11 de outubro de 2018

A meditar, justificava o seu desejo de solidão
a solidão não é mais do que a salvaguarda da escrita quando o desejo se apresenta.
A solidão é a defesa do texto.

Maria Gabriela Llansol, O livro das comunidades.

6 de outubro de 2018

podia-se pensar que a minha mãe teria escrito poesia apenas antes de casar, vir para Portugal e ter duas filhas, mas isso não é verdade. de facto, a minha mãe escreveu durante toda a vida: em pequenos cadernos e blocos de notas anotava memórias do seu dia, frases que tinha lido ou ouvido, sítios que queria visitar e até mesmo piadas. alguns dos textos mais tocantes são sobre os netos, a sua principal fonte de alegria, mas sempre me comoveu a maneira como procurou descobrir formas de encarar a vida mais positivas, mais otimistas, o que a fez anotar também preceitos de sabedorias milenares ou populares. valores como a tolerância, a generosidade, a paciência, o humor, a brincadeira, todos eles raros, eram seu apanágio. tenho o privilégio de ter lido alguns dos poemas que escreveu em adolescente, ainda em Angola. são sobre a descoberta do amor, sobre como ela mergulhou no amor: absolutamente.

In memoriam 8 de setembro de 2018.
numa cidade operária oblíqua sobre a colina, desenrolam-se vários acontecimentos interrompidos e contaminados por objetos falsos. o ambiente é insolitamente animado: miúdos e graúdos discutem febrilmente, o sol penetra nas coisas, todas as manobras são ao mesmo tempo ingénuas e sonoras, como se sonhadas. lívido, quase abjeto, o cintilar da luz mistura-se com a emanação profana de Alexandre no horizonte. o seu riso manhoso e os seus cabelos louros, os seus gestos, as suas palavras, o seu ir e vir, são insustentavelmente modernos. calculando a ânsia pura e os desafios do pudor, cada um dos habitantes da cidade é íntimo com ele, ou seja, é observado, e, sem se conterem, deixam transbordar os seus dilemas. o vazio é assim preenchido e não há nisso nada de especial.

28 de setembro de 2018

"Eu, Antonin Artaud, só quero escrever quando já não tiver mais nada para pensar. — Como alguém que comesse o ventre, os ventos do seu ventre por dentro."

Antonin Artaud, in Eu, Antonin Artaud.

24 de setembro de 2018

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
- Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
- As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
- Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama

20 de agosto de 2018

inocente, começava sempre por espantar-se e, depois, dizia impaciente: «Já sabia». naquele tempo, o sol tinha começado a descer e, pouco a pouco, ía deixando de iluminar o interior do jardim. mas não era ainda tempo de juntar as folhas caídas, lavrar e humedecer a terra, cortar os cepos e proteger os arbustos. não era ainda tempo de espantar-se nem com a leveza nem com a densidade. os olhos, sombrios, entravam a todo o instante em repouso e por dentro deles havia nomes que podiam ser vistos, mas não ditos. a tristeza estava acordada e viva, como um ramo pousado sobre os livros sobre a mesa, mas tudo era agora benevolente como um dia de espiga e podia ser cantado noite fora sem que a criança acordasse. quando ele viu nascer essa manhã de estrelas, percebeu que a esperança era infinita como um ovo acabado de rachar: admirável vida que começa. 

14 de agosto de 2018

Dizer com claridade o que existe em segredo.

Cecília Meireles

12 de agosto de 2018

não há verão em que as estações de televisão não filmem o presidente da república e o primeiro ministro quer na praia, quer a trabalhar em alguma representação do Estado. não se lhes pode chamar notícias, tem razão o leitor em advertir-me, mas enquanto não houver estes dois importantes momentos televisivos, o coração dos portugueses não descansa, pois, a quem é que isto fica entregue se vão todos de férias? claro, também têm direito, como os outros, e vão para onde com as granas deles? ah, bem entendido, para Portugal, como os outros, assim é que é. às vezes pergunto-me se é o país, se são as televisões que, orquestrando tudo sozinhas nos seus quartéis, cumprem a mesma grelha anual elaborada há 30 ou 40 anos. mas não pode ser, pois não? o Marcelo tem de ir a Monchique espalhar beijos e abraços e o Costa tem de fazer um mise-en-scène no seu escritório da Assembleia da República. está tudo sob controlo e podemos dormir descansados.

29 de julho de 2018

os traumas da minha infância e da minha adolescência continuam a perseguir-me. continuo a sonhar com eles, a agir com a sua lembrança como pano de fundo e a escrever sobre eles. dito isto, sou péssima na ficção que não parte da realidade e exímia em ficcionar o que aconteceu, pois o que aconteceu trabalha ainda em mim. muito do que aconteceu, contudo, ou expõe terceiros ou arrisca mostrar-me como vítima. é aí que entra a ficção, limando as pontas entre os acontecimentos e diluindo, através de uma meticulosa descrição, os seus equívocos. não é fácil transpor essas barreiras e em Nanette, Hannah Gadsby fá-lo de forma eminente. para isso, no entanto, o espetáculo desconstrói e subverte tudo aquilo que pensamos sobre o modo como o humor funciona e rompe com a indefinição deixada pela injustiça inconfessada. aquilo que Gadsby faz de mais radical em Nanette é simples: deixa de ter graça. mesmo as suas piadas estão misturadas com algo de sombrio e cáustico. depois, a certo ponto, explica que quer deixar de fazer comédia (recentemente afirmou que vai continuar) porque toda a sua carreira se baseou na auto-depreciação. "Do you understand what self-deprecation means when it comes from someone who already exists in the margins?", diz. "It’s not humility. It’s humiliation. I put myself down in order to speak, in order to seek permission to speak, and I simply will not do that anymore." Gadsby analisa como a sociedade a ensinou a odiar-se a ela própria, uma mulher lésbica alvo de inúmeras piadas que nasceu num sítio onde, até 1997, a homossexualidade era crime. "I understand the world I live in and my place in it. And I don't have one.", colmata. expressando a sua ira, na segunda parte do espetáculo a comediante assume os danos que lhe foram causados e demonstra o quanto ainda a afetam. mas também assume a sua força. o riso, afirma, "is not our medicine. Stories hold our cure."