11 de setembro de 2014

Hoje no jardim do Príncipe Real, entre as barracas montadas com roupa à venda, debaixo da samaúma ao lado dos quiosques, estavam dois holofotes mecânicos a apontar para o céu. A música, eletrónica, também soava como numa discoteca, mas as pessoas pareciam nem a ouvir, sentadas nas esplanadas, descontraídas, a conversar. É a segunda vez que encontro um jardim assim recentemente. Na Estrela, há algumas semanas, a música estava tão alta que para meu pasmo o som da vibração do metal que contorna o jardim se misturava ao ritmo alucinante. Nesse dia, não consegui sequer perceber que tipo de música era. Creio que soavam várias ao mesmo tempo ou pelo menos assim pareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
Chove mas a roupa sobre o corpo é ligeira, a janela está aberta em par para um céu branco. O outono chega com o seu esplendor taciturno e não há em mim outra vontade para além da de lhe obedecer, como se obedece a um segredo. Quem poderia ter antes sabido que a felicidade é o contrário do desespero e que toda a vida foi desespero? Sigo pela escuridão desprezando o mundo e a minha alegria nasce de me abandonar a mim própria. Sou uma resposta a um chamamento mais ténue que estas nuvens, que estão no céu para dar a impressão de nada lá estar. Sou um ouvido que escuta um som e se deixa conduzir por ele e todavia tudo é silêncio e quietude. Não tenho deuses. Não estou no espaço nem no tempo, desconheço a dúvida e a interjeição, nenhum sonhar me atormenta. Apenas entendo o que é ignoto e nisto reconheço grande fragilidade, pois enquanto aprendo a respirar delicadamente descubro que a delicadeza tem poder. Para diante nada, tudo branco, nenhum contorno. Não há escolta neste som, em tudo improvável. Prossigo independente, certamente direção a nenhures, mas quem esculpiu a minha embarcação atribuiu-lhe a vontade indivisível de ceder a apenas um vento.

10 de setembro de 2014

Quando me perguntam se gostei de viver em Paris, costumo dar a resposta mais complicada: que não. Naturalmente que gostei de coisas em Paris. Da luz cinzenta, dos boulevards, de Clunny, dos jardins onde se deixa de ouvir o trânsito, dos passeios à beira do Sena, das livrarias, do preço dos livros, dos cinemas que passam sempre o mesmo filme, dos museus e sobretudo de uma sensação extrema de possibilidade por parte da minha sombra que, frequentemente deixada de parte, parecia agora regozijar-se por se sentir integrada. O melhor de Paris não era que tudo era possível, era que tudo estava a acontecer. A diferença não podia ser mais abissal. Ainda assim, aquilo de que abdiquei não chegava a ter o peso de uma pena perante aquilo que recuperei ao regressar a Portugal.
Costumo contar uma história depois de responder à curiosidade, para que as pessoas possam ter algum indicador do que é estar efetivamente a viver em França. Conto sempre a mesma história e começo sempre por oferecer primeiro um dado, ao mencionar que o que vou relatar de seguida me aconteceu precisamente dez vezes ao longo dos quatro anos que lá vivi. Não tenho dúvidas de que uma história, por real que seja, e mesmo quando é contada na primeira pessoa, não passa de uma ficção para os outros, portanto não me surpreende que a tendência dos meus ouvintes seja para desdramatizar o conteúdo. «De certeza que não é assim tão mau», respondem frequentemente, evitando já olhar-me nos olhos, pois concerteza estarei a inventar ou a sobrevalorizar o que não merece destaque. Na altura em que isto me aconteceu, fiz questão de me lembrar para contar. Como a memória é traiçoeira e nela não me fio, percebi que podia escolher esta situação a partir do momento em que ela se reproduziu uma segunda vez, num local e tempo completamente distintos da primeira, esta que me fez entrar num choque profundo, cuja vergonha, de uma profunda indecência, nunca vou esquecer.
Portanto os franceses gostam de fazer jantares. Entre o frio e o individualismo não sei qual é a motivação mais forte, mas o certo é que é hábito generalizado organizarem-se grandes jantares em casa onde o ambiente a maior das vezes comedido, não chega para dissimular a avidez por extravagância. Para mim, que oiço mal, tanto melhor. Não tinha de passar a noite toda a fingir que tinha percebido o que me tentavam dizer no meio de um ruído absurdo. Chegada há pouco, eu era sempre uma estranha para a maioria dos convidados, despertando atenções ferozes e gerando um murmúrio animado. Até que finalmente alguém se aproximava e começava a falar.

