25 de outubro de 2017

parece que sou daquelas pessoas que escreve menos, ou nada, quando lê mais, o que não me agrada porque estraga qualquer rotina possível que a escrita pudesse adquirir. desde que me lembro que procuro adquirir essa rotina. nas alturas em que consigo escrevo todos os dias, no blogue, no diário, num papel qualquer, as ideias sucedem-se intensamente, como uma loucura de que não pudesse dar conta, uma obsessão que, por sinal, é o que de mais próximo conheço da felicidade, ainda que em certos casos seja difícil lidar quer com os temas sobre os quais quero escrever, quer comigo própria, que tantas vezes tenho de domesticar para poder dar lugar à escrita. é espantoso que ainda não tenha desistido e aceitado que sou avessa a uma rotina de trabalho. assim, as manhãs são a minha altura preferida para escrever, embora nunca tenham funcionado para mais nada: no trabalho ou com as pessoas, sou perfeitamente incapaz de funcionar de manhã. tudo se passa como se a escrita tivesse de acontecer fora da lógica do mundo, fora inclusive de qualquer lógica que pretendesse impor-lhe. não é um trabalho, não é uma rotina, mas também não é prazerosa nem automática. está à beira de qualquer coisa, na margem de qualquer coisa, na orla de uma vida para a qual nasço todos os dias e não vivo.

20 de outubro de 2017

uma colega de trabalho ofereceu-me um objeto para fazer xixi de pé. agradeci com algum entusiasmo pois foi uma generosa delicadeza oferecer-me algo, mas sem vontade. não tenho a menor pretensão de fazer xixi de pé nem percebo porque alguma mulher há-de querer fazê-lo. é nestes momentos que me sinto muito pouco feminista, mais próxima das mulheres do campo, perto de onde nasci, para a maioria das quais, pelo menos, a ideia soaria igualmente estapafúrdia. realmente bonita achei uma escultura que vi à beira rio num jardim em Berlim que, opondo-se aos bebés que fazem xixi em todas as fontes, era uma mulher que urinava de cócoras, olhando para o meio das pernas para orientar o fluxo.

17 de outubro de 2017

— No fim de contas o que são as pessoas honestas? São uma consequência, então adeus minha consequência, mulher linda do paraíso.

FRANCISCA, Manoel de Oliveira (1981).

11 de outubro de 2017

«O que é, o que foi, o que será»: porque é que isto não se pode dizer do dia de hoje como, a seu tempo, se dizia de Deus?

Peter Handke, Ensaio sobre o dia conseguido.

8 de outubro de 2017

Quanto mais reparo o que tenho em comum com todos, menos solidário me sinto com quem quer que seja.

Peter Handke, A Hora da Sensação Verdadeira.
tal como a beleza, o silêncio é abundância.

5 de outubro de 2017

rostos com um bronzeado a sumir-se, expressões marcadas — ameaçadoras, entediadas, festivas —, vozes sem nexo, vozes cujo nexo se precipita na rede lá em baixo, em plena escuridão, mas como se no mergulho vissem um campo de margaridas ao sol, uma audição voraz, também ela a sumir-se, jovens ansiosos por se porem ao lado dos poderosos, risos remotos, estranhos, uma pequena vontade que se ignora, uma massa popular que revela vigor, pureza e rudez ao mesmo tempo. no facebook há pessoas que refletem sobre a sua ligação a empresas, denunciando o seu mau funcionamento ou exaltando as suas vantagens de uma forma que roça perigosamente a intimidade. durante a campanha eleitoral são várias as exaltações. descobri um indivíduo que acabava sempre assim as suas frases nos comentários, "CDU a Força Necessária", como um carimbo, mesmo que antes tivesse falado de batatas. «as melhores batatas para assar são as pequenas. CDU a Força Necessária». é disto que a vida se faz. disseram-me «és linda, nunca mudes» e achei tão feio dizerem-me aquilo, porque se está sempre a mudar e o que é lindo numa pessoa não se pode reduzir a uma frase daquelas, extensiva e en passant, é um silêncio que choca contra nós, em bruto, como uma derrocada, na maioria das vezes a partir de um detalhe insignificante, como tropeçar nos próprios pés ou dizer mal daquilo de que toda a gente diz bem. enfim, quando não estou apaixonada pergunto-me como conseguem as pessoas apaixonar-se com tantas idiossincrasias que reunimos, essas coisas chatas que exigem uma enorme capacidade de adaptação, cedências, altruísmo, coragem. mas eu vivo debaixo de uma loucura que não me permite observar a vastidão do tempo e do espaço, que é feita de familiaridades e ingenuidade. só vejo vestígios, eles próprios interrompidos, aos quais sou comovedoramente fiel.
não é possível escrever sobre tudo o que se pensa porque nunca tudo está disponível ao pensamento. é apenas possível criar, com muito talento, pequenas ilusões, imagens contundentes e suficientemente obscuras sobre aquilo que nos passa pela cabeça.

