16 de outubro de 2014

Acender velas para gastar menos luz. Comer menos para poupar na conta do supermercado, uma refeição por dia chega. Não ter filhos. Vestir mais uma camisola e um casaco por cima dela para não ter de ligar o aquecedor. Não ficar doente. Sair menos à rua ou sair prevenido com uma peça de fruta ou uma sandes e água. Comprar o passe apenas em caso estritamente necessário, de resto, andar a pé. Encontrar estratégias para não pagar telefone e não pagar internet. Acumular louça para abrir uma só vez a torneira. Usar a torneira de água quente exclusivamente para o duche. Se o mês chegar antes do meio do mês, jantar em casa de amigos e aceitar o auxílio do pai ou da mãe. Não sair com os amigos a não ser para passear num jardim ou ir ver uma exposição ao domingo. Não ir ao cinema, não ir ao teatro, não comprar livros nem jornais, não fazer inscrições em seminários, cursos ou ateliers. Não ter dias da semana nem fins-de-semana. Falar o menos possível entre nós sobre isto e menos ainda àqueles que não estão na mesma situação em que nós estamos. Ser tolerante quando alguém avaliar a sociedade por si próprio. Ser tolerante quando falarmos de preocupações com a renda a alguém que nos responde que está na mesma situação e a seguir nos convida para jantar fora. Ser tolerante com as nossas lágrimas e implacável quando chega o momento de sair da cama de manhã. Enviar muitos CV's, todos os dias. Ter no mínimo três CV's em várias línguas: um muito reduzido, com o mínimo de habilitações académicas, um médio com as principais experiências profissionais e o registo completo das habilitações académicas e um verdadeiro, para não nos esquecermos de que estivemos sempre a trabalhar. Ter vergonha. Ter medo. Saber esperar sem ter mais nada a esperar. Não ter tempo precisamente quando se tem todo o tempo do mundo. Ouvir quando o amigo nos diz que quando estou parado começo logo a sentir-me um logro e lembrar a frase quando formos nós o logro. Saber estar em silêncio, porque o prazer é possível mas a esperança não. Lembrar quando nos disse que quando as perspetivas se reduzem a nada, todos os caminhos parecem válidos e achamos que nunca estamos a fazer o que realmente devíamos estar a fazer e lembrar muitas vezes que perante o que temos é obsceno ficar e contudo, também não podemos partir, porque tudo é um grande talvez ou um grande nunca ou um grande não sei ou um grande não aguento mais. Quando deixar de ser possível pensar, será ainda possível respirar. E quando já não for possível respirar, talvez seja doce.


Para o Pietro Romani, que nunca me deixou só.

14 de outubro de 2014

Li no Gulistan, ou Jardim das Flores, de autoria do xeque Sadi de Shiraz, que um dia perguntaram a um sábio: «Entre as muitas árvores célebres que o Altíssimo Deus criou altaneiras e umbrosas, nenhuma é chamada azade, ou livre, exceptuando o cipreste, que não dá frutos. Qual o mistério disso?» O sábio replicou: «Cada uma tem seu fruto adequado e sua estação determinada, durante a qual fica fresca e florida e fora dela seca e murcha; o cipreste não está sujeito à variação de estados, está sempre a florescer. Da mesma natureza são os azades ou religiosos independentes. Não ponhas o teu coração no que é transitório, porque o Dijlah, ou Tigre, seguirá fluindo através de Bagdade mesmo depois de a raça dos califas se extinguir. Se as tuas mãos estão cheias, sê liberal como as tamareiras, mas se estão vazias, sê um azade, ou um homem livre como o cipreste.»

Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques

13 de outubro de 2014

Mon cas n'est pas unique: j'ai peur de mourir et je suis navrée d'être au monde. Je n'ai pas travaillé, je n'ai pas étudié. J'ai pleuré, j'ai crié. Les larmes et les cris m'ont pris beaucoup de temps. La torture du temps perdu dès que j'y réfléchis. Je ne peux pas réfléchir longtemps mais je peux me complaire sur une feuille de salade fanée où je n'ai que des regrets à remâcher. Le passé ne nourrit pas. Je m'en irai comme je suis arrivée. Intacte, chargée de mes défauts qui m'ont torturée. J'aurais voulu naître statue, je suis une limace sous mon fumier. Les vertus, les qualités, le courage, la méditation, la culture. Bras croisés, je me suis brisée à ces mots-là.

Violette Leduc, La bâtarde

12 de outubro de 2014

tinha uma avó que comia medula
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização

não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece

11 de outubro de 2014

Há textos que gostamos mais de escrever que outros. Talvez porque tenham aquele efeito de livro arrumado, acabado de ler, ao qual não voltamos com a mesma excitação porque sabemos que depois de escalado o muro há um jardim arruinado.
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.

Raquel Nobre Guerra

9 de outubro de 2014

Alguns narradores contam que Medeia, em fuga, não teve possibilidade de levar consigo os filhos que, perante a negligência de Jasão, foram apedrejados até à morte pela família de Creonte, como vingança.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.




