20 de junho de 2016

esta semelhança esculpida
na substância
massiva
da beleza feminina
promete a realização
de elevada
fantasia
material de pureza
se quiserem
ligeiramente desconfortável
como uma série
de acontecimentos
ligados
pela improbabilidade
e ainda assim
inflamáveis
como um génio
ingénuo
enfim
uma banalidade
o último dinossauro
a invenção do fogo
a divisão do átomo
uma paródia
hilariante
como uma ferida
a água
funda e sossegada

19 de junho de 2016

nunca senti nada pelos manicómios senão um grande conforto, por serem lugares onde podemos dormir o dia inteiro.
S. é uma rapariga qualquer, de calças de ganga e t-shirt comprada na H&M, com a cara cheia de sardas. F. observa o seu longo cabelo preto e os dois mantêm-se em silêncio porque entre eles não há nada para dizer, a sua presença basta. A campainha soa e alguns convivas saem para o jardim com o copo na mão, lançando-lhes um olhar cúmplice. S. não se mexe, não desvia o olhar, não sorri, não finge ocupar-se com nenhuma ação. Sob aquele sol seco e esplendoroso, a luz transmite uma profunda paz e, no meio de toda aquela gente que pergunta por quem está à porta, cujas vozes ecoam surdas dentro do calor como se fossem inventadas, F. sente-se desmaiar. A sua atenção, no entanto, não se desvia dela. desesperado como um miúdo, cada gesto pesa dentro daquele universo com certa religiosidade, como se estivessem nus, e não serve para mais nada senão para tornar o momento ainda mais mudo. F. descobre-se como um silencioso escravo. Seria capaz de cometer um crime, pensa. exatamente nesse momento, S. olha para F. pela primeira vez. com igual surpresa — e grande angústia —, o crepúsculo ameaça cair: um galo canta, a sirene da fábrica soa ao longe, a luz cerca-se de uma sombra ténue mas profunda. contraditório, o ar austero de S. é impossível de ignorar e, enquanto a campainha soa várias vezes, F. tem a sensação da alegria cessar completamente. enquanto lá em baixo o portão se abre, S. mergulha na piscina e, obedecendo ao seu instinto, F. mergulha também. por fim, depois de nadarem umas braçadas, numa voz breve, tem a coragem de falar.
— É engraçado. Mal entro na piscina dá-me vontade de urinar. — S. tem a cabeça baixa e uma expressão estranha nos olhos. F. prossegue: — Achas muito mal que faça aqui?
— Não acho que faça bem.
— Talvez seja assim que me queiras ver. Como um parvo ou um desastrado.
— O que é que quer dizer com isso? — S., que não pode esconder um leve sorriso, está inquietada mas continua: — Não tenho nada a ver com o que você faz.
F. mergulha a cabeça, nada em direção à escada e sai da piscina. — Até já. — diz-lhe, deixando-a a flutuar à deriva. já de costas voltadas e alguns passos adiante, ouve-a responder: — Há sempre a possibilidade de reter água na boca.
F. torna a voltar o corpo para a piscina e conforta-a.
— Podes sair por outra escada.
S. guarda silêncio. F. continua:
— Amanhã saímos cedo, para um passeio. Não se aproveita melhor um dia no campo como a passear.
Saindo da piscina pela mesma escada, S. responde:
— Somos personagens de uma fábula.
— Quem irá burlar quem?
long lone walks.
— É que neste país temos de estar duas vezes certos das coisas que amamos.
— Uma defesa contra esta impressão de estarmos a sonhar?
— Sim — disse eu, — faz-me medo. Tenho medo do efémero.

Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia.
Lembras-te das nossas horas em sossego,
quando estávamos nós e nós apenas?
Horas de triunfo! Os dois tão livres e orgulhosos
e despertos e em flor e claros
de alma e coração e olhos e cara,
e os dois em paz divina lado a lado!

