18 de julho de 2014

As horas da minha infância foram maioritariamente preenchidas pela leitura, em casa e na biblioteca da Vila. A minha mãe mandava-nos ir brincar no parque ou na rua e eu ficava a ler atrás da porta da entrada de casa, até à hora em que a minha irmã regressava, suada e suja, e me chamava para entrarmos as duas ao mesmo tempo. Percorria as estantes da biblioteca, escolhia livros ao acaso, outros com referências ao autor, outros ainda porque me interessava saber mais sobre um determinado assunto, e por vezes lia apenas partes ou podia ficar muito tempo com apenas um livro. Muitos livros foram lidos porque apareceram no meio destas buscas de outros livros. Não sei dizer o que me atraía neles mas essa atração era inexorável. E eu cedia-lhe sempre imediatamente.
Havia contudo prateleiras na biblioteca a que não podia aceder, os livros para os adultos, a que apenas conseguia ir deitando a mão mediante uma espera: no ano que vem. Daqui a quatro anos. Mas em casa era raro ouvir dizerem-me Esse não, tão raro que só me lembro de ter acontecido uma vez. Portanto li muitos livros incompreensíveis até começar a conseguir decidir sozinha o tempo que me destinava esperar: aos quinze anos. Aos trinta anos. Muitos nunca os acabei, tantas eram as perguntas que me assolavam que deixava de ter espaço para poder ler. As enciclopédias não me fascinaram, à exceção do livro proibido, a enciclopédia da vida sexual em seis volumes, escondida na gaveta de um móvel no quarto dos meus pais, que li de uma ponta à outra às escondidas. Folheava-as sem grande atenção, lendo aqui e ali uma ou outra entrada ou observando as imagens. Já nessa altura não conseguia acreditar nelas: podem descrever-me um gato, não conhecerei o odor do seu hálito, o seu poder de amar. Dizer-me que A metafísica é o ramo da filosofia que lida com os primeiros princípios mas o que era a filosofia e o que era um princípio e o que era ser primeiro? Queria passar muito tempo com cada uma dessas coisas. Interessavam-me frases e por isso escolhi a literatura. Então o meu coração chegava a doer, eu desaparecia, sentia uma exaltação no rosto, era físico, não queria separar-me daquele objeto.
Quando os meus pais se divorciaram, o meu pai levou com ele muitos dos livros que tinha deixado à espera. A biblioteca sofreu uma inundação e fechou para obras (foi recentemente substituída por uma nova, grande, com muito mais livros, incluindo a maioria daqueles que ficaram submersos e foram restaurados, bonita, voltada para o rio e ao lado de um jardim, mas sem o silêncio que havia naquela que recordo). Foi por volta dessa altura que as coisas mudaram também para mim, comecei a escrever um diário. Não sei exatamente como aconteceu, mais tarde deixei de gostar de ir a bibliotecas. Suspeito que porque me é difícil suportar a atividade e o ruído dos outros leitores, mas sobretudo porque deixei de ter tempo para me perder nelas, tal como acontecia na infância. Tenho nojo de não poder reproduzir esse sentimento de exclusividade, da exclusividade dada a um certo isolamento, e vou renunciando a uma experiência diferente. (Creio que talvez esteja à espera do momento certo). Sei agora, passados todos estes anos, que gosto muito mais de escrever do que de ler. À medida que percebia isso e ia deixando de me ocupar tanto com a leitura, fiz escolhas de vida apenas para que mais tarde pudesse escrever sobre elas e nisso cheguei a apostar a minha vida. Tudo o que faço, vejo, oiço, não faço e não vejo e não oiço se destina à escrita. Os livros sucedem-se, uns com maior outros com menor velocidade, quase sempre vários ao mesmo tempo, embora na realidade só consiga dedicar a minha atenção a um por noite ou por vários dias seguidos. No entanto, quando penso nesses livros que estou a ler, é em escrever que penso. Escrever sobre aquilo. Não esquecer aquilo para mais tarde escrever sobre isso. Aquilo lembra-me aquilo, quero escrever sobre isso. Os modos: isto está em mim. Mas como? Custa-me acrescentar aquele que é o mais terrível de todos os pensamentos: nunca conseguirei dizer aquilo que quero dizer como quero dizer. E a coisa mais bela de todas: aquilo, pode ser uma palavra.
Sinto o tempo fugir. O que me interessa não é a publicação de um livro mas ser o livro, apenas o livro, o tempo do livro, o tempo da escrita e vivo para me aproximar disso. Nenhum outro amor me teve. É possível que seja sempre assim.

