17 de maio de 2018

abandono a perfeição num misto de medo e de furor e rapidamente deixo de ter muros à volta. uma promíscua simplicidade envolve-me na habitação do mundo. entro nela sem repulsa e sem recusas, como se entra no deserto. não preciso de uma imagem para o meu próprio nome, sou um impasse sem revelações. onde antes a alegria entrava desmedidamente existe hoje uma melancolia espontânea, um dom lascivo, delirante, silencioso. sei de segredos irredutíveis, alguns insignificantes, outros origem de importantes mutações, com geografias, riscos, analogias — não fosse eu igualmente um princípio. tenho as portas e as janelas abertas, o meu gato olha para o reflexo da água no teto. enquanto me recordo do dia, concebo um mundo sem estirpes, entre o inesperado rigor de uma ampla partitura e uma imaginação profunda. tudo o que nele se manifesta é movimento e som, tem o inquietante sabor de uma potência íntima. é improvável que a possa compreender, mas não desejo interrupções.

7 de maio de 2018

Se alguém me apedreja, eu irrito‑me. E temos até a responsabilidade do nosso mau carácter; se eu ficasse impassível, alguém perdia a fé. Não sei quem, mas isso tem muita importância.

Agustina Bessa-Luís

5 de maio de 2018

um céu azul que desafia a coerência liberta-me de mil intentos e vejo-me lançada na grande planície do desejo. aqui tudo se oferece, mas nada se recebe. ao crepúsculo, a monstruosa — ainda que porventura sagrada — nostalgia da duração, abre um espaço crescente no corpo. a ela respondo com voracidade e deito por terra as perguntas que impõem limites: sou senão uma afirmação pungente, um vértice, uma graça irreconciliada feita para tocar e ser tocada.

3 de maio de 2018

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar

Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar

Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar

Filipe Catto, Faz Parar.

22 de abril de 2018

no meu livro de horas #2

no meu livro de horas está inscrita a claridade da alvorada e tudo aquilo que em mim, de tão sombrio, se manifesta indizível. quando está aberto, nenhuma presença perturba a minha atenção, nem mesmo a da criança que não me chegou a visitar. no momento em que nada respira e onde apenas a luz se move, escrevo nele. o encontro com a gratuitidade do tempo é feroz, a mãe solar envolve-me. pensando que estão sozinhos, os animais olham-me nos olhos antes de desaparecer novamente, livres e selvagens. estou aqui, estou viva. e os outros? têm um papel difícil, sempre catastrófico: o de fugir à banalidade e ao espetáculo. como um silêncio que nos é oferecido em resposta à agitação do mundo, caminhamos lado a lado com a alegria inesperada do encontro. mergulhamos num espaço voluptuoso onde a espera e o vazio repousam sem regras e sem violência. somos viajantes da montanha, temos um tesouro entre as mãos. a nossa récita inscreve-se no branco da página, inefável e segura.

8 de abril de 2018

o balneário

entrei para imediatamente me deparar com a nudez das poucas mulheres que o ocupavam, ou seja, com o extraordinário. descalças com uma toalha à volta do torso ou do pescoço, dirigem-se para a zona dos duches ou regressam ao seu cacifo para se voltarem a vestir. há uma que fala ao telefone: sentada nos bancos, indiferente ao que se passa à sua volta, olha para o chão e abre e fecha uma das pernas. é muito alta e quase não tem pelos, o cabelo comprido tapa-lhe o rosto. a sua lassidão é de tal forma atraente, que fico a pensar que também devia tirar os meus pelos. também devia ser magra, alta e estar sentada como numa pintura, com as costas ligeiramente curvadas e a cabeça a pender sobre o peito. enquanto me dispo, volto a pensar nas minhas cicatrizes. há muitos anos que não estava tão consciente delas, mas agora sei novamente que é para lá que vão olhar. uma mulher negra abre um cacifo ao meu lado. tem o peito pequeno e o rabo grande, umas cuecas de tigresa com renda cor de rosa que também invejo. porque não uso coisas assim? embora gostasse de me passear entre elas como num jardim, a observar os seus corpos nus, começo-me a despir. peça a peça revela-se a minha própria nudez imperfeita — como será a minha nudez? a instrutora passa sorridente com uma toalha em torno do corpo e outra enrolada à cabeça. pergunta-me se estou a gostar e eu respondo sinceramente que sim, apesar de me lembrar que quase desmaiei na primeira aula. ao mesmo tempo, reparo mais uma vez nos seus braços bem torneados cheios de sardas e tenho curiosidade pelas formas do seu corpo. devia ser possível admirar cada corpo muito tempo, atentar aos detalhes, poder perguntar porque tens essa cicatriz. depois de vestir o equipamento, fico sem saber onde guardar a chave do cacifo e uma mulher ao meu lado ensina-me a prendê-la aos atacadores da sapatilha. rimo-nos da minha inexperiência. saio o mais lentamente possível do meu lugar para ver quem ocupa os cacifos que estão mais longe. há quem ponha creme no corpo, quem seque o cabelo, quem se maquilhe. para pouca surpresa minha, os olhares evitam-se: a maioria destas mulheres despe-se com timidez na presença das outras. ainda assim, contrariando tudo o que publicamente se defende sobre a privacidade, este lugar onde a singularidade de um corpo trespassa a apatia, existe.

