24 de novembro de 2014

Para os usos correntes da vida, os gestos da mão emprestaram ímpeto à linguagem, ajudaram a articulá-la, a distinguir os seus elementos, a isolá-los de um vasto sincretismo simbólico, a ritmá-la e mesmo a colori-la de inflexões subtis. Dessa mímica da fala, dessas trocas entre a voz e as mãos,
resta alguma coisa daquilo a que os antigos chamavam de ação oratória.

Henri Focillon, Elogio da mão.

23 de novembro de 2014

Comme la cible cherche la lance, à chaque fois, le tien c'est le seul nom que je cherche.
Regra geral, os homens esperam a decepção: sabem que não precisam de se impacientar, que ela mais cedo ou mais tarde chegará, que lhes concederá o prazo necessário para que se possam dedicar às coisas que estão a fazer. Assim não acontece com o desiludido, para quem ela surge ao mesmo tempo que o acto; ele não precisa de a aguardar, ela já está presente. Ao libertar-se da sucessão, ele devorou o possível e tornou supérfluo o futuro. «Não posso encontrar-me convosco no vosso futuro — diz aos outros. — Não há um único instante que nos seja comum». Pois para ele, todo o futuro está já ali. Quando percebemos o fim no começo, andamos mais depressa do que o tempo. A iluminação, decepção fulminante, concede uma certeza que transforma o desiludido em liberto.

Cioran, Do inconveniente de ter nascido.

21 de novembro de 2014

desde que Penélope passou a esperar decorreram vinte anos. o reencontro está para breve, Ulisses aportará à costa de Ítaca, sem rosto e sem caminho, para ser conduzido à porta de casa. mas isso ainda ninguém o sabe. em troca da sua perseverança, a Penélope resta por ora apenas um fio de voz. esqueceu, por exemplo, que o mundo não é apenas feito de silêncio, que a constância das estações e do labor não chega para disfarçar o terrível trabalho do tempo a dissipar-se e a adensar-se. ocorre frequentemente que confunda o princípio e o fim, como quando se senta para comer e percebe que já não tem fome ou quando acorda e vê que é novamente noite. há muito que decidiu fazer o mergulho — e há nisto certa perversão irrecuperável — numa indolência maciça, que a protege sem a embaraçar. as conversas que mantém são estranhas, transformando-se muitas vezes em monólogos misteriosos onde a angústia ressoa incompreensivelmente. o desejo imobiliza-a. Penélope não dorme, sonha. o vento está parado, o orvalho desceu sobre a areia na praia, nenhum pássaro canta, os criados dormem e uma mulher odeia profundamente os impulsos secretos do seu corpo, que a tornam irritável e sombria. inútil. nada mais que um animal plácido a envelhecer em face a uma tremura imperceptível, pura, embora há muito já não acredite na pureza. de pé ante uma estreita fronteira, os punhos cerrados e num incêndio.

20 de novembro de 2014

20.11.2014

Ao dobrar uma esquina entro numa avenida ladeada por grandes árvores. Tenho o sol à minha frente, o sol de inverno que olho diretamente através das copas completamente despidas. Caminho lentamente, fumo um cigarro. A avenida vai dar a uma praça com um jardim e uma escultura no centro. Sento-me num banco e escrevo, o autocarro que devia apanhar passa. Está um pequeno pássaro pousado num ramo, possivelmente um pardal. Entre nós, por muito que force a imaginação, nunca haverá intimidade. Tal como não há intimidade entre mim e as pessoas com quem me cruzo e troco algumas palavras. Daqui a pouco apanho o comboio. Há em mim uma dor imprecisa e uma alegria vaga. Ao fundo, um céu azul, com que me debato numa bifurcação interminável.
On ne pourra jamais faire voir à quelqu’un ce qu’il n’a pas vu lui-même, découvrir ce qu’il n’a pas découvert lui seul. Jamais sans détruire sa vue, quelque soit l’usage qu’il en fait, sa vue.
Ce spectateur, je crois qu’il faut l’abandonner à lui-même, s’il doit changer, il changera, comme tout le monde, d’un coup ou lentement, à partir d’une phrase entendue dans la rue, d’un amour, d’une lecture, d’une rencontre, mais seul. Dans un affrontement solitaire avec le changement.


Marguerite Duras, Le spectateur, in Les Yeux verts, 1980.

