de 2014

uma vez, ao sairmos de uma festa, uma pessoa disse uma frase que nunca mais esqueci. era uma noite de inverno, numa festa em casa de uma amiga de Lisboa, que vivia no cais-do-sodré. eu conhecia quase toda a gente e como sempre não falei com quase ninguém. dancei. quando começou a amanhecer, peguei no meu casaco e comecei a despedir-me, ainda com uma cerveja na mão. um grupo decidiu seguir-me e, cada um com a sua cerveja na mão, pegaram nos seus casacos. preparámo-nos para descer a longa escada de madeira poeirenta até à rua. ao atravessarmos a porta, uma mulher disse, como se ninguém a ouvisse:

— quando voltar a ter um pretendente vou-lhe perguntar: queres vir apanhar frio comigo?

todos riram e fizeram comentários. o que ela queria dizer era que dar passeios em noites de verão é demasiado fácil. cheia de admiração, não consegui dizer nada. foi como se tivesse despertado naquele momento. devia ser aquilo o amor.

15 de dezembro de 2014

quando ele entra eu já o esqueci. sabia, antes de ir, que era possível encontrá-lo mas o entusiasmo distraiu-me. quando ele entra estou distraída, despreparada. entra sozinho e tenho a impressão de ficarmos face a face por instantes. do outro lado da sala sou tão visível como se também estivesse sozinha. o que é um brilhante acaso, um filme não faria melhor, e me diverte. portanto ele vê-me imediatamente, sem me fitar, e dirige o olhar para o chão. desprevenida, o meu corpo reage, já não vou a tempo de o evitar. é raro isto acontecer. reparo, já a meio do movimento, que ajeito o corpo na cadeira e desvio o olhar para o chão. ele entra e eu desvio o olhar para o chão, arrumo o corpo na cadeira. uma felicidade, cuja perfídia já conheço, quer envolver-me. reparo que o meu sangue ferve subtilmente e isso revolta-me. digo não ao sangue. retomo.
tento esquecer-me da sua presença, não consigo e digo-me que aceitarei o que ela me provoca. assim, procuro imediatamente organizar o que sinto. voltamos a estar ali os dois, talvez seja uma outra sala mas é idêntica à antiga. não estamos juntos, não o acompanho, ele não me acompanha. já não sei quem é sequer, passou muito tempo, não tenho vontade de estar com ele. não entrámos juntos, não sairemos juntos. não fumarei um cigarro com ele na entrada do edifício. não o ouvirei falar, não falarei. com esse pensamento sinto um certo alívio. perturba-me o quanto passou a ser-me indiferente em tão pouco tempo, talvez esteja a perder qualidades com a velhice. sei que ele me procura. sei que uma parte dele também ali está por minha causa. sei que também ele esperava encontrar-me. vejo agora que quando se sentou, na única cadeira vaga e apressado, ficámos com um móvel entre nós, que o impede de me ver. sorrio interiormente. sei que ele tem necessidade de me ver e que não é tão teimoso que consiga evitar fazer por isso. eu sou mais. sorrio porque o acaso (o belo, belo acaso) me deu uma oportunidade de o comprovar. concentrada no que fui ali fazer distraio-me dele. volto a lembrar-me quando, na minha visão periférica, reparo num corpo que se estende para trás numa cadeira. é ele. espreita-me por detrás do móvel em meio. tivesse eu quinze anos teria olhado diretamente para ele nesse momento. já não sou tão feroz nem tão segura.
depois, contra mim, volto a ficar atenta a ele, que descobri poder ver na minha visão periférica. procuro imaginar o que pensa. talvez também esteja atento. mas não pode ler o que escrevo. também ele já não sabe quem eu sou. sei que imagina coisas que não são reais, sempre foi e sempre será assim. um rapaz ao meu lado fala-me, mostra-me um livro. ele parece indiferente. às vezes é mais importante não dizer do que dizer, não fazer do que fazer, como naquele dia, enquanto caminhava em direção a ele sob as árvores, foi mais importante que não tivesse olhado para mim do que se tivesse olhado, como se tentasse, obstinada e pretensiosamente, resguardar-se de alguma comoção embora mais tarde, à despedida, não renunciasse a um olhar ostensivo sobre o meu corpo e, de forma perturbante, a sua mão quase ganhasse vontade própria, deslaçando-me enfim sem outro remédio senão evitar tumultos. ou talvez isto fosse um puro engano. durante muito tempo eram contudo estas as coisas que me prendiam a ele. e portanto isso, essa ligação, a importância dessa ligação, minha e não dele, não nossa, toma agora relevância. são estas as coisas que me prendem a ele, pensei. estar aqui é importante porque te devolve o luto que ainda há a fazer. senti-me grata por isso.
