17 de junho de 2018

Nessa tarde, tomou um comprimido para dissipar a angústia que a devorava sem que conseguisse determinar a sua origem. Tomou-o sem convicção, apesar de ter hesitado durante vários dias em fazê-lo, a mesma falta de convicção que lhe parecia contaminar todos os atos que, força da rotina ou da vontade, realizava. Ponderou por instantes se seria essa ausência de convicção o motivo da angústia que a consumia, mas como seria possível saber qual delas nascia da outra? Não, tinha de haver outra razão. Algo estava a mudar, algo que não era, para o seu olhar atento, absolutamente imperceptível. Dirigindo-se à sala, reparou no grande silêncio daquela tarde de verão. Apenas se escutava o vento a passar por entre a folhagem das duas árvores diante da casa, fazendo as copas balançar-se ligeiramente e tocarem-se. O calor da rua não ganhava contra o fresco da casa, cuja penumbra era entrecortada por finos raios amarelos em direção ao chão perto da janela. O seu corpo parecia arrastar-se sugado por um peso obscuro que, nada dizia o contrário, podia ser o reflexo da angústia que a atormentava. Tinha de ir à loja se queria jantar, lembrou-se, e decidiu fazê-lo imediatamente. Observou enquanto se vestia como os membros do seu corpo eram como que atraídos para o solo e assim, mesmo contra a sua vontade, se moviam lentamente. No entanto, não tinha sono, não se sentia indolente, pelo contrário, a sua mente estava disponível, alerta, analítica, mas também serena, como um barco cheio de redes à beira-rio se prepara para a pescaria. Esse era, aliás, um dos sinais da angústia: como podia estar tão vigilante e ao mesmo tempo ter um corpo que não responde? Chamou o elevador e ficou, como sempre acontecia, a olhar para a luz verde do botão de chamada. Quando as portas se abriram olhou-se ao espelho pela primeira vez naquele dia. A tez estava pálida, tinha sulcos azuis abaixo dos olhos, os lábios eram quase indistintos, dois riscos profundos contornavam-lhe o pescoço, o cabelo, pintado, mostrava as raízes brancas, pois nos últimos tempos, causa da lassidão, se tinha descurado com o seu cuidado. «Se estamos a envelhecer desde o dia que nascemos, não é envelhecer que é triste, como se costuma dizer amiúde entre risos», pensou. «No entanto, se a um tempo da vida tudo me acrescentava em vez de me diminuir, a partir deste momento deixou de ser assim. Algo mudou e o que mudou, para ficar, porta a angústia, sim, a tristeza, que me tomou». Estava à deriva entre os corredores do supermercado com estes pensamentos fazendo um esforço hercúleo para se lembrar do que precisava de comprar, mas agora com certa leveza, pois qualquer coisa fazia sentido. Houve um tempo em que tudo era possível e esse tempo tinha definhado. Por muito que se dissesse que ainda tinha muito que fazer, reconhecia ao mesmo tempo que o fulgor da juventude não tinha produzido nada. O que restava da rapariga que fora aos dezassete anos? Sozinha, sem paixões, a vida era agora como o campo abandonado de uma festa, com as fitas coloridas no chão, os balões rebentados, os copos largados, as beatas amassadas e, em breve, seria o seu mundo a morrer. Era nisto em que pensava enquanto esperava na fila para pagar, quando subitamente, uma bela mulher, que já tinha visto uma vez, passa ao seu lado entrando no supermercado. «Agora só o amor te poderá salvar», pensa, «mas com essa cara macilenta não vais atrair ninguém». A felicidade não se torna habitual para ninguém, mas sim a sombra, concluía. A peste negra alastrava e corroía toda a alegria instalando a indiferença, a frieza e o distanciamento. Ou talvez sempre tivessem estado lá e era apenas a camada de tinta que as escondia que, aos poucos, desaparecia. Dizem que estamos vivos, mas na verdade somos apenas uma multidão muda e sem saída.

4 de junho de 2018

Tenho o privilégio de ter trabalhado com o Alexandre Esgaio neste conto, que ilustrou e a quem só tenho a agradecer. Está publicado na revista ESC:ALA #11, que podem ver aqui.

