17 de outubro de 2013

O dia em que cheguei a Lisboa também era branco. Era um fim de tarde de Novembro e eu não sabia onde estava. Desfiz a mala a correr e saí pela primeira vez, ansiosa e anestesiada. Queria ir até ao cruzamento com mais trânsito e ficar aí para ver como o dia mudava até ser noite, como eram as pessoas, saber se me perdia. Quando tinha feito cinco metros de rua dei de caras com o deus grego que eu observava ao longe na praia da Nazaré todos os verões.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Começava a tremer e de início tinha de ficar muito quieta. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o, pois o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direcção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Eu fiquei sempre na mesma posição e ao que me lembro com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei directamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.

13 de outubro de 2013

Barcos às dezenas no rio, pescadores, bicicletas, cães, carros, camiões, motas, aviões, comboios, gaivotas, música no café, filmes, conversas. Distraio-me com surpresa do livro por um som longínquo, de todos o mais comum: o restolhar cristalino de um monte de folhas secas que atribuo rapidamente ao vento e que algumas horas mais tarde descubro ser o esconderijo de uma lagartixa. Aconteceu apenas uma vez.

10 de outubro de 2013

Em 1998 fui para Paris onde vivi o que restava desse ano e os 3 anos seguintes. Casei com um judeu filho de pai córsego e mãe nascida em Marrocos, cuja avó, viúva de um prospector, vivia no 16ème e cuja tia tinha desistido do seu laboratório premiado de astrofísica para criar cabras e fazer queijo numa quinta no sul. Trabalhei e estudei em Paris e tive a sorte descomunal de viajar. Conheci França de uma ponta a outra à custa de muito enjoo no carro. Foi lá que vi uma montanha pela primeira vez. Foi lá que vi um transexual pela primeira vez. O francês tornou-se a minha segunda língua para descobrir que todos os sonhos em francês são pesadelos. Quando chegou a altura de decidir levei seis meses para ter a certeza de que queria regressar a Portugal.
De tudo o que vivi, de todos os rostos que conheci, todos os livros que trouxe, todas as histórias (e intensas que foram) que se acumularam, aquilo que recordo com mais vivacidade, e também com mais emoção, são os meus passeios solitários de dias inteiros pela cidade.

8 de outubro de 2013

Nenhum ser é possível onde a palavra falha.

Stefan George
Começo a ler Walter Benjamin. Esperei o tempo possível porque gosto de ler em silêncio. É difícil descrever o que se encontra quando há encontro. Estou ainda no início, talvez as palavras surjam entretanto, porque quero dizer: a descrição é a resposta que me resta a um amor que está apenas a nascer. Hoje, enquanto lia, ri. Um riso cristalino, profundo, comovido. O riso mais raro que quase, quase, quase ninguém consegue ouvir. 
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que uma pessoa o ouviu. Foi numa aula de filosofia no 12º ano, a primeira em que falávamos de Kant e lemos um parágrafo da Crítica da Razão Pura, não me lembro qual. O professor lia, os alunos estavam debruçados sobre os livros a acompanhar a leitura. Depois do ponto final, dei uma grande gargalhada. Uma gargalhada generosa, sem tirar os olhos do texto de que já procurava o início para reler. Como não se tratava de uma anedota, os meus colegas riram também e disseram que eu era mesmo tonta. Já o professor, ficou muito surpreendido. Olhou para mim com olhos de quem também queria poder rir assim e disse: «Se ris é porque percebeste» e continuou a dar a aula. Foi quando também percebi, ou quando pensei a primeira vez, naquele, meu próprio, riso.


*Léo Férré, On est pas sérieux quand on a dix-sept ans.

6 de outubro de 2013

0. Um dia uma parte do corpo começa a doer ao levantar, a frase no livro que gostámos tanto de ler enterrou-se não se sabe onde, pensamos que temos de correr para apanhar aquele autocarro e abrandamos o passo. Enquanto esses eventos não se destacam ainda dos outros, até quando intocados, descobrimos através deles que começámos a envelhecer.



1. Em menos de 24h dois acontecimentos levam-me à amarga constatação que nunca vi um grão de trigo. Eu que quero ver todas as montanhas do mundo, que gostava de ver um deserto de gelo e um de fogo, que quero ler quanto conseguir, que quero aprender outra língua e a tocar um instrumento antes de morrer e que aprendi a nadar no ano passado só para saber o que era isso, nunca vi um grão de trigo. Quase me envergonho. Não passo do quase porque de facto ainda não morri e sei onde há campos de trigo.



2. Sei que um dia destes vou fazer alguém passar vergonha no cinema. É a segunda vez que me acontece. Estou a ver os pescadores e a pesca no écrã, cânticos, força, água, sangue, peles queimadas. No regresso da faina, um grupo em pé em cima de um dos barcos acena à câmara. Suprimo a tempo o meu acenar de resposta.



3. Num dos barcos os sons raptam-me. Gaivotas, cordas a passar por metal, metal a girar sobre metal, metal a chocalhar, um motor. Sou chamada e não sei onde estou. 



4. Os pastores fazem queijo de cabra. Sinto um nó atar-se na alma e renego todos os supermercados onde tenho posto os pés. Prometo a mim mesma que farei uma refeição de queijo de cabra, pão caseiro, uvas brancas, nozes e vinho. 



5. Num dos filmes vejo uma figueira só com folhas novas. Pergunto-me se isso ainda existe.



6. É uma festa para comemorar o início da Primavera, cortam uma árvore e tiram-lhe a casca no cimo de um monte para a trazer para baixo para a aldeia e voltar a erguê-la. As mulheres esperam os homens no vale com um piquenique. Entre as crianças há uma que não se distrai com a câmara, olha para dentro a comer um naco de pão. Está a pensar e eu penso que talvez ela pense em cinema.



7. No fim da festa nenhum som. Esse som que tantas insónias me trouxe.



O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (Curtas-metragens de Vittorio De Seta 1954-1959), hoje na Cinemateca Portuguesa.

29 de setembro de 2013

O que me interessa na linguagem - qualquer forma de linguagem - é a sua relação com o silêncio. O que me interessa no silêncio é a ausência de relação que o caracteriza e que dá forma em nós ao desejo de dizer. Talvez não haja música sem ouvinte. Mas o que há de mais profundo é silêncio, que não procede nem prossegue, não existe nem é nada porquanto o que é não tem relação com o tempo. E no entanto, não sei como nem onde, está em mim.

17 de setembro de 2013

O meu primeiro beijo foi roubado. Ele chamava-se Ivo. Era um rapaz de aparência rude, pequeno, com orelhas grandes e cheio de sardas. Achava-o muito bruto e como ele deitava perdigotos nunca brincava com ele, aliás, evitava estar perto dele. Mas como as crianças e os pássaros andam sempre em bando, fui como toda a gente à festa de aniversário dele. Levava o meu vestido de fazenda cor-de-rosa, a estrear, que eu tinha ajudado a desenhar, e um laço no cabelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
A nenhuma arte pode ser dada primazia sobre outra. Apenas se privilegia por meio da maior ou menor mestria que temos de uma determinada arte. O sentido da experiência é ontológico.

16 de setembro de 2013

Há dois tipos de crise: aquela que procede da angústia e é uma explosão de revolta pela constatação de que as coisas são irrevogavelmente distantes da sua origem e aquela que é trazida pela luz, a claridade ou a dolorosa ausência de sombras das imagens que concede acesso ao horror. Nenhuma crise é mais terrível do que o amor puro.