26 de dezembro de 2014

tenho uma chave, entro, já conheço este lugar. há vozes e comida, eu tenho fome e frio mas reparo que estou muda. duvido que a multidão seja real e a profusão transforma-se em confusão. não acredito sequer no que me está a acontecer. não, não é isso. sei é que a realidade das coisas que acontecem muitas vezes revela ser o seu oposto. parece uma festa mas pode ser um crime. não sou inocente. não quero brindar com os ímpios, não quero estar entre eles. desvio-me para o corredor, a madeira gasta, esburacada pelos bichos, húmida, camadas de tinta a estalar. na outra mão, só vejo agora, pesa-me um ramo de flores. a princípio não sei que flores são nem penso nisso, depois as flores ficam horrivelmente nítidas, é um grande ramo de rosas vermelhas, não sei porquê pois nem sequer gosto de rosas, são frescas, perfeitas, um pico está cravado num dos meus dedos, não sei se sangra mas nada muda, continuo a segurar o ramo exatamente com a mesma força antes de pensar na dor. entrei num quarto vazio, está escuro e longe da festa. através de uma janela, a única, passa um imenso clarão amarelo torrado, embora continue a estar escuro e frio dentro do quarto. não faço nada. talvez não saiba o que fazer talvez não queira fazer nada. através do clarão a paisagem é invisível. olho para o clarão sem dar um passo em direção a ele para me debruçar sobre a paisagem. creio que ficaria cega. o tempo passa em grandes ondas e eu permaneço indiferente. dias, noites, meses, estações, porém, sempre o mesmo clarão amarelo através da janela. tenho sede. reparo que não falo há muito tempo e quero falar mas não consigo. não me lembro de nada. talvez nunca tenha aprendido a falar. sou uma imperiosa controvérsia que quer instalar-se comodamente na sombra e conformar-se a ela. sei bem que o que vejo do mundo não passa de uma fantasia fugaz. a minha maneira de ver o mundo nada tem que ver com o mundo, a minha maneira de pensar constitui uma renúncia ao rigor do pensamento. uma incompreensível sucessão de fenómenos tornou o espaço artificial, mera sequência de planos, categorias, dimensões, consequências. não durmo. o tempo não passa mas mesmo assim gostaria de poder dormir.
My soul yearns after the Lord.

25 de dezembro de 2014

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.

24 de dezembro de 2014

da janela avisto uma paisagem reduzida de coisas. são poucos telhados, poderia contá-los, mas os suficientes para tapar a linha do horizonte terrestre. abro-a e debruço-me para fumar um cigarro. não há nada para ver desta janela. nada. nada se passa, nada acontece. a monotonia do que toca o solo deveria invariavelmente atrair os olhos para o céu, ele próprio ainda mais monótono.
desta janela vejo uma buganvília com flores cor de rosa. ontem, ao cimo da buganvília, vi umas flores brancas, de que gosto muito. com os olhos procurei o pé, escondido entre uma profusão de outras plantas foi difícil encontrá-lo. a trepadeira subiu toda a altura da buganvília tapada por ela, resistindo à falta de luz, e agora um pequeno cacho de flores brancas brilha acima dela.
regressei à noite. na escuridão apenas estão visíveis alguns pontos de luz, ao fundo. são candeeiros de estrada. hoje, mesmo no centro do meu quadro, havia um terraço iluminado. a luz, colocada debaixo de uma parreira, revelava a sua amplitude, que ecoava.
lufadas de fumo branco vindo das lareiras alastravam por toda a parte. empurrada por um vento ligeiro, uma dessas nuvens tocou nas minhas mãos.
a lua aparece cedo, primeiro muito alta e branca no céu, mais tarde equilibrada sobre os telhados. há dias estava cheia e completamente cor de rosa, uma das maiores luas que vi até hoje. ali mesmo, à minha frente, sem razão.
há três gatos nos telhados. um amarelo, grande, gordo. um branco, sujo, elegante. um cinzento, que aparece menos vezes, com ar de rufia. deitam-se ao sol e procuram troncos e galhos para se coçar. vigiam o mundo, soberanos, pachorrentos e implacáveis.
hoje depois de almoço vi um melro dentro de um buraco a escavar a terra com o bico.
os limoeiros estão carregados. que belos são os limoeiros. parecem estar sempre carregados, sempre cheios de fruta, sempre cheios de maturidade, sempre prontos.
em dias de sorte, quando abro a janela, o mundo está branco. perante o nevoeiro, oiço apenas. o coração vibrante.

