26 de julho de 2014

Quatro homens estão sentados na esplanada do café de um bairro de subúrbio. Um quinto está em pé e fala com uma garrafa de cerveja na mão. Os quatro homens ouvem o seu monólogo sem nunca dizer palavra mas acompanhando a conversa através de gestos, expressões faciais e sons.

- E eram ciganos. Eram todos ciganos. Ela era cigana. Aquilo era cá uma mistura. Que raça...! Eram de um lado pretos e do outro ciganos.

Faz uma pausa. Olha para a frente, à primeira vista parece estar a olhar para o homem sentado à sua frente mas na verdade está a olhar para o vazio. Depois continua:

- Ah e mais! A mãe dela era prostituta.

O que se subentende é que as putas são uma raça. Todos esboçam um sorriso enquanto gesticulam para o lado e olham uns para os outros e para as pessoas perto da entrada do café. Aproxima-se um outro homem. O falador dá-lhe uma palmada por trás do ombro para o cumprimentar mas sem nunca parar o recém chegado diz-lhe:

- Não me toques.

Há um momento de silêncio pesado. O falador fixou o olhar no recém chegado e de risonho passou a sisudo. Todos esperam a sua reação. Começa a dirigir-lhe piadas por meio de perguntas que não recebem resposta, enquanto o recém chegado acende um cigarro em pé perto da porta do café e me observa como se eu não o estivesse também a ver. Com o cigarro pendurado nos lábios, finalmente esboça um sorriso e responde-lhe qualquer coisa entredentes. Entre a sua chegada e a minha partida, nunca chegou a olhar para ele.

25 de julho de 2014

24 de julho de 2014

Agora vou continuar a ler os meus velhos diários. Afinal não os vou rasgar.

Etty Hillessum, Diário 1941-1943, 28 de julho, 1942, oito e meia da noite.
Tive uma sensação estranha há pouco ao ouvir a minha voz. Como se finalmente tivesse conseguido afinar o tom para dar a nota certa.

22 de julho de 2014

O cheiro a cera no edifício de habitação das freiras, onde raras alunas entravam e cujos recantos eu conhecia bem. O chão de madeira escura brilhava de uma ponta à outra, por vezes uma freira de joelhos no chão passava num recanto a dar lustro com um pano de lã cinzenta. No guichê da entrada havia telefones negros que quando tocavam podiam ouvir-se cá fora no pátio. Os quartos das freiras, no primeiro andar onde até eu me surpreendia por me deixarem subir. Local de reclusão, de cada um dos lados do corredor os quartos sucediam-se, quase todos iguais: uma cama, uma mesa de cabeceira, uma mesa de camilha ou uma secretária, uma ou várias cadeiras, uma estante. Tudo aquilo me fascinava por ser tão diferente do mundo exterior. Uma poética de clausura, de silêncio, de disciplina e de sobriedade, do ascetismo, da moderação, da frugalidade, de uma alegria com origem na modéstia e da simplicidade. Eram estas as razões que me faziam amar aquele lugar. Perante elas, porém, o que eu sentia era uma paixão veemente que mal conseguia gerir. Tinha o delírio de que naquelas coisas havia uma verdade minha e de poder explicar o que via e sentia, que me parecia em tudo contrário à frugalidade, ao ascetismo e à moderação. A fé estava ausente desse delírio. Eu não sabia nada de Deus. 

Diário, 23 de janeiro de 2011.

21 de julho de 2014

Tarde de verão amolecida pelo silêncio e pela solidão. Pegava na bicicleta e saía para onde não me deixavam ir. O carreiro das cobras ia dar à autoestrada, talvez por isso. O meu corpo não era o de uma criança nem o de uma adolescente mas as portas iam-se abrindo. Entrava no carreiro com uma certeza felina, nítida, como uma visão. A terra seca levantava pó à minha passagem e de cada lado havia campos de cultivo a perder de vista, uma casa em ruínas à direita e duas frondosas filas de árvores e arbustos selvagens. No inverno a lama era tanta que havia sítios onde não conseguia passar, obrigando a que subisse a margem e caminhasse mal equilibrada sobre os arbustos. Moldadas na terra, as marcas de pneus da passagem dos tratores continuavam visíveis ao longo do verão. Mas eu pensava que talvez ninguém me pudesse ver: levantava o queixo, estendia o pescoço, abria os ombros. Quando chegava ao fim, um mundo desprotegido, agressivo, a grande incógnita onde eu queria embarcar: para Lisboa vai-se pela esquerda.

20 de julho de 2014

Um dia vou começar uma história com esta frase: No tempo em que o papel era uma matéria preciosa...

19 de julho de 2014

Na Madragoa as pessoas são coscuvilheiras, trigueiras, falam a gritar mesmo quando estão umas ao lado das outras, há buracos na estrada e nos passeios até à Estrela, falta de contentores de lixo e muita merda de cão a contornar. Mas no verão as pessoas sentam-se em bancos à porta dos cafés a conversar, os velhos sentam-se à porta de casa ou ficam a falar à janela de um lado para o outro da rua, as raparigas novas sentam-se em degraus a olhar para os telemóveis e falam em surdina umas com as outras, levantando os olhos quando os rapazes passam à frente delas para ir buscar a bola, e há crianças a brincar na rua, muitas crianças, em ruas que ficaram enfeitadas desde o Santo António. O rio é ali em baixo, de vez em quando passa uma gaivota ou ouve-se a sirene de um barco. Gosto de os ouvir passar mas não quero ir a mais lugar nenhum.
Ontem quando me deitei estava contente por ter escrito, ainda que ciente de todas as falhas, imperfeições e de todas as coisas que publico embora precisem ainda de muito tempo de trabalho. Hoje nem sequer consigo reler o que escrevi e a par de um duplo sentimento de rejeição, tenho plena consciência que a única coisa sensata a fazer seria apagar o blogue inteiro.
Quando Lora pergunta a Annie, moribunda, o que se passa com a sua filha, esta responde-lhe Your daughter has a real problem, ao que Lora contrapõe, desmentindo, que Susie tem tudo e que Your daughter has a real problem.
O que está presente nesta frase, já no final do filme, não é só a diferença de panorama que a Imitação da Vida (1959, Douglas Sirk) implica, é também a revelação de uma hostilidade mantida para lá das aparências, de uma perante a outra, da branca perante a preta, da dona perante a escrava. Uma hostilidade
incompassível nas suas demonstrações que guarda subtilmente a sua prepotência cruel, cirurgicamente aplicada mas aplicada em permanência, até mesmo para lembrar o moribundo.
We shall overcome, dizia ele. Oh yeah.