12 de julho de 2016

descubro que os campos que vejo da janela
são corpos,
que recebem a luz à hora do fim da tarde
como fogos alastrados,
enquanto um comboio desliza sobre eles
indiferente à hora,
aos campos,
e aos corpos que o ocupam.

olho para os campos debruçada na janela
sabendo que são campos-corpos.
absorvidos neles mesmos
movem-se, existem, respiram, amam,
por vezes quase impercetivelmente,
outras vezes com ira impercetível
outras ainda com delicadeza,
como se não soubessem para onde vão
nem se interrogassem porque são lavrados,
estio após estio.

quando vi os campos-corpos moverem-se, sem se virarem,
pensei que ia enfurecer-me
mas afinal fiquei sem palavras
como se verdadeiramente tivesse engolido o mundo
ou melhor, como se o mundo me tivesse engolido a mim
perante a lavoura que brilha e se escurece.
olhando-a duvidosa,
observei sobre ela um eterno crepúsculo,
e perguntei-me, vendo os campos-corpos mover-se,
o que significa para ti o crepúsculo?

uma voz no altifalante
que se houve em todo o comboio,
até mesmo nas casas de banho,
diz
o comboio circula com atraso. pedimos desculpa pelos incómodos causados.
e, como se excluída do privilégio
de ter pressa,
nesse momento percebo
que o crepúsculo tem a qualidade de ser
metade luz,
metade sombra,
e que nele estas propriedades
são indivisíveis.

saio por uma porta que se abre ao pressionar um botão
e dirijo-me para o elevador
cuja porta se abre ao pressionar um botão.
chegando ao meu destino
as portas abrem-se de par em par,
são automáticas,
não lhes toco,
nem num botão
nem numa alavanca
nem espero
nem puxo
nem empurro,
opondo a força do corpo à mola aérea
que às vezes há nas portas
para que se fechem sozinhas.
depois, enquanto estou sentada à espera,
penso que talvez seja isso
o que procuramos,
o alívio de uma porta
que seja só uma porta.
é isso a eternidade.

4 de julho de 2016

contrariando o movimento habitual, Miguel levantou-se e abriu a janela para fumar um cigarro. nesse momento, uma chuvada intensa cai, muito embora, desde há meses, o tempo fosse de secura. secretamente sabia-se fora do mundo. o exílio era modesto, porém, bem definido e não havia nada que contrariasse a sua lógica e portanto o aligeirasse. dito isto, nenhuma ânsia o perturbava: na cela podia viver-se perpetuamente, sem a aflição dos outros. nas suas paredes lisas, nenhum relógio soava e os desejos caíam como prumas no vento. naturalmente era ingénuo pois o tédio trespassava-o como um relâmpago.

3 de julho de 2016

isto passou-se no final de março, a primavera mostrava-se sem cuidado e por toda a parte, e eles, dóceis e ansiosos, submetiam-se a ela. vindo da sala, onde tinha estado quase toda a manhã a falar com a dona Elisa Berta, Horácio desce a escada e tropeça já no último degrau, rindo depois para disfarçar o susto. saíram os três, atravessaram a feira e o parque rapidamente, caminhando sempre em frente através das barracas de queijo e presunto, dos ramos de alfazema enrolados em papel manteiga, das tílias, dos plátanos e dos castanheiros, e entraram na igreja. isto não levou mais do que quinze, vinte minutos. Maria e Horácio sentaram-se na segunda fila atrás, mergulhada na escuridão, o que surpreendeu Catarina, que pretendia sentar-se com eles logo à frente. hesitou e a hesitação chegou para expor o segredo em plena luz do dia. Catarina em pé, sem decidir se se juntava a eles na segunda fila, ou se os deixava a sós e prosseguia caminho em direção ao altar como havia pensado, Maria corada a apertar as luvas entre as mãos e Horácio incapaz de esconder a felicidade que antecipava um momento a sós com Maria, ou seja, sem Catarina. com plena consciência no papel que desempenhava nos acontecimentos, Maria estava vestida de negro, mas tinha pintado os olhos e os lábios. nenhum deles pronunciou palavra. 
Temo as grandes alegrias que parecem anteceder grandes catástrofes.