20 de dezembro de 2014

na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. num braseiro o fogo nunca se levanta. as brasas são atiçadas, trocadas, sopradas e nunca incendeiam. isto fascinava-me, bem como o facto da cozinha inteira ficar quente apesar de não haver fogo mas apenas umas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. portanto, mal chegava o inverno começava a perguntar ¿quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia com um sorriso que nunca mostrava e prolongava a espera dizendo que tínhamos de poupar. depois um dia chegava do colégio e a cozinha estava quente. todo o tempo que podia ficar ali sentada, passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível olhá-las. o calor queimava a cara e fechava os olhos. procurava arranjar estratégias, nenhuma que funcionasse, sobretudo talvez para lidar com a minha própria ansiedade. quando finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando. apesar de tudo, era rápido. demasiado rápido. e havia sempre muitas cinzas, sempre me parecia haver mais cinzas do que inicialmente poderia ter havido carvão. mas as cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas, numa operação difícil e melindrosa, que reunia várias mãos e vários olhares. se as brasas acesas me davam a sensação de participar nelas, a frieza do carvão no saco de papel provocava um outro tipo de curiosidade. podia olhá-lo quanto tempo e sempre que desejasse. podia tocar-lhe ou não. podia dar-lhe outro uso, como escrever. intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o ao que existe. quando a minha avó não estava a ver, quebrava pequenos pedaços e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. dizia a mim mesma que alguma coisa no coração do mundo (e portanto em mim própria) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, na realidade apenas cinza. pensava-o sem temor, pelo contrário. não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. ser carvão, ser brasa, ser cinza. viver.

19 de dezembro de 2014

18 de dezembro de 2014

é curioso que toda a gente tenha histórias sobre viagens de autocarro. na paragem ou lá dentro, entre um e outro destino, a viagem no autocarro é uma oportunidade para se estar em suspenso. uma altura para tomar o lugar do observador de que sentimos falta na azáfama. no dia em que a minha história se passa, o autocarro circulava entre a Cidade Universitária e Benfica. era o meio de uma tarde de outono, não chovia. havia a doçura do tempo ameno e das folhas com cores intensas a encher a copa das árvores e a voar por toda a parte. a beleza, por toda a parte. que em muito contribuía para as minhas divagações à janela e tornavam o percurso delicioso. num desses dias, uma mãe que arrastava uma criança pelo braço entraram no autocarro. a criança não gritava nem gemia ou sequer dizia nada, o que seria legítimo da sua parte, dada a forma violenta como era arrastada. os gestos da mãe eram de tal modo impetuosos que, assim que entraram no autocarro, atraíram o meu olhar como um íman. vi que tinha o coração apertado. voltei a olhar através do vidro para me concentrar nas cores da cidade. para esquecer aquela violência. alguns minutos depois, a criança começa a falar:

— Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

julguei não ter ouvido bem. lembro-me de pensar que o autocarro estava cheio mas estranhamente silencioso naquele dia mas será que eu tinha ouvido bem. como que para desfazer as minhas dúvidas, a criança continuou:

— ó Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe!!! as pessoas podem nascer duas vezes???? (segundos de pausa) Mãe, as pessoas podem nascer duas vezes???

quando fazia a pergunta olhava para a mãe e a cada pausa olhava através do vidro da janela do autocarro, em puro devaneio. a sua voz era lancinante. a mãe vigiava o percurso que o autocarro fazia e durante muito tempo nunca o desviou. até que finalmente, respondeu:

— claro que não!!! então tu não sabes já que não?!?

ou seja, a criança continuou sem resposta à pergunta que a dilacerava. continuou a olhar através do vidro durante o resto do percurso e ao sair do autocarro pela mão da mãe, perguntava novamente:

— Mãe, mas... alguém pode nascer duas vezes...?

senti-me atordoada. queria responder-lhe. não tenho filhos e não estou habituada à presença de crianças, talvez por isso não estivesse preparada para esta delícia — terrível — de um pensamento que nasce. não sei que pensamento era esse e tive pena de não poder ter aquela criança como mestre. a pergunta era fabulosa. no caminho para casa, lembrei-me do que dizia Milan Kundera sobre as perguntas, que as verdadeiramente importantes são as que formulamos na infância: são as que não têm resposta. lembrei-me de Dioniso, que pela vingança da ciumenta Hera sobre Sémele, foi retirado do ventre da sua mãe morta e cosido na coxa de Zeus, seu pai, para terminar a gestação e assim nascer uma segunda vez. quando nesse dia me deitei, estava ainda a imaginar a conversa que poderia ter tido com o menino. invariavelmente começava assim: «claro que sim! olha, vou dar-te um exemplo. há muito, muito tempo atrás, havia um menino...»

16 de dezembro de 2014

uma vez, ao sairmos de uma festa, uma pessoa disse uma frase que nunca mais esqueci. era uma noite de inverno, numa festa em casa de uma amiga de Lisboa, que vivia no cais-do-sodré. eu conhecia quase toda a gente e como sempre não falei com quase ninguém. dancei. quando começou a amanhecer, peguei no meu casaco e comecei a despedir-me, ainda com uma cerveja na mão. um grupo decidiu seguir-me e, cada um com a sua cerveja na mão, pegaram nos seus casacos. preparámo-nos para descer a longa escada de madeira poeirenta até à rua. ao atravessarmos a porta, uma mulher disse, como se ninguém a ouvisse:

— quando voltar a ter um pretendente vou-lhe perguntar: queres vir apanhar frio comigo?

todos riram e fizeram comentários. o que ela queria dizer era que dar passeios em noites de verão é demasiado fácil. cheia de admiração, não consegui dizer nada. foi como se tivesse despertado naquele momento. devia ser aquilo o amor.