Como te chamas?
Marta.
O que fazes?
Estudo Filosofia.
Ah bom? Onde estás a estudar?
Na Sorbonne.
(Neste momento os olhos do interrogador brilhavam mais intensamente, que ganhava impulso para mais perguntas).
E tens bolsa? Ou estás a trabalhar?
Tenho uma pequena bolsa mas também trabalho, numa Mediateca.
(Descontraído). És de cá?
(A pergunta era motivada pela minha falta de sotaque e pretendia descobrir se tinha nascido em Paris ou noutra região francesa).
Não. Sou portuguesa.
Ah, és de origem portuguesa. Mas nasceste em Paris?
Não. Sou portuguesa de origem africana. O meu pai é português, a minha mãe é angolana e eu nasci em Portugal. Estou cá há pouco tempo.

E com esta frase, os meus interlocutores voltavam costas. Quando não havia nojo no olhar deles, havia uma terrível incapacidade de simplesmente continuar a conversa: não podiam pensar. Voltavam costas balbuciando com os seus botões que era impossível. Impossível que uma pessoa loira de olhos azuis tivesse origens africanas. Impossível que uma portuguesa falasse a sua língua sem sotaque. E sobretudo, impossível que esta pessoa estivesse a estudar na Sorbonne e a trabalhar.
Situações como esta eram vividas quotidianamente por quem não podia disfarçar a sua condição de emigrado, ao ponto de uma senhora de bengala empurrar de um banco na paragem do autocarro uma mulher com burka para o chão, uma das últimas alucinações que vi. Ao ponto também dos mais conceituados intelectuais, entre outros destacados membros da alta sociedade parisiense, fazerem correr tinta nos jornais ao longo de praticamente um ano, porque havia miúdos a usar peças da marca Lacoste. Miúdos, leia-se, filhos de emigrantes. La racaille. Uma tão prestigiada marca não podia ser democratizada, tinha de permanecer ao uso das elites, pelo que se estudava o aumento de preços ou mesmo a retirada do mercado de certas peças. A forma como estes miúdos falavam (como se abrasileirassem o francês, introduzindo expressões novas, modificando a pronúncia de algumas palavras e resgatando o calão), bastava para o justificar: era a própria língua francesa que estava perdida se não se tomassem as devidas precauções. No ano em que regressei, protegendo-me de dar mais explicações com a minha tendência para a provocação, quando me perguntavam se tinha gostado de lá estar a viver, respondia simplesmente «Num nada as ruas de Paris vão estar a arder.», o que num nada aconteceu, nas banlieues. Para mim era evidente que os franceses possuem uma espécie de ressentimento com origem na segunda guerra. Há neles um desejo de vingarem a história através da sua confirmação, pois um francês não pode deixar de ter razão: e os franceses foram delatores. A arrogância de um francês é a última a morrer, era a moral da história de uma anedota corsa que costumava ouvir. O silêncio e a paz da ocupação Nazi tornaram-se infecciosos com o final da guerra. E só há um destino para uma infeção: espalhar-se.
Parece haver contradições nesta história, quase posso ouvir-vos pensar. Afinal eu estava a trabalhar, a estudar e sobre isso não menciono quaisquer problemas, pelo contrário. As leis em vigor para a comunidade europeia, que estabelecem a livre circulação de bens e de pessoas, estavam implementadas há muito. Estudar num país da comunidade europeia é em princípio tão simples quanto pedir a transferência de um processo de uma faculdade para outra e passar com uma nota suficiente o exame da língua na faculdade escolhida. Conseguir trabalhar pode ser mais difícil, há que perseverar nas buscas, o que leva tempo, e esperar por um golpe de sorte, mas isso é assim por definição. Foi o que fiz e a certa altura fiz até outra coisa: casei com um francês. Santifiquei-me aos olhos das instituições. Com uma carta de séjour nas mãos, ninguém tinha poder para me vedar o acesso a nada. E tive prazer na minha mesquinhez, ao ser capaz de deixar os franceses enxovalhados por frequentemente conhecer melhor do que eles a língua que tanto dizem amar.
Em conversa recente com um amigo, fiquei a saber que uma amiga em comum considera regressar a Portugal, após cerca de 16 anos de vida em Paris. Confessava-lhe ela que o bloqueio nunca tinha sido quebrado e que assim que abre a boca, denunciando o seu sotaque, as pessoas deixam de a ouvir. Parece que em 16 anos não mudou grande coisa. Mas que belos são os boulevards.