De artigo da Wikipédia completo aqui.
os milhares de casais de turistas que passeiam em Lisboa lembram-me que o amor cansa.
Fui ver uma exposição muito estranha, no Museu de São Roque (Visitação, curadoria de Paulo Pires do Vale). Entre os objetos do espólio da Misericórdia de Lisboa expostos, encontram-se alguns exemplos de cartas que eram entregues com as crianças que deixavam na roda. O costume era que a cada criança correspondesse um identificador, entregue com essas cartas, que funcionasse como prova de pertença: apenas quem tivesse a outra metade a poderia resgatar. Pelo menos de acordo com a proporção que é mostrada nas vitrines, a grande maioria das crianças era entregue com cartas de baralho e cautelas de lotaria. Quem as entregava fazia um recorte único, transformando-os em peças de um puzzle. Também há outros exemplos, como cabelo, dados e até uma pequena e incompreensível escultura em palha. Alguns são bastante elaborados, e ricos, como é o caso de uma bolsa de seda vermelha bordada e umas meias de renda branca fina.
Fora da galeria, na igreja de São Roque, estão dois écrãs, cada um com o rosto de uma criança do filme Casa de Lava de Pedro Costa, cuidadosamente escondidos em cada um dos lados do transepto, certamente para não perturbar a oração.




[Em Portugal] a surdez profissional é hoje a primeira na tabela das doenças de trabalho e os números absolutos não parecem cessar de aumentar. (...). No Canadá, os estudos sobre som tiveram uma influência directa na criação de um novo tipo de legislação anti-ruído, mais eficaz, que tem em conta a natureza específica da escuta. Em França, a dimensão sonora do ambiente faz parte dos currículos escolares e é uma valência importante em áreas como a dos estudos artísticos ou a arquitectura, por exemplo. (...). No Japão, há mais de quatrocentas associações que se dedicam ao estudo e preservação do património sonoro. Imagine-se um grupo de cidadãos mobilizado em torno da preservação do simples som de uma fonte ou de uma ponte de bambu.

Carlos Alberto Augusto, Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa.
O cheiro adocicado a enxofre da heroína, há uns anos, ao passar numa rua do bairro do Alto da Serafina.

6 de outubro de 2014

Lembro-me de me arrebatar a tradução da palavra ILUSIÓN no filme La Mala Educación, do Almodovar.
Para onde fugir? Tu enches o mundo. Não posso fugir senão em ti.

Marguerite Yourcenar, Fogos.
Há sempre uma outra história dentro de uma história. É o caráter do que está separado. Defender a solidão em que se está parece ser a única possibilidade de resgatar univocidade ao que nasceu equívoco. Procuro a agulha perdida entre a palha no chão. Temos de ocupar o tempo com alguma coisa. Quando me sinto demasiado perdida procuro recordar que não é tão importante o que me aconteceu como o que vou fazer com o que me aconteceu. Procuro recordar que a palavra mais importante dessa sentença é a palavra fazer. E então a verdade perde substância. Porque não existe. Atravesso a distância entre o perto e o longe deixando para trás a colisão abrupta das minhas ilusões. O destino dos espetros é serem espetros. Eu, estou aqui.

5 de outubro de 2014

Kafka acaba de por uma pantera jovem na jaula no lugar do Artista da Fome.
Se todas as outras razões não bastassem, o último parágrafo deste conto bastaria para lhe consagrar a mais solitária genialidade.

3 de outubro de 2014

Percebo agora que todo o processo de metamorfose consiste, talvez inteiramente, em decadência e deterioração. Não tenho linguagem que me permita descrever o que acontece no núcleo desta transformação. Parece-me idêntico dizer que se trata de um processo terrivelmente violento ou que se assemelha à graciosidade da flor que abre. Toda a regeneração é uma metonímia da morte. O extraordinário está em que a medida da transformação excede a nossa resiliência (e portanto a nossa expetativa) face aos acontecimentos: a transformação tem a medida da evidência. E o princípio da evidência é aniquilar. O futuro oferece-se sempre com opulência mas no absurdo espetro das suas possibilidades, qualquer movimento em direção a ele parece ridículo. A intensidade erótica da metamorfose desaparece, deixando subitamente no seu lugar um ideal romântico de liberdade. Face à ruína, porém, os ideais não portam mistério. Perante a opacidade de um futuro intrincado, a defraudada armadilha do prazer colapsa e nós somos o seu colapso. Se eu já não amo, que paisagem é esta?, pergunta-se, e a imaginação conduz inexoravelmente ao retiro, que apenas mostra a escuridão de onde viemos e um destino abrupto.
Sou austeramente selvagem. Vou perseverando numa atmosfera composta de distâncias sem enigma. Entro como um vulto em casas prontas para serem deixadas porque há no abandono qualquer coisa infinitamente apaziguadora. Pressinto nelas o eco de lembranças que não tenho. Sou apaixonada por essas casas vazias, que flutuam abertas para lá da memória. Elas são o exótico altar da minha infância pois a infância é uma fórmula imaterial, uma fonte geométrica enterrada na revelação genuína. Sou uma mulher e sei que sou essa mulher mais do que sei quem sou. É uma questão de sobrevivência: a linguagem da perdição tem implicações que estão sempre a ser negociadas. Às vezes penso que se estava melhor no cativeiro mas a fatalidade impregna-o de tal maneira que me repugna regressar. Aporto a um voluptuoso silêncio. Não posso afirmar que seja límpido. A minha satisfação está em vê-lo adensar-se e expandir-se. Imperfeitamente.

1 de outubro de 2014

na boca silenciosa das mães nasce o sono e o medo de não voltar a acordar. se os filhos falam durante a noite é porque toda a noite as chamam. querem que a mãe lhes explique porque é que estão a cair. querem saber porque é que ela os deixou cair e porque é que o amor não chega para amparar a queda. portanto o amor passa a confundir-se com a desilusão, que nunca é magna o suficiente para alvitrar o desencantamento. então as mães transformam-se na pura noite onde os filhos continuam a chamar. e os filhos regressam para ficar universalmente imóveis à boca delas, a escutar.