22 de julho de 2017

Doc: Paterson, you still don't got a cell phone?
Paterson: Uh, no. No, I don't want one. It would be a leash.
Doc: What about the better half, she got one?
Paterson: She's got one, yeah. And the laptop, and an iPad...
Doc: She doesn't want you to get one?
Paterson: No. She's okay about it. She understands me really well.
Doc: A lucky guy.

PATERSON, Jim Jarmusch (2016).

17 de julho de 2017

não tive filhos. até muito tarde não quis e, quando quis, nunca estive completamente certa. agora que o tempo irremediavelmente acabou, penso nisso como um «se». na verdade, nunca me imaginei com filhos, filhos que crescem, que adoecem, que são ternurentos, exigentes e espantosos. contudo, tive uma grande curiosidade sobre a gravidez, sobre aquilo que acontece no corpo de uma mulher, tanto no que respeita ao processo de gestação como ao momento do nascimento. não aconteceu e, assim, parece-me que há uma parte do meu corpo que me é desconhecida, que existe de forma latente sem que eu possa tocar-lhe. creio que nem todas as mulheres o sentem e pergunto-me — pergunta opressora — que sentido tem para mim. desde criança, tudo o que me interessou na vida foi a sua potência criadora, mas a dimensão da espera sobrepôs-se à da materialização. a escrita tem aí qualquer lugar, embora eu não saiba exatamente que significado atribuir-lhe. de algum modo, nunca se acaba de escrever e, sobretudo, aquilo que se escreve não nos pertence. quantas vezes reli textos, com anos ou meia dúzia de meses, e pensei «não eu, não eu». por outro lado, os textos têm uma vida independente, somos chamados a escrevê-los. a sua formação tanto pode levar anos como alguns minutos, sem que isso interfira ou contribua para a sua maior ou menor qualidade. conhecer-se enquanto escritor exige ferocidade e paciência na mesma medida. escrever é sempre um ato desesperado.
Me habré muerto antes de saber quién soy, porque para saberlo, el tiempo tiene que pasar. Sólo con el tiempo se empieza a ver el valor.

16 de julho de 2017

em criança
incluía com frequência
nos meus desenhos
fábricas fumegantes
não porque conhecesse alguma
mas por gostar da
forma geométrica
dos seus telhados.

da janela do comboio
parado na estação
observo adolescentes
atravessar um
baldio abandonado
com ervas secas e altas
entre aglomerados
de prédios.

a fábrica e o baldio
são iguais.
pertencem ambos
à imaginação diletante 
são forças obstinadas
com um vestígio de orgulho
impressas no horizonte 
como no poema.

15 de julho de 2017

entro no tempo do gato
que se espreguiça junto ao meu corpo
e o lambe
deixando-se cair em seguida
em repouso

7 de julho de 2017

A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.

Walter Benjamin

26 de junho de 2017

CORO DE MARIONETAS (tom ríspido e severo).
"Olha que a comida não fica aí!"
"Só te faz é bem!"
"És cá um mariquinhas!"
"Quanto eu tinha a tua idade é que tu havias de ver...!"
"Não me faças ir aí!"
"Queres ver que eu vou aí?"
"Vê lá se aprendes com o teu irmão!"
"Ficas aí sozinho a comer tudo até ao fim!"
"Estás cada vez pior!"
"Assim nunca vais ter amigos."
"Só mais uma garfada, não chores!"
"Não vais dormir enquanto não comeres tudo!"
"Não te volto a avisar!"

Como um quarto sem telhado (excerto).