9 de setembro de 2014

Quando a primavera começava, a minha irmã e eu demorávamos mais tempo a chegar a casa da minha avó para almoçar. Pelo caminho estávamos atentas às flores que podíamos comer e que pendiam dos arbustos nos quintais ou nasciam em bermas de estrada. Comê-las era o resultado de uma aprendizagem que agora podíamos continuar a desenvolver. Ou seja, por vezes comíamos o que não devíamos. As primeiras a aparecer eram amarelas e cresciam por toda a parte mal despontavam os primeiros raios de sol. Arrancávamo-las sem raiz e mascávamos o caule ácido deixando a flor. As preferidas eram cor de laranja mas tínhamos de esperar o início do verão para as começar a ver. Em forma de trompete, nasciam em cachos numa trepadeira que caía dos muros. Dentro guardavam uma espécie de mel, tão doce que tínhamos de afastar as formigas antes de o sorver. Cuidando de não estragar as pétalas, que continham o licor, soprávamos para as expulsar e sorríamos uma para a outra num silêncio cúmplice, antes de dar destino às que estavam coladas. Bebíamos como de um copo e porque o prazer era curto arrancávamos outra de seguida.
Sei que alguma criança, porventura numa aldeia portuguesa, continua a saber comer flores. Mas os adultos que as ensinam são quem admiro profundamente. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Kafka não tem imaginação; é um cérebro privilegiado capaz de esgotar um assunto desde que ele lhe seja sugerido. Problemas como a educação, a liberdade, a servidão e o amor, são-lhe oferecidos por Walser numa obra curta e original.

Agustina Bessa-Luís, Um Presépio Aberto in Contemplação carinhosa da angústia.

8 de setembro de 2014

A sua admiração já se tinha denunciado em encontros anteriores mas até dele eu a mantinha em segredo, para que nada, como poderiam a sua vergonha ou medo, viesse corromper o que é puro. Tinha certo contentamento nela, que me fez compreender que a paixão ignora convenções e decretos. Isso não me assustava ou impacientava, pois o tempo ainda era tido por um mar seguro, onde as tempestades se atravessam e nunca fazem naufragar. Reconheci no entanto imediatamente nesse contentamento uma forma de correspondência espontânea a uma admiração que eu não tinha escolhido. E isso era novo. A consciência dos olhares dos homens adultos sobre mim era terrível, um conjunto de ameaças de que tinha de me desviar em permanência. O dele não. Naturalmente que por ser uma criança o seu desejo não transportava qualquer ameaça. Ele iria crescer e esquecer, pensava eu, e não havia qualquer razão para reprimir o que era tão belo.
Quando naquele dia o vi chegar à festa, estranhei que viesse tão bem vestido, com um fato azul e uma pequena gravata impossível de compor, o cabelo muito penteado com gel. Foi mais tarde que percebi a escolha, depois de já termos estado a falar e a repicar da mesa juntos. Eu estava sentada e do outro lado da pista de dança improvisada, o pai e o irmão falavam-lhe ao ouvido enquanto ele olhava para mim a sorrir. Depois a sua agilidade em desviar-se das pessoas que dançavam para chegar perto de mim, a mão estendida, o rosto vermelho, e um convite para dançar. Dancei a noite toda com ele e não queria ter dançado com mais ninguém. Não o conduzi, nem quando demos a mão para ir comer. Havia no meu sorriso uma felicidade submissa e ele sabia-o. Imponderavelmente, o meu contentamento estava a nu e a sua correspondência fez de mim a mulher mais feliz naquela sala.