Ricardo Piglia
com a mesma naturalidade, uma alegria alucinante, muito próxima do sonho, regressou e fixou-se ameaçadoramente. tudo estava deserto. a matéria acumulada em enorme espessura difundiu-se como sujidade e esvaziou-se. a realidade prosseguia por sua própria conta e risco, como uma contradição ou um animal inocente. mas o seu coração, transbordante, através de todas as metamorfoses mostrava agora a sua repugnância. na verdade, sempre lá tinha estado.

2 de julho de 2016

quantas coisas surpreendem na vida se o que surpreende é letal?

30 de junho de 2016

Aquele que se sente perseguido muito depressa passa a perseguir, ou talvez se sinta perseguido porque não se atreve ou não sabe explicar o que persegue.

María Zambrano, O Homem e o Divino.
Como tudo é vão!
Arrasa uma cidade,
ergue-te do pó dessa cidade,
assume um cargo
e finge,
para evitares expor-te.

Cumpre as tuas promessas
diante de um espelho cego no ar,
diante de uma porta fechada ao vento.

Virgens são os caminhos nas escarpas do céu.


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado.

27 de junho de 2016

um casal de turistas de banho tomado e perfumados, ela com bijuteria cara e maquilhada, ele de fato azul, gravata e lenço, ambos loiros, passa ao lado de dois caixotes de lixo cheios rodeados de um monte de sacos de lixo empilhados num bairro lisboeta. a acreditar na sorte e ao que parece, não os viram. sobem a colina sorrindo um ao outro, alheados da cidade onde passeiam, de visita. passando ao seu lado, desvio o olhar, e é isso o que de mais fecundo e decisivo tenho, precisamente agora.
é certamente admirável. previ o fracasso desde sempre, mas não me atrevi a perguntar pela estranheza que ocorre como um gemido fruto de uma epidemia. sou culpada. tenho uma língua.
o que a confiança exclui, continua a crescer como uma hera, constante e harmonioso, até que, livre de juízos e de um dia para o outro, desaparece, dando lugar ao que ocultava.
saio agora para os jardins
para que aquilo que é
se faça sob a luz.
O mais valioso nos versos e na vida é aquilo que chegou involuntariamente.

Marina Tsvetaeva [Марина Цветaева], Indícios terrestres.

24 de junho de 2016

o que admiramos nos loucos é a perfeição das suas solidões.
mal o disse, bateu nas coxas, no entanto com uma eficácia duvidosa, resultado de uma dieta de emagrecimento. face a face, lúcidos como um diabo, observavam a mutação daquilo que não sabiam e nenhuma explicação parecia suficiente. eram agora reféns do momento. qualquer palavra teria sido alvo de cinismo e, por isso, o silêncio prevaleceu, ainda que nele houvesse um efeito surpresa: viram-se envelhecer com uma indecência indigna, de repente.

23 de junho de 2016

R. tem os nós dos dedos salientes,
mais salientes que os das amigas
com quem se encontra
por vezes
embora no geral
sinta que está cercada de bobos
e se admira de viver
em tamanho perigo
e por isso ri
e se espanta.

22 de junho de 2016

os gatos sentados no parapeito das janelas

não havia um único
que não estivesse preparado
para o primeiro momento.
fico imóvel, como um animal alegre, à entrada do frigorífico, porque a matéria adere à matéria, e me vejo na abertura branca, sem mim, não como uma ausência mas sim como um milagre, sem felicidade ou infelicidade, como um dom, ou um delírio, por exemplo, através do qual seria possível escorregar se os olhos não ficassem aterrados com o vácuo.

20 de junho de 2016

na gaita
do amolador
soa um adágio
que marca a hora
leda, branda, equíssima
do meu encontro com a terra
tudo o resto 
que sob a pele
sob os nervos
pensa e pressente
é o tédio incerto
seco e mudo
onde intrigas insones
e heresias ledas
são fermentadas
com muita fleuma 
que por um triz
não greta
entre as calúnias
num ou noutro pormenor
acerta-se no limiar

se um corpo pressupõe
um peso
e este um jogo

qualquer sinal
independentemente dos sinais
se torna brandura

se a matéria se afasta
a luz é fatal
originária, nuclear.
acossada por nunca ter entrado nas perguntas
a constância chegou
numa palavra estrangeira
impronunciável
que ninguém aceita

é intolerável cantar alto
entre o sopro monótono das imagens
como uma montanha inacessível
e transparente
dissipo-me

a quem atribuir a culpa
do pudor e do escrúpulo
se nada há de mais arguto

animal acossado numa força
que irradia do que já não vive
vigio o jogo impassível da ordem