27 de novembro de 2017



Prenda do R., poema do António Reis.

26 de novembro de 2017

a verdade, embora improvável, é a verdade deste momento e — tenho mesmo de o escrever — inocente, fala silenciosamente. o mundo tal como ele é, é lúdico, inapagável, um tanto ameaçador. o melhor seria mesmo inventar um alfabeto, ainda que destinado a perder-se em todo o seu mistério, que celebrasse por momentos todas as contradições. como um transe, através de todas as metamorfoses, ambíguas e arbitrárias, a embriaguez seria ainda maior e mais pungente, o único bem da vida, enquanto à superfície a vida normal, não pensada e prosaica, como uma angústia diligente e firme, se organizaria como um teatro.

24 de novembro de 2017

eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema.

Maria Gabriela Llansol

21 de novembro de 2017

Outono

a nespereira
em frente à casa
deu flor
Le monde est excité le monde est exalté
Comme au festin du plus grand sacrifice
Comme en montant les marches du printemps

*

Moi seul imperturbable
En nouveau-né qui n’a pas encore… ri
Moi seul je vais errant
Sans but précis en homme sans logis

*

Si chacun tient sa richesse
Je parais seul démuni
J’ai l’esprit d’un ignorant
Celui-ci est bien trop lent

*

Si chacun est clairvoyant
Seul je reste obscurité

*

Si chacun est perspicace
Moi seul ai l’esprit voguant
À flotter comme la mer
À souffler comme le vent

*

Si chacun tend vers son but
Moi seul ai l’esprit confus

*

Tel celui d’un paysan
De tout un chacun moi seul diffère
Car je tiens bien à téter ma mère


Lao-Tseu, Tao-Tö King.
eu devia ter sido cantora. penso nisto sempre que oiço música do século XVII para trás (a esticar para poder incluir Bach e Purcell), embora não perceba nada de música. ainda tive umas aulas no Colégio, onde aprendi a ler uma pauta, tocar flauta e uma série de instrumentos de percussão e onde integrei um coro de vozes femininas. cantávamos em todos os naipes, apenas ao som do piano ou, como tantas vezes me calhou, a capela, na missa. os instrumentos estavam reservados às aulas de música e, pelo menos nos anos em que dele fiz parte, não entravam no coro. é possível que a minha breve participação neste coro, contudo, tenha vindo a definir, com maior relevo que aquele que conscientemente lhe atribuo, as minhas preferências musicais. sou ferozmente atraída para uma música de expressão arcaica, que se entremeia com a natureza e com o que há de mais arraigado em nós. nisso, sou coerente até pela escolha de música pop/rock que mais tarde vim a ouvir, onde encontrei muitas vezes ecos do género erudito e do folclórico. o jogo do tempo na música é simultaneamente físico e emocional: vem do interior do corpo, dos nossos ritmos de vida e pertence-nos tanto quanto não nos pertence, trazendo-nos por vezes uma parte de nós que nos falta, como o silêncio.

17 de novembro de 2017

a previsibilidade de uma rotina é o melhor resguardo da intimidade imprevisível.
a criança que eu era engolia caroços porque lhe disseram que assim nasceria uma árvore no estômago.

16 de novembro de 2017

a criança que eu era escondia-se sempre que podia para caminhar para trás, porque lhe disseram que assim estava a ensinar o caminho ao diabo.

15 de novembro de 2017

um sono de chumbo, não sei se de morte se amoroso, cobre-me de forma pueril e embala-me. enquanto na superfície a calma tem tanto de absoluto como de terror, nada tem de limpo a minha vigília, mas sim de turvo e leitoso. embora encerre o indício preciso de uma regularidade obsessiva, este sono tem tanto de insolente como de melancólico: como a lira de Orfeu, a sua hierarquia interna dissolve sem azáfama os tormentos dos condenados e silencia a natureza.