a hora de sairmos aproxima-se. sei que ele quer apanhar-me à saída. sei que é apenas isso que quer, que não falaremos. sei também que pensa que quero fugir. mas eu não quero fugir. tudo nele se tornou expectável, previsível, repetitivo. desviei-me para outro caminho e o que daqui vejo tomou uma certa lentidão, muito curiosa de resto, ainda assim inesperada. não tenho pena, conheci-o. é fascinante. e conheci o opróbrio. conhecer o opróbrio reposiciona-nos no mundo. quando ele se tornou risível, voltei a ver-me. parte o devo a profundos silêncios, dolorosos, mas necessários. não explico nada a ninguém que não queira ouvir explicações. pensem o que quiserem. só se ilude e erra o alvo aquele que não ama. portanto vou em frente. o amor, se um dia chegar, chegará inteiro ou não será.
uma pessoa assoma à porta e pede para sairmos. todos se levantam ao mesmo tempo. se quiser sair, terei de passar por trás das pessoas que estão ao meu lado ou esperar que todos saiam. assim que me desvio para trás das pessoas, ele corre para a saída. sorrio interiormente e, ato contínuo, sinto medo. ¿medo de quê?, penso. ele vai estar lá fora, respondo. sossego-me. ele não quer falar, só te quer ver. e mostrar-se, sobretudo mostrar-se. para ele, estares aqui é confirmares que pensas nele em silêncio, à distância. ele quer confirmar a sua influência, o seu direito de propriedade, o seu poder. é apenas um homem. sossega. saio.
sorrio interiormente mal o vejo. está encostado a uma parede tem um livro nas mãos que aparentemente lê. o corpo está reclinado, o ombro esquerdo encostado à parede, o tronco voltado para a porta da sala por onde estou a sair, os pés cruzados e pousados praticamente a meio do corredor. apercebo-me imediatamente da simulação na postura. instintivamente talvez, sem pensar, estou a ir em frente, vou passar com um olá. vejo-me longe dele, muito longe, daquele ridículo também, tanto que não me ocorre senão prosseguir o meu caminho. mas estou tão tranquila que me estranho. já estou perto dele quando penso que tinha decidido cumprimentá-lo mas agora estou a ir em frente (¿porquê?) e não posso deixar de o cumprimentar com um beijo. vejo que ele próprio se sobressalta ao ver-me avançar meio passo além dele, ou talvez não tenha tido tempo ou lhe falte a atenção necessária para conseguir aperceber-se dessas coisas e o sobressalto fizesse apenas parte da indumentária escolhida para a ocasião. olhamos um para o outro. agora que o escrevo não sei porque me senti forçada a cumprimentá-lo e a aproximar-me dele, passo de enorme violência contra mim própria neste dia, neste momento. podia simplesmente tê-lo deixado cair de surpresa. na altura o que pensei foi que, posteriormente, seria estranho não cumprimentar uma pessoa com quem tive uma relação tão intensa. ou talvez cedesse apenas a não criar tumultos. prefiro a deturpação ao choque. meros caprichos não são aceitáveis mas não tive tempo para perceber se esta decisão seria um. pensei apenas que há que ter coragem na vida. a coragem vê-se é nestas coisas, quando um homem e uma mulher se reencontram depois de uma relação que acabou. agora, no entanto, não sei, creio que talvez não fosse verdade. cumprimentei-o por temer que ele me desarmasse, não sei como, se passasse por ele apenas com um olá. tive medo. falhei.