6 de setembro de 2014

Os momentos que estabelecem connosco uma modéstia infinita são o que vida tem de inegociável. É sobre eles que quero escrever, embora saiba que há nisto certa veleidade, pois são da natureza do irrecuperável, como as coisas mutiladas.

4 de setembro de 2014

A cultura mediterrânica não é uma cultura trágica. A sabedoria não substitui a ciência como fim supremo e, quando nós encaramos a obra de Dante como expressão do trágico, é porque a grande cultura tem sempre qualquer coisa em comum: a grande dor, que faz o homem descer às últimas profundezas e despojar-se da sua confiança. O acto criador é um acto a que falta confiança. 

Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.

2 de setembro de 2014

sem começo
ou resultado
a fábrica pondera

1 de setembro de 2014

A sensação dominante em quem tem asco dos animais é a do medo de ser reconhecido por eles quando se lhes toca. Aquilo que, no mais fundo de nós, nos horroriza, é a consciência obscura de que em nós alguma coisa vive, tão pouco estranha ao animal que nos causa asco que ele a poderia reconhecer. Todo o nojo é originalmente nojo do contacto.

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento


Quando era criança, tinha tanto medo de cães que bastavam uns segundos diante de um para que o animal reagisse, invariavelmente, atacando. Se alguns ataques seguidos me fizeram começar a receá-los e mesmo a conseguir antecipar a investida no olhar do animal, outros não deixaram de me surpreender, como no dia em que descia uma ladeira de bicicleta e um pequeno cão preto sentado no passeio saltou do seu sossego para vir enfiar os dentes na minha perna, que já não largou apesar de pedalar energicamente, fazendo-me desistir do meu equilíbrio para me defender. Guardo portanto pequenas marcas de várias mordidas, nenhuma suficientemente grave que tivesse convencido o meu pai a desistir de me transformar numa amante do melhor amigo do homem.
O meu pai sempre teve uma paixão por animais, especialmente por cães. Conheci-lhe vários em diferentes fases da vida, uns rafeiros outros de raça, uns comprados outros oferecidos por amigos, uns pequenos outros grandes. Era frequentador de concursos e exposições de canicultura, onde eu também era chamada a ir. Entrava no parque de diversões mais aterrador do mundo forçada a controlar o meu pavor, para que não se tornasse em pavor do meu próprio pai: de o desiludir e de, em consequência, ver a sua fúria abater-se. A pressão era tanta que tenho agora a sensação de mal respirar.
Em minha casa sempre houve cães. Na maioria das vezes ficavam presos na cozinha ou no quintal, mesmo quando eram considerados meigos. Mas essas trelas nunca eram suficientemente curtas e muitos desses dóceis animais tiveram de sair de casa por me atacarem constantemente. Houve alturas em que o meu medo ameaçava atingir proporções incontroláveis e eu não dormia pensando que no dia seguinte teria de passar novamente a meros centímetros do bicho para entrar na cozinha e tomar o pequeno almoço. Os dias eram preenchidos por provas constantes, como esta. Talvez conseguisse passar, talvez não. Talvez conseguisse fazer uma festa se me obrigassem, talvez não. Talvez o animal me ignorasse, talvez me rosnasse. Numa coisa, no entanto, nunca acreditei: que iria deixar de ter medo. Apesar de todas as tentativas do meu pai e dos anos que passavam, tudo o que conseguia era tentar fingir o mais possível e o melhor possível. Mas esse medo, sentia-o definitivo. E de que tinha eu medo?