3 de abril de 2018

A sociedade onde os produtores se matam a trabalhar, e se limitam a contemplar o resultado disso, dá-lhes agora francamente a ver, e a respirar, o resultado geral do trabalho alienado como resultado de morte.

Guy Debord, O Planeta Doente.

28 de março de 2018

as traseiras de minha casa tiveram durante anos um cenário de ruína, a de uma casa tão antiga que a pequena retrete ainda era no exterior. há cerca de dois anos, contudo, a casa sofreu obras de reabilitação consideráveis e transformou-se numa casa moderna com três pisos, um pátio, um anexo e uma larga varanda. não achei muita piada. ter vizinhos com um quarto exatamente à altura da minha casa, significava perder a minha tão protegida privacidade, significava ter a vista sobre o rio corrompida, ouvir vozes, música e ruídos humanos de toda a espécie, ser enfim forçada à convivência, ainda que a mínima de um simples cumprimento, num espaço que destinei à solidão. foi por isso que, quando hoje subitamente cheguei à janela das traseiras, a noite já caída, e vi as luzes da casa nova acesas e as portadas abertas, fiz uma descoberta. com efeito, com o tempo os vizinhos ganharam confiança e foram deixando de se preocupar em fechar as janelas. dentro desta casa, através da minha janela indiscreta, um mundo abriu-se. hoje havia uma festa. enquanto todos conversavam e bebiam lá em baixo na varanda e na sala, dentro do quarto, no piso de cima, uma paisagem secreta, ao mesmo tempo grotesca e bela, se desvelava.

14 de março de 2018

Pergunto-me simplesmente, então, o que é feito da arte do salto, aquele que é preciso realizar quando nos arriscamos, quando resistimos à repetição ou nos colocamos em perigo para transformar um estado da matéria ou um estado do mundo.

Marie-José Mondzain, in Sideração.

20 de fevereiro de 2018

com a chegada desta Primavera precoce, tenho subitamente a sensação — que me devora — de ser jovem e de tudo se mostrar afável à minha passagem. contudo, à promessa de um novo início oponho uma madura desconfiança e entrego-me ao que faço. penso nos meus amigos. daqui a pouco desapareceremos um a um sem deixar rasto e ainda assim, basta para isso um pouco de saúde, hoje é a esperança que nos invade. tem um duplo deleite ser-se jovem quando se começa a envelhecer. como num romance em fogo lento, a vida tem uma excessiva, imponderável evidência.

2 de fevereiro de 2018

ela conseguia descascar uma clementina sem sujar as mãos, lavar os dentes sem deixar escorrer a pasta, nunca tomava decisões durante o período do síndrome pré-menstrual, vestisse o que vestisse, incluíndo as peças mais simples, engelhadas e largas, parecia sempre elegante e delicada. se me vestisse assim, como já havia tentado, parecia um mendigo ou uma puta e a minha organização era aleatória. era alta, tinha o nariz fino, os cabelos louros compridos e os lábios grossos cor de rosa, eu tinha começado a envelhecer. os meus cabelos, encaracolados e crespos, ficaram todos brancos e lisos, umas olheiras começavam a escavar-se, pequenos pelos apareciam em zonas inesperadas do corpo, a pele perdeu brilho e ganhei peso. curiosamente, foi nessa altura que comecei a pensar menos no tempo. ficou como que suspenso, atravessado pelo corredor da morte, um espaço vazio imprudentemente atravessado pelo sonho de alguém. a biologia escapava ao precário conceito de duração e instalava-se num tempo cíclico e no entanto contínuo, aparentemente sem fim. a vida, expectante e singular, tinha agora um valor imediato, vibrante e autónomo, mas nem por isso menos interior e completamente oposto à rapidez e à superficialidade: a falta de tempo era epidérmica e deixou de ser possível usar exemplos do passado para falar do futuro. submersa pela entropia da mentalidade obcecada em não esquecer nada para não ser surpreendida, a minha perceção da beleza não era uma alternativa a nada, mas parecia ser a única resposta para tudo. entre mim e esta bela mulher que não sujava as mãos, instalava-se uma despretensiosa vontade de, com alguma ingenuidade, redesignar uma exuberância que questionava a expressão do poder.

26 de janeiro de 2018

a primeira coisa é o sono
o sonhador aproxima-se dele
como se presidisse ao seu destino
e, fiel, apressa-se a entrar
naquele que é sempre demasiado escasso
até regressar ao princípio.

todas as noites
a terra tensa e húmida
dá um sinal maciço
ao diabo que diz a verdade
e é na voragem de ternura dessa palavra
que tudo se extingue sem razão.

25 de janeiro de 2018

ainda não decidi se uma por semana se uma por mês, mas sei que tem princípio, meio e fim. como diz o Charles Dickens, "uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir."

subscrição aqui: https://tinyletter.com/fogoslocais

FLOR AZUL, de Raul Domingues

21 de janeiro de 2018

Quando se escreve sem pensar revelar um segredo, ou seja, com sinceridade, verifica-se que se revela um segredo que não se sabia ter.

Pier Paolo Pasolini

19 de janeiro de 2018