31 de agosto de 2014

Houve uma altura em que as pessoas poupavam papel. Por nenhuma razão ligada à ecologia mas porque o papel era um bem precioso, a cujo uso era dada soberania nas suas vidas. Se ter papel em casa era prestigiante, a sua ausência nas gavetas correspondia à confirmação da singeleza, esta tratada como um sacramento. Lembrava-se assim que, material frágil de entre os mais frágeis, perante um destino comum, sabedoria e ignorância equivalem-se e que, acima da sua soberania, prevalecia ainda o imperscrutável mistério do gesto e do olhar, que nem todo o papel do mundo chegaria para esclarecer. A sua manipulação extraordinariamente exigente manteve-se intacta, como um estilete invisível, mesmo quando o seu valor decaiu, por via do crescimento da sua produção e da democratização do seu uso, ou seja, da escolaridade obrigatória. Cuidar do papel que se possui tornou-se ao tempo, em si, um fator meritório mas o elitismo dos mais instruídos alimentava-se dos contornos poéticos que descobria num cartucho de castanhas a arder. Lembro-me ainda, e não tenho assim tantos cabelos brancos, de ser zombada por me ter cortado numa folha que tinha acabado de retirar de um maço de papel para impressora. E com a mesma vivacidade me lembro de ter vigiado o sangue a aparecer, ocultando ao mesmo tempo o desejo de que a pele ali guardasse uma pequena cicatriz.

29 de agosto de 2014

Sob os plátanos, grupos de adolescentes sobem e descem a avenida que vai dar ao mar. Quatro rapazes, três negros e um branco, aproximam-se pela minha esquerda. Como uma mola, o meu olhar é atraído para o rapaz branco, louro, de olhos azuis, com a pele queimada, os ombros direitos e o peito a descoberto no limite de um corpo bem desenhado. Lembra-me o deus grego da praia da Nazaré, e sinto-me abençoada por poder ver aquilo que é único repetir-se. Quando nos cruzamos, ouço-o falar crioulo. «Noutro tempo», concluo no meu choque, «teria causado a minha destruição».
Estou há muito tempo parada à beira-mar quando subitamente, como se fossem algas, dois rapazes são trazidos pela água, um a cada lado dos meus pés. O mar recua e eles, deitados de barriga para baixo na areia, olham um para o outro, riem e num salto correm novamente para o mar, mergulhando de chapa numa onda. Creio que nem viram os meus pés no meio das suas cabeças.
Como são admiráveis estes rapazes! Quanto arriscam.
Tenho pena de há muito ter desistido de viver embora também haja privilégio em ter conhecido o íntimo terror da sombra. Voltar a ter um glossário é pois para mim um gesto da mais pura afirmação, todo feito de alegria e certeza. Falhei em tudo e já não tenho vergonha em declarar que amo o que o mundo despreza.

28 de agosto de 2014

27 de agosto de 2014

Quando ainda vivia soterrada, rapei o cabelo porque era a única coisa que podia fazer para afirmar que não pertencia àquele lugar. Tinha uma longa cabeleira loira carregada de caracóis pelo meio das costas e tive de ir a três cabeleireiros para conseguir livrar-me dela. Tinha 17 anos. Perguntaram-me se não queria guardar um caracol para recordação. Coisas assim desesperavam-me. No entanto era delicada, recusei agradecendo. Espantava-me nessa altura, e por vezes ainda me espanto, ao deparar-me com a diferença abissal entre a idade do meu corpo e a minha idade real. Talvez todas as mulheres nasçam velhas e por isso se espantem ao passar diante do seu próprio reflexo. E talvez por isso desejem os filhos. A quem mais passar essa sabedoria, que só se revela na solidão e àquele que se encontra em silêncio?

25 de agosto de 2014

Uma pessoa ofereceu-me um quadro com a imagem que tenho de mim própria. É o perfil de uma mulher sentada que olha para o vazio. Não se vê o seu olhar, não se sabe para onde é dirigido. Está sentada numa cadeira. Ao fundo está um móvel com algumas louças em cima e à direita dele um cortinado. É possível que ela olhe para o espaço para lá de uma janela ou para o espaço que medeia entre si e a janela. Vemos o seu cabelo louro cair sobre os ombros, um vestido azul claro antiquado.

Não tenho outro significado para o amor.

Que perigo maior do que ver o múltiplo unificar-se? O sentido dos nossos gestos escapa-nos. No limite talvez nem exista. Aquilo que defendemos é tenazmente obscuro. Acredito nessa obscuridade, para lá de tudo, uma obscuridade lodosa, inegligenciável, que nos racha como um talhante. O que acontece é precisamente o silêncio. Sou eu esta mulher sentada a olhar para o vazio ou para o espaço além da janela, à espera. Por vezes sorri mas ninguém a vê sorrir. Nunca fala. Ninguém a vê fazer nada senão esperar. O seu mistério é inacessível e abominável, sólido mas aviltante. Se pronunciasse uma palavra, seria para mostrar que não tem vergonha nem orgulho em ser observada. Ela vive onde o cabelo cresce, lento e silencioso território, intocado.

24 de agosto de 2014

no interior de todos os fogos
vigia-nos 
um ígneo jardim negro
cujas artérias
amplamente secretas
tocam o fôlego
que assusta as mãos

tudo dorme
um sono múltiplo
onde o verbo desemboca na morte
que toca a boca

e a luz sobe
como uma mulher madura
parada e insondável
treva de som

23 de agosto de 2014

«Venha cá dona! São artigos de luxo a 5€ para usar no baile de logo à noite, nem uma sardinha assada consegue comprar a este preço!», era a cantoria de uma cigana no mercado. Quando voltei para baixo, os artigos de luxo já estavam a 3,5€. As entradas no baile é que devem ser caras. Turista na minha própria terra, esquecida dos costumes e das regras silenciosas (as mais sólidas), meti-me com ela, para elogiar a sua alegria contagiante, mas só uma mulher muito velha a seu lado, provavelmente a mãe, me respondeu. Da bela jovem cigana vestida de negro só recebi um olhar fulminante, que me acertou em cheio num nervo e me matou.

22 de agosto de 2014

Uma cidade de província é mais imprevisível do que Londres e Paris, sempre postas em juízo pela informação dos seus escritores e dos seus visitantes.

Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - Jóia de Família
I have no memory for things I have learned, nor things I have read, nor things experienced or heard, neither for people nor events; I feel that I have experienced nothing, learned nothing, that I actually know less than the average schoolboy, and that what I do know is superficial, and that every second question is beyond me. I am incapable of thinking deliberately; my thoughts run into a wall. I can grasp the essence of things in isolation, but I am quite incapable of coherent, unbroken thinking. I can’t even tell a story properly; in fact, I can scarcely talk.

Franz Kafka