15 de setembro de 2016

o que é o tempo?, é necessário perguntar. enquanto passo a ferro, o tempo torna-se plácido como a água de um ribeiro. uma peça, com cada uma das suas partes, por exemplo, uma camisa, manga, outra manga, colarinho, duas partes da frente, costas, e finalmente pendurar. quando se passa a ferro um vestido o tempo pode desaparecer e só quando acabamos se sai dele para enfim o vermos passar ou antes para vermos que passou. é uma perplexidade que nunca deixa de me surpreender. a meticulosidade que o trabalho exige absorve-me a ponto de me retirar do tempo e assim, também, da existência, pois durante esse tempo não sei nada de mim, como não sei nada dele, nem sobre a sua existência nem sobre a sua cessação. viva mas sem memória, nesta hora estranha não me posso circunscrever e localizar.
vivemos numa era de velocidade rápida enquanto sabemos que houve um tempo sem televisão, rádio, cinema ou internet, em que as pessoas faziam leituras aos serões e escreviam cartas. como terá sido esperar por uma carta numa altura em que não existia telefone? como se preenchia o tempo? que é o mesmo que perguntar, o que era então o tempo? nunca o saberemos. estou aqui ao balcão e um velho, que se apercebe da minha pressa, diz-me para avançar, que tem tempo. estamos tão distantes um do outro como de uma dessas eras. lembro-me de um filme em que uma mulher num café dizia a um homem que tinha lido uma coisa extraordinária. contava então que alguns carregadores subiam uma montanha com uns sábios e que subitamente se imobilizavam. os sábios quiseram saber o motivo da paragem e os carregadores responderam que tinham caminhado demasiado depressa e que estavam à espera das suas almas. também estou sempre à espera da minha alma, mas ela parece nunca chegar. mesmo no silêncio e na atenção, estar vivo é insondável.

8 de setembro de 2016

sonhos

1. eu e outras duas pessoas, não sei quem, saíamos de um lugar onde havia árvores e onde estávamos a fazer qualquer coisa como se na vigília. em certo momento entramos uma a uma numa sala branca e suja com um ringue de boxe branco, primeiro um rapaz, depois eu e depois um homem mais velho. quando entramos nessa sala estamos transformados em demónios, lascivos e cada um com uma cor, verdade, rosa e azul, vestidos com um roupão de turco branco. subimos (portanto, os demónios) para o ringue como se fosse um desfile e olhamos uns para os outros. movemo-nos languidamente e deitamos a língua de fora. depois, guiados pelo mais velho, saímos da sala para a natureza por outra porta, atrás da qual está uma floresta. acordo sem saber o que sou.

2. era um de seis filósofos gregos, velhos, com vestes compridas e azuis, como se fossem feitas de vidro, e estávamos num dos lados de uma rocha com um lago no meio a falar para uma multidão com um discurso muito enigmático. depois estava num grupo a participar num festival de música importante no estrangeiro e havia muita loucura e bebida por todo o lado e eu não bebia mas tinha óculos de sol. a minha banda ganhava um prémio e eu não estava nada à espera e não tinha agradecimentos.

3. era um edifício cujo interior era feito de plástico branco. eu ganhei qualquer coisa e ele transforma-se em madeira, uma madeira especial de que não recordo o nome, que vi uma vez numa caixa há cerca de 20 anos, muito suave, cheirosa e cor de rosa. nisto, rapidamente no edifício de madeira alguém me persegue para me matar e eu subo e desço escadas interminavelmente, escadas em caracol, apertadas, tetos baixos e sobretudo uma particularidade nos degraus, que são esculpidos em vários losangos. por cima há um terraço, mas eu só consigo subir e descer degraus dentro do edifício. o que quer que seja que me persegue, tem qualquer coisa de monstruoso, são vários, uma espécie de lagarto-pessoa, com as cabeças grandes e olhar zangado. não sei em que parte do edifício, passou-se qualquer coisa com uma amor de infância, creio que tinha a ver com o que ganhei. estava num grande namoro com ele e pensei «afinal, depois de tanto tempo, ainda veio a gostar de mim» (acabou de me aparecer a fotografia dele à frente e lembrei-me disto, não o via há anos).