25 de junho de 2017

muito ao longe, vi a contra-luz um perfil que se destacava na praia e fiquei hipnotizada por ele. uma mulher de grande estatura, vestido e chapéu, abraçava nitidamente apaixonada um homem, que lhe retribuía a atenção. duas crianças brincavam sentadas na areia aos seus pés, tranquilamente ignoradas. ao vulto da mulher, chamei imediatamente Virginia Woolf. era muito magra, o vestido comprido e o chapéu pareciam vindos de outro século, tinha um nariz proeminente e era extraordinariamente alta. ao longe, parecia uma marioneta a quem alguém ia imprimindo os movimentos. com aqueles membros esqueléticos, o nariz tão destacado, os pequenos tufos de cabelo saindo do chapéu, alta como uma torre e vestida apesar do calor intenso, era muito feia. fiquei a observá-la toda a tarde, imaginando divertida que uma das minhas escritoras preferidas tinha uma sósia viva. sonhei com os campos de onde vinham, o countryside inglês, onde ela usaria vestidos às flores e chapéus com fitas de cetim e levaria uma cesta para o mercado. como se estivessem numa ilha deserta, a ternura que manifestava através de abraços, segredos ao ouvido, beijos, contrastava enormemente com aquilo que se via na praia entre outros casais e, durante essa tarde, impressionou-me sobretudo a pouca atenção que ela dava às duas crianças. existia levemente, como se não tivesse uma preocupação no mundo senão a de amar. foi isso que me enfeitiçou.

24 de junho de 2017

«Em Lisboa nunca até hoje houve noites quentes como estas, saía-se sempre com um casaquinho», ouvi no outro dia a uma amiga. e que pena tive dos lisboetas! eu que recordo os longos estios em que a cidade toda saía à noite para passear no jardim e na avenida que o contorna, em mangas cavas e alças. comiam-se gelados, as crianças corriam escondendo-se nos arbustos, o café que tinha a esplanada debaixo de uma videira carregada de uvas brancas estava cheio. as velhas sentavam-se em bancos à porta de casa e ficavam a conversar até tarde. depois, a minha avó estendia colchões de praia para toda a família na varanda e aí dormíamos, embalados pelas cigarras e pelo som do vento no trigo. esse calor colou-se a todos os que o viveram e, com frequência, o recordamos em conversas triviais. o ar mole dessas noites que, ao contrário, desapareceram da cidade onde nasci, no interior do país, era a imagem da felicidade. hoje as noites são desertas. ninguém passeia, ninguém se encontra nos cafés, ninguém conversa até altas horas, as crianças ficam fechadas em casa a ver televisão ou a jogar tablet. como seria Lisboa há 40 anos? convenço-me, sem apelo nem agravo, que esta cidade nunca será minha. o meu coração, que tanto a deseja desde criança, sempre tendeu para amores impossíveis.

22 de junho de 2017

fui para o jardim com um livro debaixo do braço e uns calções de ganga mal amanhados, cortados por mim, uma t-shirt demasiado larga e a depilação por fazer. precisava da brisa de fim de tarde e da visão das árvores para afastar a fadiga do dia. ao chegar, encontro um antigo colega de trabalho no quiosque, uma daquelas pessoas que só veste calças beijes e camisa branca ou azul, casado, com dois filhos, apesar de ser muito mais novo do que eu, que tem uma mulher loira e trabalha numa leiloeira de arte. percebi imediatamente que teria preferido não me ver mas não percebi logo porquê. ao aproximar-me, resigna-se a olhar na minha direção, e a sorrir, mas não pôde evitar olhar com horror para a minha t-shirt e para os calções. dirigi-me a ele, também por obrigação, porque não me apetecia ver ninguém. estava com um carrinho de bebé onde a sua filha recém-nascida dormia e falou dela. depois explicou-me que ia haver ali um jantar de trabalho. reparei então em duas mulheres vestidas de igual, quase nuas à exceção das pernas, plantadas com as mãos atrás das costas perto de um expositor de gin e numa mesa comprida com uma toalha vermelha, copos de pé alto e pratos bonitos. foi nesse momento que percebi o seu pouco à-vontade comigo. não estava à altura da ocasião e era com certeza muito incómodo demonstrar perante os colegas que conhecia pessoas da ralé. afastei-me com o meu livro para debaixo da copa das árvores e, enquanto caminhava, reparei que colocava os pés à frente um do outro como uma menina, como me ensinaram a fazer no colégio. foram apenas três ou quatro passos mas bastaram para que não saiba qual de nós foi o mais ignorante.