Hölderlin

18 de junho de 2016

exatamente nesse momento, S. olha para F. pela primeira vez. com igual surpresa — e grande angústia —, o crepúsculo ameaça cair: um galo canta, a sirene da fábrica soa ao longe, a luz cerca-se de uma sombra ténue mas profunda. contraditório, o ar austero de S. é impossível de ignorar e, enquanto a campainha soa várias vezes, F. tem a sensação da alegria cessar completamente. quando lá em baixo o portão se abre, S. mergulha na piscina e, obedecendo ao seu instinto, F. mergulha também. por fim, depois de nadarem umas braçadas, numa voz breve, tem a coragem de falar.
— É engraçado. Mal entro na piscina dá-me vontade de urinar. — S. tem a cabeça baixa e uma expressão estranha nos olhos. F. prossegue: — Achas muito mal que faça aqui?
— Não acho que faça bem.
— Talvez seja assim que me queiras ver. Como um parvo ou um desastrado.
— O que é que quer dizer com isso? — S., que não pode esconder um leve sorriso, está inquietada mas continua: — Não tenho nada a ver com o que você faz.
F. mergulha a cabeça, nada em direção à escada e sai da piscina. — Até já. — diz-lhe, deixando-a a flutuar à deriva. já de costas voltadas e alguns passos adiante, ouve-a responder: — Há sempre a possibilidade de reter água na boca.
No fundo de tudo existe algum animal: essa é a nossa mais profunda obsessão.

Henry Miller, Primavera Negra.

17 de junho de 2016

S. é uma rapariga qualquer, de calças de ganga e t-shirt comprada na H&M, com a cara cheia de sardas. F. observava o seu longo cabelo preto e os dois mantiveram-se em silêncio porque entre eles não há nada para dizer, a sua presença basta. Nisto, a campainha soa e alguns convivas saem para o jardim com o copo na mão, lançando-lhes um olhar cúmplice. S. não se mexeu, não desviou o olhar, não sorriu, não fingiu ocupar-se com nenhuma ação. Sob aquele sol seco e esplendoroso, a luz transmitia uma profunda paz e, no meio de toda aquela gente que perguntava por quem estava à porta, cujas vozes ecoavam surdas dentro do calor como se fossem inventadas, F. sentiu-se desmaiar. A sua atenção, no entanto, não se desviou dela. Desesperado como um miúdo, cada gesto pesava dentro daquele universo com certa religiosidade, como se estivessem nus, e não servia para mais nada senão para tornar o momento ainda mais mudo. F. descobria-se como um silencioso escravo. Seria capaz de cometer um crime, pensou.

16 de junho de 2016

Do you know what people really want? Everyone, I mean. Everybody in the world is thinking: I wish there was just one other person I could really talk to, who could really understand me, who’d be kind to me. That’s what people really want, if they’re telling the truth.

Doris Lessing
O silêncio não é o fim:
é o princípio.
Tudo começa aí onde ninguém fala
e um leopardo cai da minha boca
e uma serpente detém a sua queda:
o silêncio não é o fim:
é o amanhecer da cor, e dos animais.

Leopoldo María Panero, Descubrimiento del animal.

15 de junho de 2016

seguro de si
o branco oferece-se
para fazer contornos

14 de junho de 2016

Et maintenant:

«QUE CELUI QUI N'A JAMAIS PÉCHÉ LUI JETTE LA PREMIÈRE PIERRE.»


Antonin Artaud, Le Moine.
um sol
branco
toca-me nos pés
a confiança apaga
os limites
amargos
Naquele dia, quando todos entraram em casa, S. ficou em pé à beira da piscina onde, de ar absorto, enrolava e humedecia uma mecha de cabelo na boca. O calor estava no auge, entre os canteiros e a erva a vegetação seca crescia profusamente, um intenso cheiro a rosas, de roseiras desabrochadas em torno da casa, tinha-se instalado no início deste verão súbito. F. sai de casa e vê-a. Depois de uma manhã agitada, sem conseguir ler uma página de um livro de seguida, é o único que não diz nada, como se estar em silêncio a contemplar a sua longa cabeleira de caracóis negros fosse mais do que suficiente. Apesar da sua grande diferença de idades, isso bastou para que viessem a conhecer-se.

13 de junho de 2016

O estômago ultrajado do cadete Lowe ergueu-se nas suas amarrações musculadas como um balão cativo.

William Faulkner, A Recompensa do Soldado.
Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

Sigmund Freud, Luto e melancolia.