4. era uma conferência sobre linguagem em que cada um, em vez de dossiês, iria receber a língua dos pássaros.
sons da minha infância:
- melros
- pardais
- andorinhas
- latidos
- cigarras
- grilos
- porcos a morrer
- árvores
- crianças no recreio
- banda a passar
- gritos da vizinha
- vento nas antenas
- mota à noite

6 de setembro de 2016

foi porque a distância entre mim e ela se adensou ao longo dos anos que percebi que aconteceria o mesmo com os outros. agora encontramo-nos raramente, embora de modo sempre muito afável, normalmente para tomar café, umas duas ou três vezes por ano. um dia fomos inseparáveis, mas já na altura as coisas que me irritavam nela eram as mesmas de agora. não me irritavam menos, pelo contrário, nessa altura falava sobre isso. hoje já não falo, passei de certa forma a aceitar que o lugar delas está acima de qualquer mudança. por isso mesmo, já não discutimos. recebemo-nos com um sorriso e um abraço, e falamos do que sabemos poder falar uma com a outra sem altercações. mantemos segredos, não explicamos tudo e quando ela fecha a cara para o empregado que serve o café, eu limito-me a agradecer e a sorrir no lugar dela. escondo por exemplo que considero que tenho um certo desprezo pelas pessoas que vêem o Big Brother. ela adere a tudo o que é popularucho, o mainstream é a sua praia, e a mim, o mainstream revolve-me as entranhas. acabei por me isolar demasiado um pouco também por isso, sem me reconhecer nas modas, afastei-me de todas as pessoas que aderem às modas, que é praticamente toda a gente que conheço. ela não mo diz, mas sei que não entende. continua a tentar mostrar-me um outro lado da vida, como se fosse essa a vida real, a vida bem vivida, equilibrada e feliz, dizem. no outro dia perguntou-me o que ando a ler. foi uma pequena falha a que não podia responder «deixa lá isso» e portanto respondi sinceramente, ainda que sem ânimo. a meio da minha exposição, mudou de assunto, distraidamente. «bem me parecia», pensei. eu cá não lhe pergunto o que anda a ler. agora às vezes não me atende o telefone ou não me responde a mensagens, coisa que dantes nunca aconteceria. estamos no rastro final do distanciamento, em que até as coisas seguras são colocadas em causa e desaparecem. como a maneira como ela me vê, que sempre pensei ser de uma grande lucidez. mudei tanto, como poderia ser? é isto agora, o mesmo com os outros. vamo-nos afastando sempre que nos calamos para não ter chatices, e o que houve de bom torna-se uma lembrança empoeirada, sem músculo.

30 de agosto de 2016

reparo nos velhos, com camisolas e casacos de lã debaixo do calor tórrido de agosto. é isso que nos espera, ter frio, e a isto que mais pode haver a acrescentar?

29 de agosto de 2016

28 de agosto de 2016

... a stone, a leaf, an unfound door; a stone, a leaf, a door. And of all the forgotten faces. Naked and alone we came into exile. In her dark womb we did not know our mother's face; from the prison of her flesh have we come into the unspeakable and incommunicable prison of this earth. Which of us has known his brother? Which of us has looked into his father's heart? Which of us has not remained forever prison-pent? Which of us is not forever a stranger and alone? O waste of lost, in the hot mazes, lost, among bright stars on this weary, unbright cinder, lost! Remembering speechlessly we seek the great forgotten language, the lost lane-end into heaven, a stone, a leaf, an unfound door. Where? When? O lost, and by the wind grieved, ghost, come back again.

Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel.