19 de novembro de 2014

Cloud classification goes all the way back to 1802, when British pharmacist Luke Howard first presented his paper, "On the modification of clouds”, in which many of the classifications we use today were first proposed, including cirrus, cumulus, stratus, and Nimbus. Almost a hundred years later, the colossal International Cloud Atlas was published, organising all known cloud types into four levels of classification, under which they’re grouped into a genre, species, and variety, sort of like how animals and plants are scientifically classified. This book is now the global standard for cloud classification, and since 1975, when the last edition was published, there has not been a significant change or addition to the classification system of clouds.
"Fortunately, the World Meteorological Organization is currently in the process of preparing the first new edition of the International Cloud Atlas in four decades. Finally, the Atlas will be available online - the clouds are coming to the cloud,” (...).
Duro caminho é o de saber que não há caminho.
O que há são fragmentos de rota que o tecido do acaso
une ou desune. Estar, andar. Identificar-se com as coisas,
com o tempo. Estar aqui, ali. Estar antigamente, estar futuro,
ou buscar-se no espelho onde não há espelho.
Isso é tudo.
Mesmo assim nos sonhamos, e sonhamos
um roteiro, um destino.
Não no espaço, ou no tempo,
mas na parte de nós, ah, tão frágil, que se devora
e, perdida, se salva.


Emílio Moura
que o sublime é o caos, e que nele apenas há absoluto, é a conclusão melancólica a que Kant chega e que parece ser constantemente obliterada em prol da moral reguladora. até mesmo os fascínios são dissolvidos perante a experiência silenciosa da beleza, de limiar decisivo, que nos liberta - enfim - da própria emancipação. é essa a comunidade possível, onde a identidade é uma incerteza, mera afinação de uma escuta e não uma construção. o íntimo desloca-se para o universal e o universal desdobra-se na estranheza, resposta inesperada, de uma alegria desmedida, porventura demasiado pura para o entendimento, que não nos deixa saber o que ela é para além de uma força que nos impele a deixar de ser e a aderir à expetativa que incessantemente é seu legado.
Chuva

Subitamente esta derrota.
Esta chuva.
Os azuis tornados cinzento
e os castanhos tornados cinzento
e amarelo
uma horrível cor de âmbar.
Nas ruas frias
o teu corpo quente.
Em qualquer quarto
o teu corpo quente.
Entre todas as pessoas
a tua ausência
as pessoas que nunca são
tu.

Estive à vontade com as árvores
demasiado tempo.
Demasiado familiarizado com as montanhas.
A alegria tem sido um hábito.
Agora
subitamente
esta chuva.

Jack Gilbert

18 de novembro de 2014

Cozido dentro do casaco de Blaise Pascal:

Mémorial
L'an de grâce 1654,
Lundi, 23 novembre, jour de saint Clément, pape et martyr, et autres au martyrologe.
Veille de saint Chrysogone, martyr, et autres,
Depuis environ dix heures et demie du soir jusques environ minuit et demi,
FEU.
« DIEU d'Abraham, DIEU d'Isaac, DIEU de Jacob »
non des philosophes et des savants.
Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix.
DIEU de Jésus-Christ.
Deum meum et Deum vestrum.
« Ton DIEU sera mon Dieu. »
Oubli du monde et de tout, hormis DIEU.
Il ne se trouve que par les voies enseignées dans l'Évangile.
Grandeur de l'âme humaine.
« Père juste, le monde ne t'a point connu, mais je t'ai connu. »
Joie, joie, joie, pleurs de joie.
Je m'en suis séparé:
Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
« Mon Dieu, me quitterez-vous ? »
Que je n'en sois pas séparé éternellement.
« Cette est la vie éternelle, qu'ils te connaissent seul vrai Dieu, et celui que tu as envoyé, Jésus-Christ. »
Jésus-Christ.
Jésus-Christ.
Je m'en suis séparé; je l'ai fui, renoncé, crucifié.
Que je n'en sois jamais séparé.
Il ne se conserve que par les voies enseignées dans l'Évangile:
Renonciation totale et douce.
Soumission totale à Jésus-Christ et à mon directeur.
Éternellement en joie pour un jour d'exercice sur la terre.
Non obliviscar sermones tuos. Amen.
Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


Murilo Mendes
quando Ulisses regressa a Ítaca, não a vê. está adormecido e quando acorda não a reconhece. alguém lhe repete o seu nome, mas Ulisses não a vê. talvez nem acredite que essa terra exista para além da sua memória.
a estação que o acolhe é doce e são sobretudo os cheiros que, a cada passo dos seus passeios, o levarão a reencontrar a cidade que mudou. o conforto de ninguém o reconhecer (mistério cujo desvendamento não para de adiar), fá-lo aventurar-se na redescoberta das ruas e na violência das suas memórias. de regresso, de regresso. a princípio olha apenas para o céu. as suas cores parecem-lhe mais vivas do que antes, mas não pode negar que este parece ser o mesmo céu que o guiou na sua viagem. depois começa a ver as coisas abaixo do céu. o musgo dos telhados. os pardais que em bando procuram comida no chão e não levantam voo à sua passagem. a silhueta ao longe de um lavrador. uma algazarra de crianças. o som dos seus passos sobre a terra, sobre Ítaca (repete a si próprio o nome). este é o céu de Ítaca e são estas as suas coisas. a pouco e pouco Ulisses vislumbra-se a si próprio na relação com elas e de certa maneira isso alarma-o pois, ao contrário dos perigos que encontrou, percebe agora que Ítaca é intransponível: não tem centro. é feita de camadas de imaginação. as folhas das tílias começaram a cair e é isso que permanece. de resto, tudo o que fez não passa de um esboço, como um quarto sem telhado. Ulisses caminha de rosto oculto e apercebe o extraordinário pelo mesmo movimento que o desfaz. 