A pergunta angustiou-me anos a fio. De que tinha eu, afinal, medo? Ter medo de um grande Retriever de Labrador negro pode até, se puderem usar da vossa benevolência, ser compreensível. Mas que medo se pode ter de um cão de pequeno porte cujos latidos não chegam a acordar as moscas? Mesmo quando ganhava coragem para falar nisso, as minhas explicações, francas e cuidadosas, não eram compreensíveis, ou pelo menos não surtiam consequências. Os cães foram aparecendo e ficando, até que finalmente um deles me mordeu tantas vezes que a minha mãe ganhou coragem para formular a frase inteira diante do meu pai: «Não podemos ter o animal aqui em casa.» E eu tinha pena do animal ter de sair, um cão rafeiro de porte médio a quem chamámos Bolinhas, cujo dono anterior tinha maltratado. O meu pai explicava-me que era para se defenderem que atacavam. Explicava-me que era por pressentirem o meu medo que reagiam e que se eu não demonstrasse medo, nada acontecia. Mas eu tinha medo na mesma e não percebia. O meu medo não tinha tido origem numa mordida de cão. Era anterior. Não acontecer nada não fazia sentido, pois o meu medo original não era medo do ataque. Na minha inocência, eu pensava: «Se eles o pressentem, bem posso pretender demonstrar que não o tenho.» O que o meu pai me queria fazer perceber, concluía então, era que podia transformar o meu medo, podia erradicá-lo. Erradicar o meu medo definitivo. Creio que poderei ter considerado ser essa a mais incontestável prova de amor, que é a mais excelente de todas as coisas. E havia que prová-lo. Só podia ser essa a razão para que, depois do Bolinhas, tivéssemos continuado a ter cães e não um gato, como eu tanto pedia ao meu pai. «Um dia trago um gato!», dizia a rir-se e fazendo-me rir, aumentando a minha expetativa, mas voltava sempre com um cão.
À entrada do inferno está um cão com três cabeças que sofre de enxaquecas contínuas. Não sei onde a li mas nunca mais esqueci a frase. Quando pensava no meu medo começava por pensar nisto, existe um cão à porta do inferno cujo olhar múltiplo está cego pela dor. Tinha esperança de poder desvendar certo segredo a partir dela, pois me parecia ser idêntico àquilo que o meu pai me tentava explicar. Tinha também um certo fascínio por este animal mitológico, cuja dor, que eu bem sabia ser terrível, era exponencial e ininterrupta. Quem me negaria que todos os cães pudessem sofrer do mesmo mal? E que o inferno não seria a origem ou o destino de todos eles? Sem dúvida, pelo visto, era o lugar.
Continuei a tentar modificar o medo muito depois da separação dos meus pais. Assisti a inúmeros programas televisivos sobre cães, li livros sobre treino de cães, ouvi atentamente os donos falarem sobre a sua personalidade. Mas os truques não funcionavam comigo e os cães continuavam a pressentir o medo, desatando a latir ou atacando. Já crescida, cheguei a decidir que simplesmente não voltaria a ser mordida nem nenhum cão me faria atravessar a estrada para fugir dele: se algum me atacasse, sofreria de volta o meu ataque impiedoso. Afinal, agora eu era maior que eles, pensamento que funcionou até me encontrar num pequeno apartamento ao lado de um Grand Noir, que felizmente era o cão mais pachorrento do mundo e se estava nas tintas para se eu tinha medo dele ou não: com medo ou sem medo, ninguém naquela casa tinha dúvidas sobre quem tinha mais poder e pese muito embora essa realidade, quando o vi a primeira vez ele dormia ao lado do berço de um recém-nascido. Não fiz qualquer confissão sobre o meu horror pois percebi, não sem alguma incredulidade, que ele ainda me dominava. O último cão que tivemos, uma cadela Teckel de pelo curto chamada Boneca, conseguiu contudo estabelecer comigo uma amizade admirável. Nunca me atacou, pelo contrário, defendia-me dos outros cães. Mas rosnou-nos uma vez, quando teve filhos, e respeitando o aviso a minha mãe disse-nos que não podíamos entrar onde ela estava. Quando morreu, atropelada por um bêbado ao volante, sofri como se tivesse sido uma pessoa a morrer. Nem ter tomado a decisão nem a Boneca, erradicaram o medo ou o tornaram mais compreensível. Continuo a saber que posso voltar a ser atacada a qualquer momento e a pensar nisso de tempos a tempos. Aprendi contudo a controlar a angústia mas não sei até que ponto essa terá sido uma aprendizagem positiva. Viver sem angústia é viver cautelarmente, e a excessiva cautela com a vida é uma patética fraude da inteligência. Quando há um ano atrás vi a frase do Benjamin, percebi que tinha encontrado a resposta para o meu medo justamente porque ela deu lugar a uma angústia nova.