4 de outubro de 2017

Debaixo de um céu estrangeiro
sombras rosas
sombras
sobre terra estrangeira
entre rosas e sombras
dentro de uma água estrangeira
minha sombra

Ingeborg Bachmann

3 de outubro de 2017

sê silencioso na minha companhia
como o são os gatos.
onde o teu pavor nasce,
a mediocridade encontra pasto.
sem solidez nem duração
as objeções do teu olhar
tecem fantasias
para que não te abandones.
abstém-te, cessa, para,
obedece à vereda pura.

2 de outubro de 2017

Rafael abre a porta para a rua e um raio de sol ofusca-lhe os olhos. Do outro lado da estrada, o vento sopra em direção a ele, ou pelo menos assim lhe parece. Um carro preto passa em grande velocidade. É manhã muito cedo. Não sei para onde vai Rafael. Está a sair de casa, tira os óculos, esfrega os olhos doridos pela luz, volta a colocar os óculos e desce o primeiro degrau. Há sete degraus para a rua. Ao sétimo degrau, Rafael olha para trás, para a porta de casa. Tem a sensação de se ter esquecido de alguma coisa mas não consegue lembrar-se de nada. Fica um momento parado no passeio, voltado para a porta de casa, coça a testa e ajeita os óculos ao nariz. Não se lembra. Depois avança para o lado esquerdo e sente frio. No entanto, é verão. É cedo demais, pensa. É cedo demais nesta manhã e é cedo demais para este arrepio de frio sombrio. Angústia, de onde vem esta angústia? Sacode os ombros, avança pela rua, cumprimenta a dona do supermercado, Bom dia Dona Eduarda, o cão do Augusto que veio sozinho à rua, Olá Berlinde, mas não diz nada, diz tudo para dentro, pois nenhum deles o viu passar. Dirige-se para o café do Júlio, na estação, o único que está aberto àquela hora. Entra e deixa-se ficar ao balcão, Júlio traz-lhe um café e pergunta-lhe qualquer coisa a que ele responde que sim mesmo sem ter ouvido nada. Procura a carteira no bolso das calças e percebe que não a tem. Hoje é por conta da casa, Rafael agradece e pega na chávena, senta-se sozinho numa mesa, não há mais ninguém no café. Tira um maço de cigarros do bolso da camisa e de dentro do maço, que está cheio, um cigarro, que acende depois de ter dado um golo no café. Nesse preciso momento, um odor forte a marmelos atinge-lhe como um choque as narinas. Que estranho. Que confusão, pensa. Não nascem marmelos senão daqui por dois ou três meses, já quase na entrada do outono, quando o sol de verão se enegrece e cepas de amoras rebentam à beira de noites frescas. Dá mais um golo no café e logo a seguir outro. Levanta-se para acabar de fumar o cigarro à porta. Na verdade quer ir espreitar a rua, ver de onde possa vir o cheiro. Apercebe dois vultos ao fundo na estação, um sentado, outro em pé a falar ao telefone. O céu absorve tudo no seu azul forte sem uma nuvem. Passam um carro cinzento e um branco, completamente fechados e a grande velocidade. O verão chegou finalmente, pensa. Sem que perceba porquê, a ideia não o apazigua. Talvez tenha sido o vento frio de há pouco, ocorre-lhe. 'té logo senhor Júlio e atravessa a estrada para descer a avenida a pé. A Margarida passa do outro lado e finge que não o vê. Que gira, porra, pensa, reparando nos calções brancos muito curtos ou, mais precisamente, no contorno da púbis que os calções acentuam. Quando ela fica de costas, Rafael vê o cabelo solto castanho tocar-lhe na cintura e imagina-se a despi-la. Já na entrada da avenida, volta a olhar para a frente. Os castanheiros e os plátanos adensaram-se, que frescura, tanto verde. Um cão amarelo passa por ele a cheirar os canteiros do jardim e a base das árvores. Quase a meio da avenida, o seu olhar é atraído para a esquerda onde vê um denso nevoeiro subir para a estrada. Estou a ver mal, pensa. Se calhar não é nevoeiro. Mas é nevoeiro. O rio está tão longe, não pode ser, a manhã já vai alta. Onde está o sol? Rafael espreita pela copa das árvores, o sol brilha, amarelo e quente. Nesse momento, um vento forte empurra-o, Rafael desequilibra-se e vê aos seus pés folhas douradas secas e em grande número. Volta a olhar em frente, caminhando em direção a ele, o nevoeiro é tal que já nem se vê nada a partir dele. Como é belo, pensa. Parece uma montanha. Uma montanha que realmente vem até nós. Que raio de dia, o que se passa? Ainda estou a dormir? Volta para trás evitando o bloco de nevoeiro, um pouco zangado. Altas sobre o muro, as sebes da casa dos Patrocínio esclarecem-no. Todas elas estão em flor, flores de primavera, flores de verão, flores de outono, flores de inverno, cada uma das sebes, lado a lado, as ostenta. Daqui não há volta. Os segredos que não foram desvendados aninham-se e a vida passou a ser uma terrível confusão de estações. Uma rosa tem em si todas as rosas, como se fosse a última e não a primeira vez que visse uma.

