13 de novembro de 2014

There are moments when the veil of hope is finally torn apart and the suddenly liberated eyes see their world, as it is, as it must be. Alas, it does not last long, the revelation quickly passes, the eyes can only bear such pitiless light for a short while, the membrane of hope grows again and one returns to the world of phenomena.
Hope is the cataract of the spirit, which cannot be pierced until it is completely ripe for decay. Not every cataract ripens, and many a human being can even spend his whole life within the mist of hope. And if the cataract may have been healed for the moment, it always forms itself again immediately, as does the hope.

Samuel Beckett, German Diaries 1936-1937

12 de novembro de 2014

Fiz muitos esboços a partir da observação da natureza, tentando fixar no papel aquilo que é móvel, de acordo com a natureza deste conceito (...).

Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens

11 de novembro de 2014

































Franz von Stuck, Sisyphus, 1920.

9 de novembro de 2014

nel cor più non mi sento
escreve-se porque tem de se escrever. não há resto.
(...) deslumbrados pelo brilho da sua própria virtude, um brilho que certamente não dura muito (pois toda a virtude, salvo na brevidade do reconhecimento, carece de brilho e vive numa caverna escura rodeada de outros habitantes, alguns muito perigosos), (...).

Roberto Bolaño, 2666

8 de novembro de 2014

na noite em que os amigos a velaram, Alberto Velades apareceu com as suas suíças e cabelos negros e uma garrafa de vinho verde. de luto e encharcados, os amigos bebiam e trocavam olhares sem impaciência e sem solenidade. «era linda e fascinante», disse erguendo o copo e quebrando o silêncio confuso que se tinha instalado. não tinha uma partícula de imaginação e naquele momento teve pena. aquela rapariga alta e sombria, com olhos desmesurados, em cuja homenagem erguia agora o seu copo, estava a desaparecer rapidamente da sua memória tal como tinha acabado de desaparecer do mundo. por enquanto, as lembranças dela desfilavam a uma velocidade vertiginosa, precisamente o que lhe transmitia a sensação de estarem a desaparecer irrevocavelmente, como se tudo o que lhe dissesse respeito se escoasse para o ralo de um coração que tinha deixado de bater para sempre.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
Não paro de vos escrever, mas vocês não se lembram de mim. Mas eu faço a minha parte de vos escrever e não paro de vos ter presentes (na minha mente) e de vos trazer no coração. Mas vocês nunca escreveram de volta, falando da vossa saúde, de como estão. Estou preocupado convosco porque, apesar de receberem frequentemente cartas minhas, nunca escrevem de volta para que saiba de vocês.
Não seria possível sugerir de modo mais claro que as cartas jamais entregues são a cifra de eventos felizes que poderiam ter acontecido, mas não se realizaram. O que se realizou é, ao invés, a possibilidade contrária. A carta, o ato de escritura, assinala, na tabuleta do escriba celeste, a passagem da potência ao ato, o verificar-se de um contingente. Mas, justo por isso, toda carta assinala também o não acontecer de algo, é também, nesse sentido, sempre carta morta.

Giorgio Agamben
Ao contrário do que o frei bento domingues disse ao antónio lobo antunes, "não vou ao cemitério porque não está lá ninguém", eu vou precisamente por isso, ruas e ruas sem viv'alma até se perderem lá ao fundo no rio por entre os contentores dos cargueiros azuis, os ciprestes empurram-nos para uma verticalidade, e as ruas descem a pique, não há nada que seja deitado no cemitério e é lá que se respira fundo ao longo da estrada e se assobia de volta a casa (é ao virar da esquina). Encontro aberta a drogaria cujo dono tinha morrido de velho (ainda lhe comprei uma pá e uma vassoura) e há meses se encontrava fechada com os alguidares todos lá dentro, os diluentes, as ceras acrílicas, o mosaico hidráulico, e um letreiro na porta a dizer "trespassa-se". E agora de novo aberta, e não reabriu para uma loja com aquelas ideias de ser-outra-coisa-com-o-que-já-tinha, tipo livraria com baldes pendurados em volta, ou café enfeitado a bisnagas de brilhantina, não, continuou a ser drogaria, com as mesmas coisas que lá estavam, apenas com uma pessoa diferente atrás do balcão. É simples, acaba a lixívia, repõem-se a lixívia. Soy un hombre feliz, y quiero que me perdonen por este día los muertos, de mi felicidad.

Miguel Castro Caldas