27 de agosto de 2016
















a fotografia não foi tirada no ponto ideal mas já se consegue ver: o perfil de uma mulher grávida formado pela serra d'aire e candeeiros. noutros locais de melhor visibilidade, até o recorte do rosto é perfeito, com o contorno bem marcado dos olhos, do nariz, da boca e do pescoço. uma amiga arqueóloga disse-me que é provável que esta visão do horizonte seja a explicação para que se encontrem aqui dos mais antigos vestígios da espécie humana. aqueles que aqui chegavam acreditariam ser um lugar sagrado, mágico. enfim, como eu própria. a natureza em si tem sempre qualquer coisa de mágico, de exaltante. o conjunto dos ciprestes e das oliveiras transmitem-me sentimentos confusos, alguma angústia, alguma admiração, uma espécie de desejo ou de paixão. um arrebatamento. mas aquela mulher grávida no horizonte era mais do que isso, ou era outra coisa. eu acreditava na sua presença, eternamente fértil e serena. perante ela o sentimento era de fausto, de magnificência, como se fosse impossível falhar o melhor dos possíveis. e depois, era uma mulher. de todas as formas existentes no mundo, uma mulher repousava ali, de todos os sítios, naquele onde nasci. isto tornava a paisagem não só sagrada mas também desafiante, como se me dissesse para elevar as minhas intenções. hoje pode parecer ridículo, mas a sua presença permitiu-me superar muitas situações de misoginia, por exemplo, o que não é nada pouco tendo em conta a cultura onde estava inserida. mas sobretudo, era para ela que eu olhava sempre que me surgia uma ideia para escrever ou simplesmente quando pensava que seria escritora. a escrita era, como ela, uma alquimia, a possibilidade de transmutar e criar a partir do presente, visível ou invisível. apesar de inúmeras tentativas, nunca consegui mostrá-la a ninguém e é a primeira fotografia mais ou menos decente que consigo. infelizmente oblitera o silêncio das paragens.
fer·ti·li·da·de

substantivo feminino

1. Qualidade de fértil; fecundidade.

2. [Figurado]  Disposição para a fecundação.

3. Opulência; abundância; fecundidade de espírito.

"fertilidade", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/fertilidade [consultado em 27-08-2016].
coisas com corvos:

— dois corvos poisados à beira da estrada que não se distraem quando eu e a minha irmã passamos de carro. eu digo «que lindos», ela silencia-se. não se brinca com a superstição popular.
— o recorte de um corvo em Princes et Princesses, de Michel Ocelot, que vejo no dia a seguir.
— a página de dezembro de um antigo calendário inglês.
— o último conto de Lucia Berlin em Manual para mulheres de limpeza.

26 de agosto de 2016

li há tempos um artigo onde se afirmava que a música que se ouve enquanto se escreve influencia o tom da escrita. fiquei a pensar na música que oiço, quando oiço, enquanto estou a escrever e em porque é que certos textos exigem um silêncio total — e que têm sido justamente os mais pujantes. é curioso que nunca tenha pensado sobre isso. o que sempre me pareceu influenciar a escrita de modo decisivo foi a paisagem. a paisagem perante a qual escrevemos impregna de tal modo o texto que se torna praticamente impossível separar o conteúdo do discurso da paisagem perante se está. lembro-me sempre da Marguerite Duras, que escreve sobre a morte de uma mosca, creio que numa dispensa. são textos de uma enorme concisão, condensados, que refletem o seu isolamento, de resto voluntário. escrever com o desespero, diz ela. mas sobretudo: «Il y aurait une écriture du non-écrit. Un jour ça arrivera. Une écriture brève, sans grammaire, une écriture de mots seuls. Des mots sans grammaire de soutien. Egarés. Là, écrits. Et quittés aussitôt.». e logo a seguir «J’ai fait des livres incompréhensibles et ils ont été lus.». é uma paisagem feita de nada, um nada irredimível, a partir do qual as palavras se inscrevem. Kafka também dizia qualquer coisa sobre esse nada: «I need solitude for my writing; not 'like a hermit' — that wouldn't be enough — but like a dead man.» e (numa carta a Milena Jesenska) dizia que precisava de silêncio para tentar «(...) communicate something incommunicable, to explain something inexplicable, to tell about something I only feel in my bones and which can only be experienced in those bones.». há aqui qualquer coisa de luto, com uma impressiva qualidade de purificação. de quê, não sei exatamente, mas arriscaria a dizer da História. como se a paisagem daquele que escreve permanentemente se retirasse do tempo e daquilo que nele se produz, e no entanto, não como uma paisagem que negue o tempo e a História, pois aquilo que não afirma não pode negar. o incomunicável, o inexplicável, o não-escrito, o sem gramática, o incompreensível, constituem uma paisagem devastada — ou inflamada — por uma frágil desrealização onde tudo apela ao dizer. nem sei se esta palavra, apelo, é a mais justa. será antes uma exigência, anónima, violenta na sua imposição e com leis inflexíveis, que consome quem se dispõe a ouvi-la. aí, os métodos interessam apenas na medida em que não se pode falhar.