1 de outubro de 2017

A negação do tempo, lê-se no texto sobre Orbis Tertius, seria o axioma mais importante das escolas filosóficas de Tlön. Em virtude deste princípio, a realidade futura tem uma única forma, a dos nossos temores e esperanças presentes, e o passado é apenas recordação. De uma outra perspetiva, o mundo e tudo o que nele vive agora foi criado há pouco minutos, juntamente com a sua história anterior, tão completa como ilusória. Para uma terceira teoria, a Terra, ou é um beco sem saída na grande cidade de Deus, ou uma caverna escura cheia de imagens incompreensíveis, ou um halo de vapor em torno de um sol melhor. Os representantes de uma quarta escola filosófica defendem que o tempo já decorreu todo e a nossa vida é apenas o reflexo crepuscular de um processo irrecuperável. A verdade é que não sabemos por quantas das mutações possíveis passou já o mundo e quanto tempo resta ainda, se é que o há. Certeza, só temos a de que a noite dura muito mais que o dia quando se mede uma vida, a vida em geral ou o próprio tempo pelo sistema mais vasto em que até aqui tem estado ordenado.

W. G. Sebald, Os Anéis de Saturno.
Ao fim de alguns minutos pareceu-me estar a atravessar uma terra por descobrir e senti-me, lembro-me bem, ao mesmo tempo completamente liberto e terrivelmente ansioso. Não tinha uma única ideia na cabeça. A cada passo que dava crescia o vazio por dentro e o vazio por fora, adensava-se o silêncio. Deve ter sido por isso que apanhei um susto de morte quando uma lebre que tinha estado escondida nos tufos de erva à beira do caminho saltou mesmo à frente dos meus pés e partiu à desfilada, primeiro pelo caminho a direito, depois guinou para um lado, para o outro, e voltou a entrar no campo. Devia ter estado encolhida no seu sítio enquanto me aproximei, o coração a bater furiosamente até ser quase demasiado tarde para salvar a vida. O instante ínfimo em que a paralisia que a tinha tomado se transformou em movimento de pânico de fuga foi também o momento em que o medo dela penetrou em mim.

W. G. Sebald, Os Anéis de Saturno.

24 de setembro de 2017

16 de setembro de 2017

eram sombras longínquas, com uma expressão de piedade puramente mecânica, cuja aproximação me repugnava, pois estavam destinadas a perder-se facilmente. uma solidão supérflua e incómoda, inconcebível, persistia no limiar da memória. é isto que constitui o poder, pensei. uma ânsia vem mendigando atenção e, quem a veja, vai apoiá-la, de forma ingénua ou cómica. pelo menos mergulho na terra com espanto e, sem pestanejar, descubro em silêncio o milagre. toco-o e ele desaparece, pois a sua organização interna é inapreensível. para minha deceção, o seu ar de desprezo e de superioridade, ainda que subterrâneo, preenche o céu. embriaga-me um sentimento de culpa, sou impelida por um gesto inoportuno que se esfuma perigosamente. uma força ostensiva impele-me a renunciar à alegria e a inclinar-me à pobreza e à história. é esse o instante da transgressão, quando não há esperança. ergue-se um pó pesado e sujo, o mundo é o mundo na sua despreocupada falta. dela nasce o riso.
chego tarde às coisas, quando sobre elas já se sabe tudo e por isso foram deixadas para trás, devedoras do que a elas se seguiu. é, portanto, com enorme sossego que as abordo, sem contaminações de olhares externos. as descobertas tardias envolvem uma vontade serena, mas precisa, pois o tempo e o espaço foram trabalhados para as receber. o que é o momento certo? aquele que engolfa o corpo no espaço.

14 de setembro de 2017

haverei de hesitar sempre entre as paisagens desconhecidas e as familiares, sem que dessa hesitação venha algum privilégio ou ganho. preciso de viver num sítio onde saiba que há ruas onde nunca entrei, mas há um consolo inestimável em ver aquelas onde aprendi a andar. contudo, não preciso de as visitar. desde que me lembro que o meu movimento se afasta das coisas familiares como da sarna, como se houvesse uma rejeição da intimidade. contrariá-lo é particularmente exigente e nunca me trouxe grandes benefícios. não acredito em coisas que mudam, acredito em coisas que são. às vezes é preciso interpor uma distância entre nós e a intimidade, para que ela não julgue que nos pode fazer promessas. o progresso é o estertor da evidência.