17 de julho de 2014

S. fala às amigas do seu primeiro amor, mantendo em segredo o seu teor involuntário. Procurando exercitar a expressão verosímil e conveniente das suas emoções, sentiu-se à época como um passageiro num comboio que vê desfilar para lá da janela a paisagem inacessível. Disto lembra-se. Do rosto dele, cujo olhar intenso descreve várias vezes com pormenor às amigas, já não. Quando acaba o relato sente-se subitamente esgotada, concentra-se na cor do chá que tem à sua frente na mesa até deixar de ver a chávena. Na verdade, detesta o campo, o rumor constante das árvores e o silêncio universal da noite. Em que lugar o sangue pode ser sangue? Repugna-a a existência de qualquer outro tipo de fidelidade, como a repugna a intenção de ter filhos. A hortelã cresceu no canteiro em dois dias mais do que no ano inteiro dentro do vaso e, porém débil, o seu perfume começou finalmente a aperceber-se à passagem pelo quintal quando se entra em casa. Hoje de manhã havia minúsculos botões ainda fechados, possivelmente nos próximos dias haverá mais. Talvez as raízes se espalhem por todo o quintal e invadam os outros canteiros. E por baixo da casa também, onde S. fará ninho com os ratos, invisível e muda. F. chamou-a esta manhã à saída, disse-lhe qualquer coisa que não entendeu e que não pediu para repetir, pois nem involuntariamente poderia responder ao seu sorriso.

16 de julho de 2014

Ter envelhecido precocemente não me trouxe mágoa senão por não poder surpreender-me com a mudança. Toda a tristeza ou alegria que viriam associadas a ela ocorreram num momento isolado, transformador, ao qual seria inútil regressar. Assim, quando passados muitos anos, ao subir as escadas da casa azul da minha avó vi apenas casas da varanda inundada de sol, e que a amendoeira tinha desaparecido, e que uma das metades da própria varanda tinha uma divisória de alumínio branco, percebi apenas que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria.

15 de julho de 2014

escrever sobre a memória . sobre como não é o esquecimento que nos devora mas sim o modo como vemos o mundo . o modo como vemos o mundo tem a configuração do nosso esquecimento . aquilo que lembramos é essa configuração . a memória é a forma da perceção de nós próprios por nós próprios no mundo . o esquecimento não existe . aquilo que lembramos é a mera subtração daquilo que não queremos lembrar do mundo . tudo é lembrança . percebo sempre isto quando faço exercícios de memória.
Se é para morrer mais vale viver.
Mesmo sem talento, mesmo que ninguém leia, mesmo que ninguém perceba, mesmo que nunca consiga, mesmo que nunca encontre.

11 de julho de 2014

Cortam árvores neste país como quem muda de cuecas. No meu bairro desapareceu mais uma, do pátio do Palácio do Machadinho, onde funciona o departamento cultural da câmara municipal de Lisboa. Era a última da rua do Quelhas no sentido de quem desce, não sei que árvore era, era uma daquelas que têm por vezes o tronco e os ramos cinzentos, era muito alta, ficava no meio de um pátio atualmente usado para estacionar carros. No dia anterior ao corte vi bloquearem os lugares de estacionamento da rua do Quelhas, suspeitei, fui perguntar. O segurança revelou o motivo, seria no dia seguinte às 8:00, a árvore ameaçava cair, já não se encontrava ninguém com quem pudesse falar sobre a responsabilidade disso. Hoje ergui os olhos para a ver, mergulhada nos meus pensamentos já não me lembrava disto, e vi o tronco cortado.
Nos passos que me restaram até casa percebi que o corte destas árvores, sem tumulto, sem que rios de dinheiro sejam gastos a salvá-las, sem comoção, é a medida da minha posição política no mundo.

