4 de junho de 2018

Tenho o privilégio de ter trabalhado com o Alexandre Esgaio neste conto, que ilustrou e a quem só tenho a agradecer. Está publicado na revista ESC:ALA #11, que podem ver aqui.

3 de junho de 2018

ao contrário do que nos querem fazer crer, começa-se a envelhecer num dia preciso. nesse dia, e não noutro qualquer, percebemos que a partir dali é sempre a descer. os acontecimentos do corpo acompanham-nos toda a vida e a mente parece esforçar-se por acompanhar e adaptar-se ao que, de súbito, constata que sucedeu. por exemplo, aqui há uns anos, uma conversa com um amigo impressionou-me brutalmente. dizia-me ele que o cheiro dos velhos se tinha instalado no seu corpo, substituindo irrevogavelmente o frescor da juventude. da sua pele, reparei imediatamente, emanava agora um cheiro ácido e metálico, próprio de quem perdera sem remédio o fulgor dos dias que vieram e se foram. embora há muito o meu corpo tenha começado a dar sinais de velhice, só esta semana percebi, como o meu amigo naquele tempo, que comecei a envelhecer, pois a amargura insidiosa de quem olha para trás e vê o vazio, quis encontrar lugar em mim e preencher-me. será que todas as recordações alegres desaparecerão? será que deixarei de encontrar a alegria? que quer de mim essa amargura do não-vivido? terei armas para a combater? não sei se a beleza, o viço e a vivacidade, terão também elas um lugar na velhice numa sociedade que a despreza. temos tão pouco controlo sobre o que vivemos e tão poucas respostas sobre o que é a vida. e porém, mesmo com o seu medo, a sua amargura, o corpo que falha ao levantar, ela renova-se.

29 de maio de 2018

atualmente é aqui que escrevo quando não escrevo no blogue.
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28 de maio de 2018

numa das visitas que fiz ao Louvre, decidi ir ver a Mona Lisa. qual não é o meu espanto quando entro numa sumptuosa e larga sala onde o quadro, numa das paredes, está protegido por uma redoma de vidro. diante dele, uma multidão de turistas acotovelando-se aglomerava-se. aqueles que ocupavam os lugares mais atrás seguravam as máquinas fotográficas ao alto e apontavam disferindo flashes e olhando depois para os ecrãs. ninguém arredava pé dali. em bicos de pé, furando, alguns com crianças ao colo ou pela mão, procuravam chegar mais perto daquele que é tido pelo quadro mais famoso do mundo. perto dos cordões que delimitavam o acesso em torno dele, algumas pessoas demoravam-se e também tiravam fotografias. outros, mal chegavam voltavam costas e saíam da sala visivelmente desiludidos, quase ofendidos. nunca cheguei sequer a aproximar-me da zona em que está o quadro. sentei-me encostada à parede oposta e, atónita, fiquei a observar o magote. depois fui-me embora, reconfortada por nunca ter visto a Mona Lisa.

17 de maio de 2018

abandono a perfeição num misto de medo e de furor e rapidamente deixo de ter muros à volta. uma promíscua simplicidade envolve-me na habitação do mundo. entro nela sem repulsa e sem recusas, como se entra no deserto. não preciso de uma imagem para o meu próprio nome, sou um impasse sem revelações. onde antes a alegria entrava desmedidamente existe hoje uma melancolia espontânea, um dom lascivo, delirante, silencioso. sei de segredos irredutíveis, alguns insignificantes, outros origem de importantes mutações, com geografias, riscos, analogias — não fosse eu igualmente um princípio. tenho as portas e as janelas abertas, o meu gato olha para o reflexo da água no teto. enquanto me recordo do dia, concebo um mundo sem estirpes, entre o inesperado rigor de uma ampla partitura e uma imaginação profunda. tudo o que nele se manifesta é movimento e som, tem o inquietante sabor de uma potência íntima. é improvável que a possa compreender, mas não desejo interrupções.

7 de maio de 2018

Se alguém me apedreja, eu irrito‑me. E temos até a responsabilidade do nosso mau carácter; se eu ficasse impassível, alguém perdia a fé. Não sei quem, mas isso tem muita importância.

Agustina Bessa-Luís

5 de maio de 2018

um céu azul que desafia a coerência liberta-me de mil intentos e vejo-me lançada na grande planície do desejo. aqui tudo se oferece, mas nada se recebe. ao crepúsculo, a monstruosa — ainda que porventura sagrada — nostalgia da duração, abre um espaço crescente no corpo. a ela respondo com voracidade e deito por terra as perguntas que impõem limites: sou senão uma afirmação pungente, um vértice, uma graça irreconciliada feita para tocar e ser tocada.

3 de maio de 2018

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Filipe Catto, Faz Parar.

22 de abril de 2018

no meu livro de horas #2

no meu livro de horas está inscrita a claridade da alvorada e tudo aquilo que em mim, de tão sombrio, se manifesta indizível. quando está aberto, nenhuma presença perturba a minha atenção, nem mesmo a da criança que não me chegou a visitar. no momento em que nada respira e onde apenas a luz se move, escrevo nele. o encontro com a gratuitidade do tempo é feroz, a mãe solar envolve-me. pensando que estão sozinhos, os animais olham-me nos olhos antes de desaparecer novamente, livres e selvagens. estou aqui, estou viva. e os outros? têm um papel difícil, sempre catastrófico: o de fugir à banalidade e ao espetáculo. como um silêncio que nos é oferecido em resposta à agitação do mundo, caminhamos lado a lado com a alegria inesperada do encontro. mergulhamos num espaço voluptuoso onde a espera e o vazio repousam sem regras e sem violência. somos viajantes da montanha, temos um tesouro entre as mãos. a nossa récita inscreve-se no branco da página, inefável e segura.