17 de novembro de 2014

o palácio fronteira foi o lugar que mais amei ao longo de dezenas de anos em Lisboa, sem nunca lá ter entrado. não queria ir, queria amá-lo à distância, imaginá-lo, seguir o seu rasto como uma coisa viva. li muito sobre ele. há um ano, apenas, fui lá. aconteceu por mero acaso, falei nele a um amigo, que nunca tinha ouvido falar e me perguntou de seguida «queres ir lá amanhã?», convite a que, para minha surpresa, finalmente, o meu coração não se fechou.
entre as muitas histórias que li sobre ele, havia a história do seu proprietário Fernando Mascarenhas. conheço pessoas que o conheceram e me trouxeram essas histórias em segunda mão, desconhecendo no entanto o porte do meu fascínio enquanto as ouvia. achava curioso que a descrição do marquês exigisse tantos ou mais pormenores que a descrição do próprio palácio: as pessoas chegavam a descrever o tom da sua voz. morreu na semana passada sem que tivesse chegado a conhecê-lo. tinha julgado que era inevitável encontrarmo-nos um dia, que por dezenas de anos que passassem haveria de chegar o dia certo, e lamentei que não fosse também ele um palácio, com paredes sólidas e um cortejo de gerações a cuidar da sua manutenção. no dia em que visitei o palácio fronteira, fiquei a saber também por acaso, que ele estava numa sala contígua àquela em que me encontrava. na altura bastou-me isso, decidi que não o veria nesse dia. hoje deparo-me com a força da fatalidade, imensuravelmente superior à do meu destino, pois até as nossas fantasias lhe pertencem.
que digo... até? mas o que é o meu destino senão uma fantasia do princípio ao fim? todas as portas que atravesso, as pistas que persigo, estes sons que redefinem e transfiguram o espaço, estou a sonhá-los, a imaginá-los. são eles a única coisa que entendo em estar viva, o mundo escapa-me com violência. não sei, não posso explicá-lo, não posso entendê-lo. sem dúvida por isso ele ainda me espante.



Ângelo de Sousa, A Mão, 1972.



Ângelo de Sousa, Sem título (mão), 1973.
Ir além dos limites consiste em pôr-se à prova em relação à sua identidade, etc., em relação ao fechamento das suas fronteiras.

Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado.
(...) a pessoa perspicaz, a quem interessa o fenómeno vivo e não a palavra (...).

Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens
voltei a sonhar com as minhas mãos e, como sempre, quando acordei não me lembrava. foi quando estava a ver um vídeo na exposição da Sara & André que as imagens voltaram, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se, porém já irrecuperável e inacessível.
o vídeo chamava-se mãos, cabelos e primeiro vi os cabelos. no topo de duas cabeças que se moviam lentamente, o brilho dos cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados diante de um fundo negro. enquanto assistia, automaticamente imaginei as mãos, antes de aparecerem. imaginei dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. mal imaginei a imagem, dois pares de mãos aparecem no écrã que, para meu choque, se tocavam. tocavam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha imaginado a possibilidade de se tocarem. o meu sonho reapareceu nesse momento, confusamente, esparso e em simultâneo às perguntas. porque nem me ocorreu que as mãos se pudessem tocar? de contrário, na minha imaginação, separei-as claramente, exatamente como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada. umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, escarafunchar, amassar, apalpar? que função lhes reservo para além dessa, que a torna impura e impede? terei destituído as minhas mãos de qualquer função?
no meu último sonho aconteceu uma coisa que nunca acontece, aconteceu aquilo que não pode acontecer, aquilo que é proibido, tabu: verem as minhas mãos. a mera sugestão da possibilidade de tocá-las é já o horror que transforma o sonho num pesadelo de tal forma insuportável que me escondo imediatamente na vigília. um ver que é tocar, um ver que me atinge, me fere.
enquanto caminhava na rua pensava nas minhas mãos e em como novamente não devia ter saído de casa sem as arranjar. precisava de cortar as unhas, cortar pequenas peles que crescem sobre as unhas, cortar todas estas coisas que continuamente crescem e se estendem a partir delas. excrescências que, se descontroladas, podem privar-me da sua existência - talvez devesse colocar sua entre parênteses - como no sonho em que as mãos se transformavam num casulo de pele branca. eu pensava nisto e de vez em quando olhava com repulsa para elas, repulsa e vergonha, quando subitamente, a pessoa que caminhava a meu lado, também as vê. assim que as vê olha-me nos olhos e diz «tens de arranjar as mãos.» não chego a responder. acordo.

13 de novembro de 2014

The words the happy say
Are paltry melody
But those the silent feel-
Are beautiful-

Emily Dickinson