3 de junho de 2018

ao contrário do que nos querem fazer crer, começa-se a envelhecer num dia preciso. nesse dia, e não noutro qualquer, percebemos que a partir dali é sempre a descer. os acontecimentos do corpo acompanham-nos toda a vida e a mente parece esforçar-se por acompanhar e adaptar-se ao que, de súbito, constata que sucedeu. por exemplo, aqui há uns anos, uma conversa com um amigo impressionou-me brutalmente. dizia-me ele que o cheiro dos velhos se tinha instalado no seu corpo, substituindo irrevogavelmente o frescor da juventude. da sua pele, reparei imediatamente, emanava agora um cheiro ácido e metálico, próprio de quem perdera sem remédio o fulgor dos dias que vieram e se foram. embora há muito o meu corpo tenha começado a dar sinais de velhice, só esta semana percebi, como o meu amigo naquele tempo, que comecei a envelhecer, pois a amargura insidiosa de quem olha para trás e vê o vazio, quis encontrar lugar em mim e preencher-me. será que todas as recordações alegres desaparecerão? será que deixarei de encontrar a alegria? que quer de mim essa amargura do não-vivido? terei armas para a combater? não sei se a beleza, o viço e a vivacidade, terão também elas um lugar na velhice numa sociedade que a despreza. temos tão pouco controlo sobre o que vivemos e tão poucas respostas sobre o que é a vida. e porém, mesmo com o seu medo, a sua amargura, o corpo que falha ao levantar, ela renova-se.

29 de maio de 2018

atualmente é aqui que escrevo quando não escrevo no blogue.
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28 de maio de 2018

numa das visitas que fiz ao Louvre, decidi ir ver a Mona Lisa. qual não é o meu espanto quando entro numa sumptuosa e larga sala onde o quadro, numa das paredes, está protegido por uma redoma de vidro. diante dele, uma multidão de turistas acotovelando-se aglomerava-se. aqueles que ocupavam os lugares mais atrás seguravam as máquinas fotográficas ao alto e apontavam disferindo flashes e olhando depois para os ecrãs. ninguém arredava pé dali. em bicos de pé, furando, alguns com crianças ao colo ou pela mão, procuravam chegar mais perto daquele que é tido pelo quadro mais famoso do mundo. perto dos cordões que delimitavam o acesso em torno dele, algumas pessoas demoravam-se e também tiravam fotografias. outros, mal chegavam voltavam costas e saíam da sala visivelmente desiludidos, quase ofendidos. nunca cheguei sequer a aproximar-me da zona em que está o quadro. sentei-me encostada à parede oposta e, atónita, fiquei a observar o magote. depois fui-me embora, reconfortada por nunca ter visto a Mona Lisa.

17 de maio de 2018

abandono a perfeição num misto de medo e de furor e rapidamente deixo de ter muros à volta. uma promíscua simplicidade envolve-me na habitação do mundo. entro nela sem repulsa e sem recusas, como se entra no deserto. não preciso de uma imagem para o meu próprio nome, sou um impasse sem revelações. onde antes a alegria entrava desmedidamente existe hoje uma melancolia espontânea, um dom lascivo, delirante, silencioso. sei de segredos irredutíveis, alguns insignificantes, outros origem de importantes mutações, com geografias, riscos, analogias — não fosse eu igualmente um princípio. tenho as portas e as janelas abertas, o meu gato olha para o reflexo da água no teto. enquanto me recordo do dia, concebo um mundo sem estirpes, entre o inesperado rigor de uma ampla partitura e uma imaginação profunda. tudo o que nele se manifesta é movimento e som, tem o inquietante sabor de uma potência íntima. é improvável que a possa compreender, mas não desejo interrupções.

7 de maio de 2018

Se alguém me apedreja, eu irrito‑me. E temos até a responsabilidade do nosso mau carácter; se eu ficasse impassível, alguém perdia a fé. Não sei quem, mas isso tem muita importância.

Agustina Bessa-Luís

5 de maio de 2018

um céu azul que desafia a coerência liberta-me de mil intentos e vejo-me lançada na grande planície do desejo. aqui tudo se oferece, mas nada se recebe. ao crepúsculo, a monstruosa — ainda que porventura sagrada — nostalgia da duração, abre um espaço crescente no corpo. a ela respondo com voracidade e deito por terra as perguntas que impõem limites: sou senão uma afirmação pungente, um vértice, uma graça irreconciliada feita para tocar e ser tocada.

3 de maio de 2018

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Filipe Catto, Faz Parar.