1 de maio de 2017

uma temporalidade desesperada torna-se real e a sua beleza preenche a distância. olho-me ao espelho e um rosto enigmático mostra-me o animal dilacerado pela imaginação. somos admitidos na luz febril da manhã e a sua multidão de sombras tempestuosas abre uma estrada eterna. não toco em nada. nos confins do mundo, procuro a violência, a morte. transporto um pesado, inquietante silêncio. o êxtase vem e o meu corpo aprova mas a minha consciência está perturbada. insensata e maliciosa, uma palavra precipita-se e ganha forma, como um incêndio.

22 de abril de 2017

uma parcela de escuridão deveio uma forma maravilhosa, sagrada, absoluta. não foi fácil conservar a sua limpidez, a ponto de acreditar que um dia não se adaptaria à pele. separados por não sei quantas sílabas, mergulhados numa obscuridade que nenhuma luz deturpou, podemos encontrar beleza numa forma que se prolonga até ao infinito. uma frequência atual confere-lhe densidade, vem-me à ideia as cores frescas de uma flor cujo nome está escondido no longínquo jardim. o segredo é só esse: as mãos penetram o espaço sem noção do tempo, com profunda modéstia, e substituem todos os encantos, com requinte.

21 de abril de 2017

a vida muda ao tornamo-nos mais conscientes de nós próprios. dentro da grande abstração, é bom ter noção de alguns contornos, como é bom abandonar o que não nos pertence, que é afinal o que os define. há uma atenção delicada, de minúcia, na hora certa, aquela em que vemos cair o que muito desejámos, com isso percebendo que o caminho permanece aberto, amplo, novo. e assim será ainda quando tivermos partido.

19 de abril de 2017

realizações puras evitam a ordem impressionante das coisas que esquecemos e rememoramos. logo adiante, um fogo angélico queima o sentido e a paz que dele decorre. fugimos para as montanhas altas, sempre com a esperança de não regressar aos poucos, limitados e famintos. o terreno é fértil, as canções silenciosas, o incrível desencontro sucede-nos, como um mão aflita. é preciso dizer que um órfão nos denunciava constantemente. qual seria o seu nome? em vão lhe perguntámos, em vão o ouvimos.

17 de abril de 2017

era terrível saber como naquele tempo a noite se misturava com o dia, os sonhos com a vigília, os animais com os espectros. assim, podíamos subitamente sair e entrar no dia e na noite, falar connosco como se com outrem, dormir acompanhados por mil rostos desconhecidos e, tal como os guardiões das casas, procurávamos destino. a solidão era, de todos os destinos, o mais raro e precioso e a comunhão era tácita, surpreendente. havia fé — atualmente inexplicável: certos momentos todos parávamos para escutar com uma devoção simples e completa. o futuro era um engenho acionado por uma palavra e, embora todos a soubéssemos, ninguém se atrevia a pronunciá-la. desconhecíamos a negra avalanche do impudor, desconhecíamos o peso das conquistas e das virtudes. falávamos, cada um, uma língua estrangeira, que, em pleno nada, compreendíamos. o ar, tépido e seco, cheirava a jasmim e a tempestade. como hoje.

10 de abril de 2017

como um pequeno sono sem sobressaltos, o inverno passou suavemente, com três dias de chuva intensa e trovoada passados inteiramente em casa a ler. a delicada rotina das estações impõe-se, o tempo foge e, quase sem darmos por isso, deixa em nós a sua marca. continuo a perguntar-me pelo que sou, mas já não pelo que serei. o passado está no seu casulo, o futuro é hoje e nem a alegria nem a tristeza o corrompem.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente.

Clarice Lispector
um poço vazio enche-se de água clara a cada vez que o teu olhar se dirige para mim. refletido nele, em segredo, o meu sorriso dirige-se para o fundo, onde um dragão entreabre e volta a fechar os olhos. sempre vígil, na humidade como na secura, nunca se oculta e nunca se abala. há entre nós um liame subtil, mas não sei o que lhe vai no coração. fico à espreita, procurando um sinal dele entre a sua impassibilidade. talvez sequer bata, talvez seja um produto da minha imaginação. a água clara sobe, o meu sorriso irrompe, oiço uma música ao longe que não sei de onde vem. será que também ele a ouve? nada sei sobre isso. ligada ao dragão imóvel o teu olhar volta a desviar-se. olho para o fundo do poço negro, e, não sei por que sortilégio, não posso partir.

9 de abril de 2017

que sentido têm estes ecos? aparências de corpos julgados necessários, do fundo da nossa vida a paralisia prossegue como uma fórmula mágica, indecifrável. dos caminhos extraio o inconcebível, o alarmante, o protesto, a brilhante obscuridade do pó, mas não posso caminhar. debruço-me sobre o labirinto de janelas, cansada e, ao mesmo tempo, renovada, sem sono, ainda assim, ingénua e crédula no despertar. separa-nos um instante, ao que dizem é a eternidade.

8 de abril de 2017

um tronco cujas extremidades se desconhecem arrancou em sentidos opostos e desenhou um círculo sobre si próprio. uma vez completo, o círculo revelou, com uma voz que não era a sua, que numa das suas extremidades se encontrava o ódio e na outra o amor. pasmado pela estranheza do que se mostrava, e através dela, o tronco soube de si próprio pela primeira vez e sentiu repugnância.