20 de agosto de 2017

enquanto acendo um cigarro, o gato salta lentamente da mesa para o chão e desaparece para a varanda. ocorre-me à memória, ainda que de forma vaga, os rostos de um homem e de uma mulher que deixei de ver. o sol está a pique e eu, mais lenta que o gato, enquanto olho para a página em branco, penso na mulher que me disse que «[isto] não é como literatura, há uma concretização». tiro outro café para pensar nos livros que não escrevi apesar de escrever todos os dias e nos livros que li, que estou a ler, em como penso sempre que são os mais preciosos que existem. o que acontece quando leio? uma solução. e quando escrevo? um problema. acendo mais um cigarro, o homem e a mulher assomam como fantasmas para me fazer companhia, sorriem discretamente, quase poderia ouvi-los falar. uma música preenche o silêncio, provavelmente Bach. olho para o meu corpo ainda sem rugas, talvez ainda tenha algum encanto. parece-me que tudo o que tenho a dizer é superficial e, por isso, a minha avidez é incompreensível. vou levantar-me e esconder-me na casa sombria, tenho esperança de encontrar nela alguma benevolência.

18 de agosto de 2017

sempre sonhei muito com bebés, não só na idade adulta, portanto. em pequena era recorrente um sonho em que estava em alto mar, de onde emergia um monstro gigante, e eu tinha de salvar a minha irmã, o bebé, mas não sabia nadar. na idade adulta os temas diversificaram-se: estou grávida a descer uma ladeira dentro de um carro que perde os travões, estou rodeada de bebés sem saber porquê mas com um missão ou com deleite, tenho um bebé invisível nos braços, alguém me oferece apressadamente um bebé que me sinto relutante em aceitar, bebés que mato em série ou bebés que tenho de resgatar a um assassino ou a um perigo qualquer. por vezes quero acordar, por vezes, quando acordo, quero voltar a adormecer. um dia, fui ver que significado tinham estes sonhos. no livro dizia que estão relacionados com a criatividade, com a necessidade de resolver um dilema. perante os sonhos, contudo, intensos e cheios de pormenores, esta parca explicação deixou a desejar. a criatividade é uma coisa lata e, para quem escreve, todos os dias há um dilema a resolver. esta noite, por curiosidade, era o próprio sonho que me apresentava um dilema. fiquei aflita quando acordei sem o ter resolvido e estava estranhamente serena quando, depois de ter conseguido adormecer novamente, acordei uma vez encontrada a solução. não tenho apetência para fazer análises psicanalíticas, pelo contrário. penso que os sonhos são países de onde nenhum viajante regressa, sinais de possibilidades marcados pela catástrofe, através da qual se ligam à vigília. pode-se despertar para uma vida nova depois de um sonho. a sua relação com a natureza resiste à imaginação, à hipótese, à prescrição. os seus labirintos intermináveis, a sua lentidão mole, a sua densidade dramática, quem pode dizer se nos pertence ou se existe à tona do mundo, onde vamos colhê-los ao acaso? certo é que, seja de que maneira for, há sonhos que ficam connosco, que deixam uma marca, como é o caso, por exemplo, dos sonhos que parecem mais reais do que a vigília. sonhos em que somos chamados, que se erguem como uma montanha e nos engolem, a que não podemos ficar indiferentes. há no entanto algo que todos partilham: por muito que queiramos saber o seu significado, nada revelam para lá do desejo.

17 de agosto de 2017

sinto-me próxima das ervas que rompem a calçada, o alcatrão e o cimento, mais do que das pessoas e dos animais com quem me cruzo na rua, à exceção talvez de algum gato fugitivo. são também essas ervas que procuro nas fotografias das cidades, como se sem elas a cidade não passasse de uma ilusão, de um conto de fadas que me é sugerido com eloquência, mas deixa um rasto de incredulidade. por toda a parte as árvores morrem, mas estas ervas continuam a nascer nas paredes dos prédios, na margem dos passeios e à porta das casas, como se não passasse ninguém, como se ninguém as pisasse. crescem timidamente e, porém, portam nelas toda a violência da natureza e a inutilidade de a domar. o que seria de nós sem elas, insolucionáveis e incivilizadas, prontas a crescer sem medida por toda a parte? sou como essas ervas, daninhas ou não, irrompendo sem prudência, por vezes inconveniente, distraída da minha vulnerabilidade.

16 de agosto de 2017

em determinadas condições de tempo e de lugar, o corpo, negro, harmonioso e furtivo, é como um vocação de que ninguém se lembra entre as pequenas coisas. para além do amor, em silêncio, assim viverá connosco, mesmo quando sobre ele vier a desgraça, e trabalhará infatigavelmente para obter a sua própria imagem. anda e canta e agita os braços em explosões de riso até cair, a horas imprevistas, no meio do chão vazio como no meio de um campo vazio. nenhum desejo oculto: a mais viva curiosidade regula-o dentro da sua própria irrealizada treva.

