23 de janeiro de 2017

Cada dia, comendo silenciosos a vida,
repugnante ou doce,
alegre ou inimiga.

Pier Paolo Pasolini

22 de janeiro de 2017

Seuls les fous écrivent complètement [puisque] seulement les fous opèrent dehors la conversation de la vie vécue.

Marguerite Duras

21 de janeiro de 2017

Forçar-me a comer. Quando penso na minha infância, é fatal associar-lhe um quotidiano preenchido pela recusa em comer e pelo asco da comida. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, tudo o que me permitia fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de ter terminado a refeição, o que nunca resultava. A comida fria ia para o lixo, os gritos culminavam. No jardim-escola tinham um hábito extraordinário: à medida que a hora de sair do refeitório se aproximava, as auxiliares enchiam o prato de sopa com o segundo e a fruta e forçavam-me a comer, abrindo e fechando-me a boca com as mãos. Isto passou-se dia após dia durante anos e depois, em casa, ouvia ainda mais gritos porque os meus pais recebiam as queixas das educadoras. Durou até que a minha irmã, já no final da pré-escola, lhes contou o que faziam, altura em que a minha mãe foi pessoalmente à escola dizer que se eu não quisesse comer não deviam obrigar-me. Muito mais tarde, acabei por ter prazer em comer e passei a comer de tudo, desde que não fosse cozinhado por mim. Ainda assim, graças ao micro-ondas, onde posso aquecer uma sopa, e à fruta, há alturas em que posso passar dias sem comer uma refeição completa. Devíamos poder alimentar-nos apenas de fruta. Há tempos explicaram-me que, para as crianças, os alimentos representam a descoberta do mundo. Os sabores, sempre novos, exigem-lhes uma adaptação feroz, que deve ser feita com bonomia. Isso fez-me pensar que, algures no meu passado, o mundo se tornou algo de que tinha de defender-me e cuja ameaça está sempre a pairar. Era assim, de facto, que o percebia, sobretudo quando até em casa sofria as consequências de quem não está predisposta a comer. A minha amizade com o mundo, alegre e inconsequente, nasceu mais tarde, quando me permiti não comer, ter fome e aprender a cozinhar. Nos dias em que, vezes sem conta, abro e fecho o frigorífico sem conseguir pegar na peça de carne ou peixe que tenho para preparar, é todavia o asco que regressa e um sentimento de separação total predomina, como um jejum que fazemos para nos purificarmos. A comida — o cheiro da comida, o toque da comida, a mistura das comidas — volta a tornar-se torturante, tal um hábito nocivo que é difícil abandonar, e sou eu que finalmente me obrigo a comer. Já não é porém o vómito que se sucede, mas antes a satisfação. A emancipação tem algo que ver com isto, com a descoberta de que há quietude e conforto para lá do útero das nossas mães e que é um banquete estar vivo.
Dizer que há sempre dois lados para a mesma história parece-me redutor. As nossas vidas sofrem tantas influências e tantas delas permanecem incógnitas para nós próprios, como névoas sobre o horizonte: sabe-se que estão lá, mas não se veem. A pura magia de um escritor é dar a ver o mundo como ele existe em nós, revelando quer os lugares esquecidos quer os que mais nos atormentam e ainda, entre uns e outros, tão significativa que é, a panóplia de lugares comuns, banais, secretos, que constituem a nossa vida interior.
Estou a gostar tanto da Elena Ferrante que fui ainda incapaz de retirar qualquer citação que fosse ou sublinhar uma só frase, como é meu hábito. Creio que nunca me tinha acontecido tal coisa com um livro, um livro capaz de me engolfar por inteiro durante horas em que esqueço até que sou alguma coisa que respira e vive a sua própria vida. Já se deve ter escrito muita página sobre este livro, não li nenhuma, não gosto de preparações. Mas imagino agora que todas digam mais ou menos o mesmo, exaltando-o de uma forma ou de outra. Seria impossível para mim. Neste momento a minha vida é a vida do livro e, fruto do que porventura é demasiado íntimo e intenso, não há nada que possa dizer sobre ele.

20 de janeiro de 2017

Viver é defender uma forma.

Hölderlin
(...) to think critically is always to be hostile.

Hannah Arendt

15 de janeiro de 2017

O Mal não é só minucioso, é também sentimental.

Hannah Arendt
Silence is a lot like beauty.
Comecei a trabalhar cedo, embora não tão cedo quanto porventura os meus avós começaram, por volta dos 15, 16 anos, primeiro em apanhas da uva e da azeitona, depois em bares, pastelarias, restaurantes, lojas de roupa e de bugigangas, bibliotecas, entre outros. Sempre trabalhei enquanto estudava, quer para ter uns trocos, quer por fim para terminar o curso. A princípio, ainda pensava — embora a isso induzida e sem real vontade — que um dia iria encontrar um bom emprego, uma coisa que eu gostasse verdadeiramente de fazer e cujos rendimentos me permitissem viajar depois de pagar as contas. Na minha inocência, desconhecia então que as promessas que me tinham feito («se te esforçares, encontrarás») eram nulas. Algures durante o percurso, o trabalho passou a representar portanto um esforço vão, e o que me cai na conta muitas vezes nem chega para tudo. Claro que cometi erros nas decisões que tomei. Recusei-me por exemplo a viver exilada, a receber cunhas, como me recusei a trabalhar para multinacionais, nomeadamente relacionadas com a banca e com petrolíferas. Também me despedi quando me disseram que tinha de trabalhar no dia 1 de maio e não baixei a cabeça em silêncio quando me encontrei debaixo de gritos dos patrões. Com isto, fiz do caminho um calvário que não está prestes a terminar. Tudo excelentes razões, parece-me, para que tenha lançado a puro descrédito o valor do trabalho, tornando-se este um flagelo que tenho de suportar todos os dias. As pessoas que gostam de trabalhar, mesmo fora de horas e ao fim de semana, tornaram-se algozes brutais, por alimentarem o movimento da roda de onde hoje me esforço por sair. Ignoro o que as motiva e ignoro como conseguem encontrar no trabalho motivos de emancipação, realização e felicidade. Um amigo disse-me um dia que deveria escolher o trabalho que pagasse para fazer e não o trabalho que pagasse bem. Mas a verdade é que o único trabalho que pagaria para fazer não paga nem bem nem mal, não paga nada, e esse acaba por ser mesmo um dos seus atributos mais valiosos. Aquilo que gosto de fazer é completamente inútil, anónimo, um desperdício de tempo na plena aceção da palavra. O tempo, esse que dizem que vale dinheiro, torna-se fruição, paixão, transformando cada momento em vida a gerar vida.