18 de maio de 2016

Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.

Natalia Ginzburg (partilhado por Vinícius Nicastro Honesko no Facebook a 18.05.2016).

17 de maio de 2016

Suicide Note:
The calm,
Cool face of the river
Asked me for a kiss.

Langston Hughes
Echo*

A lone
voice

in the
right

empty space
makes

its own
best

company.

Robert West
*(obrigada)

5 de maio de 2016

Microdefinição do autor

(A)
Sinto-me compelido ao trabalho literário: Pelo desejo de suprir lacunas da vida real; pela minha teimosia em rejeitar as “avances” da morte (tolice: como se ela usasse o verbo adiar); pela falta de tempo e de ideogramas chineses; pela minha aversão à tirania — manifesta ou súb­dola —, à guerra, maior ou menor; pelo meu congênito amor à liberdade, que se exprime justamente no trabalho literário; pelo meu não-reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade; pelo meu dom de assimilar e fundir elementos díspares; pela certeza de que jamais serei guerrilheiro urbano, muito menos rural, embora gostasse de derrubar uns dez ou quinze governos dos quais omitirei os nomes: receio que outros governos excluí­dos da minha lista negra julguem que os admiro, coisa absurda; porque sou traumatizado pela precipitação diária dos fatos internacionais; por ter visto Nijinski dançar; pelo meu apoio ao ecumenismo, e não somente o religioso; por manejar uma caneta que, desacompanhando minha ideia, não consegue viajar à velocidade de 1.000 quilômetros horários; pelo meu ódio físico-cerebral ao fascismo, ao nazismo e suas ramificações; pela tendência a preferir Aliocha a lvan e Dimitri Karamazov; porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador; porque não separo Apolo de Dionísio; por haver come­çado no início da adolescência a leitura de Cesário Verde, Racine, Baudelaire; por julgar os textos tão importantes como os testículos; por sofrer diante da enorme confusão do mundo atual, que torna Kafka um satélite da Condessa de Ségur; pela minha tristeza em não poder conversar esquimaus e mongóis; pela notícias de que Deus, diante da burrice e crueldade soltas, demitiu-se do cargo de administrador dos negócios do homem; pelo charme operante das cabeleirosas e das pernilongas, das sexy a jato e das menos sexy a tílburi; pela fúria galopante dos quadros e colagens de Max Ernst; pela decisão de Kasimir Malevich, ao pintar um quadrado branco em campo branco; pela vizinhança através dos séculos, malgrado as sucessivas técni­cas e rupturas estilísticas, de Schönberg e Palestrina; pelo meu amor platônico às matemáticas; pelo dançado destino e as incríveis distrações de Saudade; pelo meu não vertical às propostas ­de determinados apoetas impostas no sentido de liquidação da poesia; pelas minhas remotas e atuais viagens ao cinematógrafo, palavra do tempo da infância; porque temo o dilúvio de excrementos, a bomba atômica, a desagregação das galáxias, a explosão da vesícula divina, o julgamento universal; porque através do lirismo propendo à geometria.

(B)
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria — desde 900 biliões de anos? —, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. Na gruta de Altamira disse; eu estava aqui na época em que gravaram estes bichos. As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.

(C)
De substrato pagão; covarde; oscilante; incapaz de habitar o faminto, o leproso, o pária; aterrorizado ante a cruz trilíngüe — máximo objeto realista — oclusa ao olho dos doutores, travestida pela montagem teatral de Roma barroca-poliédrica; obsedado pelo Alfa e o Ômega; bêbado de literatura, religião, artes, música, mitos; imbêbado de política, economia, tecnologia; expulso dos teoremas; tachado de analfabeto pelo físico nuclear e pela história, dama agitadíssima; consciente da força agressiva do mundo moderno, da espantosa ambigüidade da natureza humana, indecisa entre adorar a matéria ou destruí-la; dinâmico na inércia, inerte no dinamismo, sou.

Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa.

