11 de agosto de 2017

Adiamos as perguntas decisivas, fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e, quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar, como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada, quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência, o nosso pesadelo. 

Thomas Bernhard, Autobiografia — O Frio.

6 de agosto de 2017

nos minutos que separavam o colégio de casa habituei-me a procurar caminhos novos, estar atenta aos detalhes e usufruir de um silêncio reconfortante. começávamos o dia com orações e os crucifixos, freiras e esculturas de santos eram omnipresentes. a pureza de espírito e a vida monástica eram preconizadas e, entre esse mundo e o exterior, a violência, o mutismo e a solidão marcavam a diferença. não precisei de muito tempo para descobrir que o meu espírito não era puro mas sim desafiador, provocatório e barroco, estimulado pela observação do que há de mais trivial no mundo em contraponto ao que, embora quotidianamente apregoado, não podia experienciar. mesmo quando pensei em ser freira, era como se o desígnio fosse uma dança invisível onde era protagonista e, assim, mal a madre diretora me perguntou, aos seis anos, se tinha sido chamada, respondi ruborizada que não, ao que ela sorriu e me fez um sinal de cruz na testa dizendo que podia repeti-lo sempre que estivesse triste. não senti nada, nenhuma manifestação de uma entidade superior, nenhum alívio, nenhuma esperança e, se é verdade que voltei a repeti-lo numas poucas vezes de maior angústia, também é verdade que rapidamente me dispensei de ter sido abençoada, consciente de que o significado do gesto era vazio. era nesses momentos de libertação que o meu futuro se abria, desconhecido e vasto. com o passar do tempo, mais as minhas amigas pareciam devotas, indo à missa todos os domingos e participando com entusiasmo nas atividades dos escuteiros e das guias — onde havia mais orações a rezar —, mais me desinteressava, acabando por fim por fazê-lo com sacrifício até conseguir convencer a minha mãe a não ir. antes, contudo, cheguei a chefe nas guias e fugi do desejo dos rapazes nos escuteiros, ocasiões de protagonismo que já chegavam esgotadas. em casa, entretanto, desenhava, lia tudo aquilo a que podia deitar a mão, ouvia música. quando o meu pai se foi embora, a relação com a minha mãe tornou-se conflituosa, de modo que uma violência foi substituída por outra, esta, no entanto, onde tentava ter uma voz. tornei-me uma adolescente revoltada, diligente e astuta, com apenas um objetivo em mente: ir-me embora. sonhava conhecer o mundo e balançava entre fazer justiça e desobedecer aos códigos. nisto, surgiu a escrita, que, apesar de já me acompanhar há algum tempo, começava a impor-se. precisamente por essa razão, na véspera de sair da cidade para ir estudar, destruí todos os cadernos, temendo levar para a minha fuga alguma recordação daqueles anos. queria escrever, mas livre da minha história oficial, onde a banalidade não podia ser resgatada.

5 de agosto de 2017

3 de agosto de 2017

um amigo contou-me ontem uma história extraordinária. quando era um miúdo com cerca de 6 anos de idade, costumava passar por um acampamento de ciganos, perto da sua casa. certo dia, a irmã foi fazer-lhes uma doação de roupa e o pequeno acompanhou-a. ao fundo do acampamento, viu uma menina, morena e de olhos verdes, que devia ter a mesma idade. viu-a ele e viu-o ela. dias depois, voltou a passar pelo acampamento para a ver e tentar meter conversa, mas não a encontrou mais. entretanto, o acampamento foi levantado e os ciganos desapareceram. cinquenta anos depois, numa visita à feira de Carcavelos para comprar roupa, o meu amigo para numa banca e vê uma mulher morena de olhos verdes que o vê a ele também. reconhecem-se e falam pela primeira vez, como se fossem amigos há muitos anos. quando ouço estas histórias, penso sempre que ninguém as acreditaria se as inventasse. mas a vida é isto, encontros e desencontros feitos apenas de olhares remotos e de gestos ínfimos que estão na sombra e cuja intensidade, contudo, é de uma beleza pungente.

31 de julho de 2017

"Parar de escrever significaria cair de novo no pânico da infância, ao passo que achar continuamente a palavra justa traz a perspetiva de transcender uma vida carregada de más recordações."

W. G. Sebald, A Descrição da Infelicidade — Imagens claras, imagens escuras.

30 de julho de 2017

(...) as imagens que constantemente preenchem a fantasia masculina, no público feminino suscitam quando muito um interesse menor e quase sempre um sentimento de ennui.

W. G. Sebald, A Descrição da Felicidade — O homem do sobretudo.

29 de julho de 2017

cansado da viagem, Luís Salvaterra saiu do autocarro e procurou uma esplanada onde pudesse beber qualquer coisa fresca. encontrou-a do outro lado da rua, vazia e à sombra. comprou o jornal e sentou-se à espera do empregado, que chegou alguns minutos depois. «o que vai ser chefe?», perguntou-lhe. «uma água das pedras com limão e um café curto por favor», respondeu. enquanto ali esteve, não chegou a abrir o jornal. um pequeno pássaro que, sozinho, procurava comida nas mesas, um gato amarelo que passou a fugir do outro lado da rua, uma mulher alta de saia curta que passou lentamente na calçada a olhar para o telemóvel e o vai-e-vem à entrada da estação de comboios, obtiveram toda a sua atenção. tinha ainda que procurar uma pensão. o empregado aconselhou uma no centro da cidade, perto do rio. de jornal debaixo do braço, Luís procurou-a pelas ruas desconhecidas. o prazer de nunca as ter percorrido e, ainda assim, serem vagamente familiares, penetrava o seu ânimo. o rio era verde, com um leito razoavelmente largo e alguns peixes. atravessando uma ponte, chegava-se a um jardim. esta devia ser a vista da pensão, se tivesse sorte. nenhum destino poderia ser mais feliz do que aquele, pensou. para quê seguir os turistas para uma cidade europeia qualquer ou escolher lugares inóspitos? amanhã daria uma volta pela cidade, visitaria o mosteiro e talvez lesse o jornal. deitado na cama do seu quarto sobre uma grossa colcha branca enquanto apreciava o silêncio do crepúsculo, sentiu fome e decidiu escolher ao jantar um prato que nunca tivesse experimentado.

27 de julho de 2017

todos os dias a horas certas, o bairro enche-se de odores a comida. a minha fome nasce com eles de forma um pouco hesitante, mas voraz e, a horas certas, levanto-me para cozinhar e comer. não fossem os vizinhos, não me alimentava, penso muitas vezes. as horas passariam sem dar por elas até o dia cair, pois, quando a noite chega, até um cego se levanta.

26 de julho de 2017

um homem
descasca uma maçã
com uma navalha
na calçada
encostado à parede
de um palácio.
segura
todas as cascas na mão.
no final,
corta a maçã em quatro pedaços
retirando-lhes o caroço
e deita as cascas para o chão.
cuidadosamente
empurra uma a uma
as cascas
para junto da parede
do palácio
e deita o caroço para
o lixo.
avança pela rua
comendo a maçã
e deixo de o ver.
tinha um boné
usava casaco
apesar de estar calor
e segurava um saco
de plástico na mesma mão
onde tinha a maçã.
sem saber
é a ele que se dirige
toda a poesia.