5 de dezembro de 2014

dizer não, afastar-me para o lugar mais desterrado, mais silencioso da terra, esperar e, um dia, começar a escrever.

2 de dezembro de 2014

O momento mais arriscado na travessia do oceano, quando o sal já chegou aos sonhos, é a nostalgia dos homens nobres.

1 de dezembro de 2014

nasci à sombra dos ciprestes, impenetráveis, cujo interior maciço se encontra repleto de ninhos. descobri que era uma mulher porque em tudo encontrei sinais do amor, para logo perceber que um imenso coro de vozes falava em meu lugar, mas nunca dele. a esperança, conheço-a, como uma violência sem redenção. defendo os segredos que me foram confiados e não os revelo senão àqueles que podem compreendê-los. vivo agora num lugar abençoado sobre a terra, onde os amigos são sombrios e silenciosos, impassíveis e frágeis. um lugar esquecido, onde nada existe para além da fraternidade, ela própria secreta e perecível.

30 de novembro de 2014

O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.

Herberto Helder, entrevista publicada no Jornal de Letras e Artes n.º 139, de 17 de Maio de 1964.

29 de novembro de 2014

A escolha de um leitor

Primeiro, desejaria que ela fosse bonita,
e que se aproximasse com cuidado da minha poesia
no momento mais solitário de certa tarde,
com o cabelo junto ao pescoço ainda húmido
de o ter lavado. Ela deveria estar com
uma gabardina, velha, suja
por não ter dinheiro suficiente para a lavandaria.
Ela retirará os óculos, e ali
na livraria, folheará
os meus poemas, devolvendo então o livro
à prateleira. Dirá para si mesma,
"Por este dinheiro, posso mandar
limpar a gabardina." E assim fará.


Ted Kooser
Perdão

dentro de um espelho
uma lareira
aguarda o lume.
antigamente, diz-se, as madrugadas eram negras
e os cães farejavam ansiosos o prado
o trigal
até chegarem perto das casas
porém sem nunca atravessarem certo limite
imaginário para nós
que as habitávamos
na desconfiança dessa proximidade nula
embora sentindo o calor do seu faro
e conscientes do orvalho pousado sobre o pelo
durante a noite
não podíamos saber se eram cegos
se atrás da córnea azul e branca dos seus olhos
podiam ver os vultos que nos preenchem
e que nós próprios não podemos ver
por sermos cegos
e territoriais
nas varandas das casas.

os nossos gestos eram brutais
transparentes, magnânimos
os cães desapareciam
e tudo o mais era esperar pelos cães
pela próxima madrugada
abençoadamente negra
com o silêncio à volta
não se sabe se a expandir-se se a invadir
pois era completo e se omitia
o que me lembra que os cães não ladravam
nunca ladravam
farejavam
e as pessoas nas varandas nunca falavam
esperavam sem qualquer desespero
eram imprudentes
enraizadas nas suas incógnitas
nunca diziam sim
nunca diziam não.

não se sabe porque os cães deixaram de aparecer no horizonte
talvez porque os trigais fossem secando
e a enxada não voltasse à terra
e de uma madrugada negra, impiamente pura
viesse um nome
num momento em que ninguém estava à varanda
em silêncio, omitindo-se,
à espera.

a civilização é isto
cresceu destas varandas diante de trigais vislumbrados em manhãs negras
onde cães vadios entravam para farejar
sem se aproximarem
cresceu procurando andar para trás
para trás para trás para trás
para ouvir o nome que por fim chegou numa madrugada
e que apenas o silêncio ouviu
e omitiu.

28 de novembro de 2014

Quando leio sou uma ótima pessoa, inócua e silenciosa, e não cometo nenhuma estupidez.

Robert Walser