29 de abril de 2016

as decisões determinantes da minha vida foram motivadas pela noção que tenho de mim própria enquanto animal. creio que pode ser isso aquilo que melhor distingue uma mulher de um homem.

20 de abril de 2016

Estou convencida de que
faz parte integrante da vida na terra
sermos magoados
naquilo a que somos mais sensíveis,
no que nos é mais insuportável:
o essencial
é como nos saímos disso.

Rahel Varnhagen

18 de abril de 2016

apesar dos tons pastel e da luz intensa que, à exceção da base, preenche todo o quadro, fico a pensar «porque é que a igreja e as árvores têm a cor do céu?». é como se víssemos uma imagem do que outrora foi e se desfez. com toda a sua luz e aparente tranquilidade — transmitida unicamente pelas cores e em contraste (em curto-circuito) com a onda que estala no céu , é uma imagem de destruição, de morte. o que ainda vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína. não estará lá, não está lá. aquilo que vemos é já pó.

William Turner, Quillebeuf, Mouth of the Seine, 1833.

16 de abril de 2016

Mrs. Dalloway is always giving parties to cover the silence.

Virginia Woolf

15 de abril de 2016

Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim. O pouco significarem garante-me completa liberdade e isenção, em ordem a uma nova linguagem (…). Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me, digo, muito menos executar uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia do diálogo no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro.

Herberto Helder em entrevista, 1964.
saí e sentei-me ali mesmo nos degraus, onde enrolei um cigarro cuja perfeição contemplei por um momento. o futuro chegou ao cabo sem pasmo, num pequeno silêncio.

9 de abril de 2016

— sombra.

Al Berto, in Apresentação da noite.

6 de abril de 2016

O facto de haver qualquer coisa risível nisto tudo, neste conjunto de homens sentados com as calças puxadas até aos joelhos, cada um na sua própria cabine, grunhindo e gemendo e mexendo no pénis enquanto viam filmes de mulheres a fazerem sexo com cavalos ou cães, ou de homens com outros homens, era algo que nem eles próprios podiam negar, mas também não o admitiam, uma vez que o riso verdadeiro e o verdadeiro desejo são incompatíveis, e tinha sido o desejo que os conduzira até lá.

Karl Ove Knausgård, A Morte do Pai.

John Constable, Cloud study 6 September 1822

5 de abril de 2016

Margarida Magalhães

Breath (pneuma) has always been seen as a sign of life... Language is speech before it is anything. It is born of babble and shaped by imitating other sounds. It therefore must be listened to while it is being written. So the next time someone asks you that stupid question, “Who is your audience?” or “Whom do you write for?” you can answer, “The ear.” I don’t just read Henry James; I hear him... The writer must be a musician—accordingly. Look at what you’ve written, but later... at your leisure. First — listen.

William H. Gass, in The Sentence Seeks Its Form, encontrado aqui.


Agnès Varda, Uncle Yanco (1967).

3 de abril de 2016

(...) — beaucoup de rêves, un rare éclair, un rare éclair de bonheur, un peu de colère, puis le désillusion, des années de souffrance et la fin — (...).

W. G. Sebald, in Os Anéis de Saturno citando Joseph Conrad.

1 de abril de 2016

DER HIMMEL ÜBER BERLIN, Wim Wenders, 1987.
           
Amadurecer significa separar de forma mais nítida, ligar de forma mais íntima.

Hugo von Hofmannsthal, O Livro dos Amigos.

31 de março de 2016

FAIRY

Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis do silêncio astral. O ardor do estio foi confiado a aves mudas e a indolência requerida a uma barca de lutos sem preço por angras de amores mortos e de perfumes esparsos.
— Depois do momento do canto dos lenhadores rumor de torrente sob a ruína dos bosques, dos chocalhos do gado ecoando nos vales; e dos gritos na estepe.
Para a infância de Helena tremeram as peliças e as sombras, — e o peito dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e danças ainda superiores às cintilações preciosas, às influências frias, ao prazer do cenário e da hora únicos.

Jean-Arthur Rimbaud