cumprimentamo-nos. ele sorri. tem um grande sorriso e não diz nada. baixa um pouco a testa, olha para os meus olhos. penso no gato Cheshire. quase lho digo e com isso me assusto. repentinamente sou arrebatada, a audição muda, creio que estou a sonhar ou a acordar de um sonho. receio dizer o que não quero (¿e que grave revelação estaria contida nesta imagem?) e fazer o que me horroriza. procuro tranquilizar-me, nem estás a sonhar nem disseste nada que contivesse revelações desastrosas ou humilhantes, avanço o rosto para o beijar. olá M. ele não responde. isso choca-me e não sei porquê. enquanto o digo, movimento o meu braço direito para tocar no seu antebraço esquerdo, que ele desencostou da parede quando endireitou o corpo para me cumprimentar. quero que seja um gesto cordial mas quando lhe toco temo que haja denúncia de algum carinho e não quero ser demasiado carinhosa. portanto hesito e assim que me vejo hesitar sei que ele sentiu o tremor da minha mão ao tocar-lhe no braço. ordeno à minha mão para ficar firme como um soldado. digo ¿tudo bem? a minha voz treme no meio do silêncio. olho para ele e percebo que talvez não estivesse atento à minha mão. (agora que escrevo isto, reparo que a única coisa de que me esqueci foi da mão dele, que talvez me tenha tocado quando nos cumprimentámos, não sei já onde nem como. ou talvez não. e queria lembrar-me). ele não responde. está muito concentrado em não responder. olha para mim com um grande sorriso. também estou a sorrir, não tanto como ele, espero, pensei. dirijo agora os meus olhos para o chão, vou-me embora, tarefa cumprida, o seu corpo, o seu livro nas mãos, estão já ao meu lado, avanço mais um passo, ficou para trás, e com outro passo onde as pernas me falham, como se fossem partir-se, ainda mais para trás, não me vê, sei-o, não me verá, sair do corredor, do edifício, da cidade a anoitecer, não sabe quem sou. ¿saberá?
estou a olhar para o fundo do corredor, à esquerda estão as escadas que conduzem à saída do edifício, não sei o que sinto, impossível pensar, estou perdida num corredor um simples corredor, a porta de saída está próxima, conheço o caminho mas não consigo sair do edifício, sequer do corredor, repugna-me a ideia de talvez não querer sair de perto dele, de um corredor de ar ao qual se misturou o seu cheiro, continuo a andar em frente, há uma porta que não sei onde vai dar, entro, é uma casa de banho. tinha estado lá à chegada e não me recordava. tinha-me achado feia ao espelho enquanto lavava as mãos e sacudi os ombros. dirijo-me ao mesmo espelho. vejo-me linda. parece outro rosto, mais fino, mais delicado, ligeiramente rosado, os olhos com um azul muito forte sobressaem, o cabelo louro cai em canudos sobre os ombros. não sei o que terá acontecido, estou espantada. ¿quem sou eu? respiro fundo, penso no que tenho de fazer. agora sais e vais-te embora. agora tens de sair. caminho muito depressa, com passos pesados, muito pesados, sólidos, receio que os meus pés adiram aos degraus de pedra, e ao mesmo tempo tenho o corpo muito leve, como se estivesse à beira de desvanecer-se. aos poucos, quando começo a chegar ao final da escada, começo a sentir-me segura para pensar no que sinto. estou indignada. ele não falou. isso surpreendeu-me. afinal ainda conseguiu surpreender-me. e no entanto, ¿que importa? reparo que também não falou durante as duas horas que estivemos dentro da sala e que no final da aula achei isso estranho. é raro ele não falar, gosta demasiado de se ouvir a si próprio. ¿porque não me disse olá? foi isso que me fez quebrar a voz e prosseguir com um ¿tudo bem?, que não teria existido se ele tivesse falado. não falou, não disse nada, nem antes nem depois. ¿porquê? que estratégia era esta e para quê, que necessidade havia disto. a resposta está sempre nele, penso. ele não está interessado em ti mas nele próprio. então rapidamente me recordo daquele conto onde sugeri que a sua voz me transtornava. creio que poderá ser isso. ou poderá ser que apenas se ache tão importante ao ponto de se tornar rude. achei-o rude, penso. agora começo a organizar toda a justificação mentalmente. achei-o rude e por isso me indignei. sempre achei que ele era gentil socialmente, pelo menos socialmente. sempre foi, pensei que voltaria a ser, como seria natural para um fim que se quer acabado e encerrado. mas havia violência nesse silêncio. e ao mesmo tempo fraude. era um silêncio artificial, imposto, forçado, destinado a mim. como se eu ainda existisse. revoltei-me porque não era silêncio, era uma fala muda. e por ainda haver alguma coisa em mim sujeita a isso, seja lá o que isso seja, a ele. nada há a dizer, duas vezes mo repete, a primeira tinha-me provocado um riso abafado, a segunda perturba-me, ambas são desnecessárias e ridículas. que homem, com tanto para dizer mesmo quando nada há a dizer.