14 de agosto de 2017

Lean On Me

depois de dançarmos toda a noite
mergulhamos confusas sob as estrelas
recordando o que foi.
acordou sem nome a meio da noite de pesadelos demasiado reais nos quais se movia voluntariamente e, deslumbrada, como se lhe fosse revelada uma língua nova, lembrou-se primeiro do nome dela e só depois do seu. abriu a janela, o vento soprava quente, ouviam-se vozes longínquas, a lua iluminava os telhados como se proibisse um segredo e, enquanto a olhava, sentiu que não gostava de ter Lúcia entre as suas recordações. deambulou ao acaso pela casa, suspeitando que estava a mentir. bebeu água como se estivesse a espantar demónios e voltou à cama, onde os lençóis brancos desfeitos lhe pareceram acolhedores. esperou pela manhã sem esperança de voltar a adormecer. lembrava-se da língua dela na sua boca, de um terror imprevisto que deu lugar a um frémito ousado, da mão frágil e em brasa como um chicote. detestava a ideia de ser apenas ela a ter aquelas recordações e teve vontade de rir, um riso sarcástico que a fez apertar o estômago até sentir dor. como ácido, a obsessão desorientava-a reduzindo-a a um animal ferido em fuga e esvaziando-a. teve medo de não voltar a sentir aquilo outra vez mas reconfortava-a o seu desaparecimento, era quase como viver com um fantasma, inócuo como a sombra de um nome. secretamente contudo, havia reflexo dele nas suas intenções: talvez não voltasse a vê-la mas sabia que não podia recuar e voltar a amar um homem. sucumbia assim a uma juventude tardia, alegre e insensata, que a atingia em cheio desfazendo a tensão. com os olhos no teto, depois do esgotamento, viu-se na posse do seu corpo violando todas as proibições sem punição, sem ameaça e sem culpa.
Ninguém pode querer sem fazer. E com isto eu não quero apenas dizer a execução deve seguir o querer, o que é já uma boa máxima de prática; quero dizer que a execução deve preceder a prática. Como assim? (...). Que o homem aja antes de querer, é o que é evidente pela infância. O homem nada no universo desde que foi lançado nele e nunca, de maneira nenhuma, se poderá retirar dele. A acção real está, portanto, sempre começada.

Alain, Minerve ou la sagesse.

13 de agosto de 2017

V.

o teu rosto
selvagem recordação

12 de agosto de 2017

«agora a minha vida vai mudar», pensou, inebriado de ideias. pegou num caderno para as anotar a todas, por prioridade, e dedicou-se imediatamente à primeira. depois da melancolia dos últimos meses, era uma lufada de ar fresco, vinda não sabia de onde nem porquê. cheio de confiança, a passagem do tempo deixou de o angustiar e o tédio desapareceu, substituído por sucessivas epifanias. parecia-lhe que tinha a vida toda na mão, o passado e o futuro flutuavam como nuvens inofensivas num céu soalheiro. o raciocínio desenvolvia-se com rapidez e leveza, o mundo adquiria densidade e a sua vida um significado, cujos problemas pareciam ter-se afogado num poço longínquo, reservado dos olhares. com certa estupefação, observou que nada daquilo era novo: as ideias que tinha transposto no papel estavam a ser cozinhadas há anos, sem terem tido, contudo, força para ver a luz do dia. portanto, pensava, porquê agora e não antes? que sinal impercetível havia sido agente da mudança? extenuado pela ausência de resposta, temendo que a inspiração desaparecesse, reduziu a lista a duas coisas, e continuou a elaborar planos para concretizar a primeira das prioridades. nisto, por e-mail, chegou-lhe uma carta relacionada com a ideia. a felicidade inundava-o, começou a pesquisar na internet, lembrou-se de livros, imaginou uma resposta à carta totalmente arquitetada, eloquente e sagaz. sem vontade de se arredar dos seus projetos, quando o telefone tocou não atendeu. até a solidão tinha agora um sentido, pensou, sem sentimentos de culpa por se isolar. fez um chá, nunca fazia chá. gostava das pessoas que faziam chá mas achava a bebida insípida e a preparação aborrecia-o. naquele momento, porém, o ritual deu-lhe oportunidade para pensar na sua ideia afastado do computador e, por isso, apreciou-o. enquanto bebia, no entanto, ocorreu-lhe que o melhor talvez fosse beber álcool. sim, sem dúvida, o álcool contribuiria para a inspiração, e saiu em direção à loja do nepalês, a única que àquela hora se encontrava aberta. comprou um whisky de má qualidade e juntou-lhe pedras de gelo em abundância. estava divino. três copos depois, a profusão de ideias voltou e lembrou-se dela. os anos de silêncio que os separavam não impediram que a atração inicial se mantivesse, uma espécie de sortilégio movediço onde se deleitava. ao olhar para uma fotografia guardada no computador, esmoreceu. como era bela e dócil no seu vestido azul, sorrindo e movendo-se como se existisse apenas para ele. olhava para a fotografia com o mesmo ímpeto das últimas horas, perguntando-se o que aconteceria se voltasse a contactá-la. teria o mesmo número, o mesmo e-mail? não importava, procurá-la-ia estrada fora até a encontrar. com certeza ficaria contente de o rever, com certeza, se a atração permanecia nele, também a alimentava a ela. desligou o computador e levantou-se, inundado por uma espécie de beatitude, determinado em reaver o tempo perdido. já deitado, pegou no telefone e, ao ver o nome dela inscrito sobre o ecrã, todos os planos que pareciam ter finalmente arrancado se desfizeram como poeira passageira.

11 de agosto de 2017

Adiamos as perguntas decisivas, fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e, quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar, como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada, quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência, o nosso pesadelo. 

Thomas Bernhard, Autobiografia — O Frio.