4 de janeiro de 2018

cansaço

diz-se no livro Um Homem Apaixonado, de Karl Ove Knausgård, que não vale a pena escrever se não for para ir a um lugar desconhecido. cito de cor, mas creio poder dizer com segurança que não erro. fiquei com a frase na cabeça assim que a li e tenho pensado nela desde aí, perguntando-me, confesso, se chego a lugares desconhecidos quando escrevo e, assim, se pode chamar-se literatura aos textos que crio. sempre me pareceu uma palavra demasiado pretensiosa e o que faço, seja lá o que for, o contrário disso. não sinto necessidade de nomear aquilo que faço, de saber o que é. durante todo o dia penso em escrever, desde que acordo até adormecer. por vezes anoto pequenas frases ou ideias, mas por norma escrevo mentalmente com o material do mundo até que ele adquira a força que procuro, altura em que tenho de o expelir. para chegar a essa fase, contudo, esse material tem de vencer o cansaço com que se resguarda. é essa a grande batalha, aquela em que se forma uma palavra com a força suficiente para dar origem a um texto. é essa palavra que não sabemos onde nos levará.

3 de janeiro de 2018

ratos

nas traseiras do prédio onde trabalho, da janela onde vou para fumar, vê-se uma ruína de uma casa térrea e um prédio com seis andares cujas paredes se aguentam sustentadas por andaimes enferrujados. no meio da vegetação que cresce bravia faça chuva ou faça sol e sobre o telhado da casa, vejo muitas vezes ratos com as suas maneiras assustadiças à procura de comida. à distância que estou, do outro lado da rua e no quarto andar, não tenho nojo. acontece o mesmo com certos textos: se não estivermos a uma boa distância, a enxurrada racional impede-nos de os escrever. pelo contrário, assim como estou, tenho até deleite em observá-los a correr de um lado para o outro, levando de vez em quando à boca as patas dianteiras e sou mais feliz quando fumo a ver ratos do que quando não os vejo.
Put all those nasty thoughts you have to use:

If someone asks me, “Why do you write?” I can reply by pointing out that it is a very dumb question. Nevertheless, there is an answer. I write because I hate. A lot. Hard. And if someone asks me the inevitable next dumb question, “Why do you write the way you do?” I must answer that I wish to make my hatred acceptable because my hatred is much of me, if not the best part. Writing is a way of making the writer acceptable to the world—every cheap, dumb, nasty thought, every despicable desire, every noble sentiment, every expensive taste.

21 de dezembro de 2017

é sempre um pouco mais longe e nem sempre vale a pena lá chegar, mas ocasionalmente, entre os risos, uma palavra é deixada no eco de outra que não é nossa e o amor aparece, fulgurante, do nada.

20 de dezembro de 2017

quando escolho um tema para um texto a minha atenção sobre ele muda, de modo que o texto se vai revelando à medida que o escrevo. por vezes demora muito tempo, mesmo que seja um pequeno texto, porque a atenção alimenta-se a si própria e cresce. mas sempre que tenho ideias preconcebidas ou interditos sobre o que dizer bloqueio e o texto não passa do rascunho.

outra nota: uma escritora que conheço disse-me que tem um espaço de trabalho em casa de onde se ausenta para espairecer. não consigo imaginar a escrita como um trabalho de que queira distrair-me.

13 de dezembro de 2017

Nós estamos entregues uns aos outros. Todos os nossos sentimentos, vontades e desejos, toda a nossa constituição psíquica individual, com todos os seus esconsos recantos e duras superfícies, de certa maneira, tornou-se mais rígida cedo na infância, quase impossível de romper, e defronta-se com os sentimentos, vontades e desejos dos outros e com a sua constituição psíquica individual. Apesar de os nossos corpos serem simples e flexíveis, capazes de beber chá pelas mais finas e delicadas porcelanas chinesas, e de as nossas maneiras serem boas, de modo a sabermos o que as diferentes situações exigem de nós, as nossas almas parecem-se com dinossauros, são volumosas como casas, movem-se pesada e lentamente, mas se tiverem medo ou ficarem zangadas são perigosíssimas, não têm qualquer escrúpulo em ferir ou matar. Com esta imagem quero dizer que, se tudo parece inspirar confiança por fora, no interior acontecem sempre coisas bem diferentes, e numa dimensão bem diferente. Enquanto uma palavra no exterior é apenas uma palavra que cai ao chão e desaparece, uma palavra pode tornar-se algo de enorme no interior e permanecer aí durante muitos anos. E enquanto um incidente no exterior é apenas um incidente, frequentemente previsível e sempre depressa ultrapassado, pode ser totalmente decisivo no interior e provocar medo, que paralisa ou provoca azedume, que paralisa ou, pelo contrário, provoca temeridade que não paralisa, mas que pode conduzir a uma queda.

Karl Ove Knausgård, No Inverno.

11 de dezembro de 2017

Scrivere è una cosa completamente priva di senso. Scrivo per inerzia, perché ho sempre scritto.

Pier Paolo Pasolini
no meu livro de horas um gato atravessa uma ponte sob a qual passa um rio tumultuoso e cinzento, que se enrola em pequenas ondas com espuma. não se vê nada do leito lamacento, pensa-se que poderá haver peixes, girinos, plantas, mas na realidade, quanto a isso, não se passa da incredulidade. quando o gato alcança a outra margem, caminhou durante anos e tem fome. estamos um perante o outro e já prestes a separar-nos, pois preparo-me para iniciar a minha própria travessia. iniciamos com o nosso encontro um inóspito trabalho de memória que a água lá em baixo se encarrega de desfazer. antes de partir repousamos, sem sono nem exaltação, e nos nossos sonhos outros animais aparecem: um urso, um tigre, um galo, um homem que procuramos decifrar. contudo, cada palavra que usamos o apaga um pouco mais, e assim, esquivo e sem finalidade, observamo-lo entrar na floresta pela manhã e estilhaçar-se. sem me despedir do gato, entro na ponte e vigio as suas margens. o rio não cessa de bradar e eu penso nos peixes que nunca vi. não vou ainda a meio quando, cansada do meu silêncio, encontro um espírito que se aloja em cheio no meu centro. perturbada e comovida, não paro de caminhar quando me começa a falar da imensidão de branco que vê. debruço-me sobre um dos muros da ponte procurando preenchê-lo com o desenho do rio tormentoso, de folhas caídas, troncos que leve, rochas a descoberto, mas nada disso é meu. faltam poucos anos para chegar ao fim da minha travessia quando se cala. a sua última palavra tinha a densidade do segredo, de qualquer coisa que sulcou as águas inavegáveis e fez cair a minha máscara.

10 de dezembro de 2017

If you have ever stood in a room in front of a painting by Munch, or Van Gogh or Rembrandt for that matter, you will know that part of the painting’s magic is that it brings together its time and yours, its place and yours, and there is comfort in that, because even the distance that is inherent in loneliness is suspended in that moment.

Karl Ove Knausgård