10 de julho de 2014

(...).
Tento escrever sobre coisas muito elementares, que são talvez as mais complexas da vida. Quero perceber como é que essa complexidade se diz.
(...).
Tinha terminado um livro e queria começar qualquer coisa. Estava à espera. Passaram duas semanas, três e não acontecia nada. Então sentei-me numa sala de uma casa que tinha arrendado por ali e disse: «ok, aqui estou eu sem nada para fazer. É melhor ir à procura.» Escrevi umas 12 páginas sem saber o que estava a escrever. Queria apenas dar alguma utilidade ao meu tempo. Escrevi mais umas quantas e então o outro livro de que eu estava à espera chegou. Nessa altura pus aquilo de lado e não lhe voltei a pegar seriamente senão 20 anos depois. Parar e repegar é normal. Escrevi outros livros, fiz a minha vida. Eu estava à espera mas não estava inanimado.
(...).
[normal] É uma palavra que as personagens usam para tentar exercitar o domínio que têm sobre as suas vidas. Elas estão a viver um processo de saída dessa normalidade e a criar um vocabulário para isso. E dizem: «Eu estou bem, não sou assim tão diferente, não tenho de ser alvo de ajuda, e se tenho, bom... então talvez possa perder a minha vida. Ou talvez ainda tenha de arranjar uma vida para mim.» É quando se está desta forma tão emocionalmente isolado que nos afastamos do amor e da atenção das pessoas. Muito desse sentimento ou dessa sensação tem a ver com a palavra que escolhemos para nos descrevermos a nós mesmos.
(...).
As pessoas acham que passaram para lá da normalidade quando atingem os limites da imaginação. Muitas vezes chega-se a esse limite por coisas tão simples ou complexas como estar-se apaixonado ou doente ou numa situação moralmente constrangedora. Situações de vida em que a lucidez esteja em causa. Dostoievski escrevia sobre pessoas moralmente doentes. Há muitos livros sobre isso e sobre o modo como as pessoas sentem que têm domínio sobre essa normalidade. O curioso é que por vezes só se consegue sentir esse domínio quando se convoca a imaginação. As histórias tornam-se úteis para os leitores quando eles sentem que os livros e as personagens falam do mesmo que eles. Quando os limites da ficção os atingem como os seus próprios limites possíveis.
(...).
Sim. Talvez seja [o lado útil da literatura]. Não no sentido de resolver um problema. Útil no sentido em que se entra num livro como num território estranho e isso nos coloca num certo distanciamento em relação a algo que se vai revelando como nosso. E é esse distanciamento que permite um melhor entendimento do que somos.
(...).
Quando descrevo uma planície ou uma paisagem de montanhas é muito mais um exercício verbal do que de descrição. É escolher as palavras. Se eu quiser mudo a cor do céu.

Entrevista a Richard Ford, Público, 18.04.2014
Passeio no jardim ao final da tarde com um sentimento de enorme tranquilidade. Sentada no quiosque a ler, desinquieta-me a vontade de escrever e logo me levanto para correr para casa. Apesar da pressa, quando começo a andar fico presa num passo lento e arrastado, que de tão lento me aflige. Estarei doente? Será cansaço? Poderá este cansaço ser normal? Estarei a envelhecer assim tão vertiginosamente? Tenho dores no corpo, talvez alguma doença esteja a anunciar-se. Já começou a chegar o outono?
Em vez de a contrariar, enquanto espreito a incógnita, decido colocar ainda mais lentidão nos meus passos, e reparo que aquele caminhar me conforta. Percebo, não sem algum tumulto, que aquele é um passo muito próprio, um tempo muito próprio: o meu próprio. Continuarei assim até ter descido a ladeira e chegado a casa. Passeio no jardim ao final da tarde, estou dentro da sombra das copas das árvores sobrepostas umas às outras, dentro dos seus profundos matizes de verde, de sombra e das cores das flores que mal acabaram de nascer já começaram a cair, das folhas largas que me lembram como sou pequena. Ao passar pelo portão algo se torna claro.

9 de julho de 2014

Sobrevivi ao asco do tempo que parou e não me acho digna de estar aqui, como se tivesse sido o desaparecimento dos cadáveres a tornar o ar impuro e não a presença.