estava finalmente cá fora. o barulho do trânsito envolvia-me como uma alegria que regressasse. livre. libertei a tensão dos ombros e deitei a cabeça para trás. caminhei assim durante algum tempo, até acabar a rua, a olhar para o céu. o frio do vento que tocava no rosto era agradável. o meu passo abrandava e tornava-se mais leve. eu sorria ao que me esperava.
cheguei ao carro e vi que todos os meus gestos eram definitivos: despir o casaco, guardar o casaco, entrar no carro, ligar o carro, arrancar, estou livre, vou sair desta cidade, posso sair desta cidade, que alegria poder sair desta cidade hoje, agora. já no meio do trânsito voltei a pensar nele. o que sentes, o que sentes, agora. e lembrei-me do corpo dele reclinado no corredor, demasiado reclinado. ele saiu rapidamente por tua causa. e encostou-se àquela parede para te ver passar. e no final do dia, isso é que conta. sorri, não apenas interiormente pois estou sozinha no carro. sorri um grande sorriso e, ato contínuo, vejo que no coração também sorri. isso enche-me de medo, não quero pontas soltas. então decido escancarar a porta e comovo-me com o que encontro. gostei de o ver. estava bonito quando entrou na sala, foi o que pensei, sem querer assumi-lo. é tão bonito. sorrio outra vez. ¿mas porque raio gostas tu tanto de homens bonitos, já te fizeram algum bem? e sorrio outra vez porque penso pois mas são bonitos. estou a salvo, segura. nada depende dele. e está a ficar careca, lembra-te, mas não me vale de nada, continuo a achá-lo bonito. ainda não cortou o cabelo desde que lhe pediste para o deixar crescer, talvez o corte agora, depois de ler isto. claro que não é por tua causa, mas porque se acha bonito. e é. ainda é. e claro que o cabelo comprido lhe fica melhor. mas está a ficar careca e gordo. por acaso hoje achei-o mais magro. foi isso que pensei quando me aproximei dele e do livro nas mãos. estava elegante. acho que talvez até estivesse a encolher a barriga. e tem um sorriso bonito. estas coisas sempre obliteram nele a crueldade. corpo manso, falas mansas. e tu uma palerma mansa com as costas tão largas que ainda serias capaz de rir de tudo com ele. incluindo de ti própria. tenho uma grande vontade de chorar. não sei se hei-de deixar-me chorar mas decido que sim, que quero deixar sair tudo. deixo e não consigo. não tenho lágrimas, não cai uma única lágrima, o que me frustra, porque sinto que qualquer coisa que quero por fora está trancada. ¿porque é que tenho vontade de chorar? não sei, não sei bem, não quero saber. estou farta deste luto, vivo numa passagem infindável da esperança ao temor à indignação. e esta esperança aterroriza-me. estou farta destas ondas e não quero voltar a naufragar. escolho preservar o melhor dele, que é a vida atrás do seu silêncio, é essa a única coisa que me interessa manter. talvez ele saiba isso, sim, talvez ele me conheça. ¿se lhe perguntasse a ele que música sou, o que me responderia? creio que não poderia responder. tenho saudades dele, de o ver rir, de o ouvir falar, animado, das suas elucubrações e do mundo, do terrível mundo. mais pelos seus gestos, entoações de voz e movimentos de rosto do que pelo que poderia dizer. ¿mas que importa? quero chorar porque essa é a derradeira forma do amor. não quero deixar de chorar.
estou a salvo e que desoladora me parece a minha salvação. nada se passa, estou de volta ao fosso, abençoado fosso. nem sequer tenho pena dele. cada um vive o que quer e eu estou a salvo. quando chego a casa começo a ficar zangada porque me confesso, quase à força, que ainda estou a pensar nele. entretenho-me a reconstruir o doce caminho entre mim e os pequenos sinais que me chegam dele, faço-o com certa paixão, como um detetive. certamente que estou continuamente a querer ver o que não está lá. o que foi feito para ser pensado não foi feito para ser amado. estou a sair do carro quando imagino este texto que decido imediatamente escrever. há que ter coragem para isso miúda, e logo vejo que a tenho. ¿e consegues? consigo, respondo. nem que eu fique uma noite inteira ao computador. está bem, escreves o texto. ¿e depois publicas? ai publicas, penso resolutamente, sem pensar muito. bom, primeiro escreve, sempre quero ver. vais-te esquecer, já sei como é. não esquecerei nada. e vou publicar. há que deixar sair tudo.