18 de junho de 2016

exatamente nesse momento, S. olha para F. pela primeira vez. com igual surpresa — e grande angústia —, o crepúsculo ameaça cair: um galo canta, a sirene da fábrica soa ao longe, a luz cerca-se de uma sombra ténue mas profunda. contraditório, o ar austero de S. é impossível de ignorar e, enquanto a campainha soa várias vezes, F. tem a sensação da alegria cessar completamente. quando lá em baixo o portão se abre, S. mergulha na piscina e, obedecendo ao seu instinto, F. mergulha também. por fim, depois de nadarem umas braçadas, numa voz breve, tem a coragem de falar.
— É engraçado. Mal entro na piscina dá-me vontade de urinar. — S. tem a cabeça baixa e uma expressão estranha nos olhos. F. prossegue: — Achas muito mal que faça aqui?
— Não acho que faça bem.
— Talvez seja assim que me queiras ver. Como um parvo ou um desastrado.
— O que é que quer dizer com isso? — S., que não pode esconder um leve sorriso, está inquietada mas continua: — Não tenho nada a ver com o que você faz.
F. mergulha a cabeça, nada em direção à escada e sai da piscina. — Até já. — diz-lhe, deixando-a a flutuar à deriva. já de costas voltadas e alguns passos adiante, ouve-a responder: — Há sempre a possibilidade de reter água na boca.
No fundo de tudo existe algum animal: essa é a nossa mais profunda obsessão.

Henry Miller, Primavera Negra.

17 de junho de 2016

S. é uma rapariga qualquer, de calças de ganga e t-shirt comprada na H&M, com a cara cheia de sardas. F. observava o seu longo cabelo preto e os dois mantiveram-se em silêncio porque entre eles não há nada para dizer, a sua presença basta. Nisto, a campainha soa e alguns convivas saem para o jardim com o copo na mão, lançando-lhes um olhar cúmplice. S. não se mexeu, não desviou o olhar, não sorriu, não fingiu ocupar-se com nenhuma ação. Sob aquele sol seco e esplendoroso, a luz transmitia uma profunda paz e, no meio de toda aquela gente que perguntava por quem estava à porta, cujas vozes ecoavam surdas dentro do calor como se fossem inventadas, F. sentiu-se desmaiar. A sua atenção, no entanto, não se desviou dela. Desesperado como um miúdo, cada gesto pesava dentro daquele universo com certa religiosidade, como se estivessem nus, e não servia para mais nada senão para tornar o momento ainda mais mudo. F. descobria-se como um silencioso escravo. Seria capaz de cometer um crime, pensou.

16 de junho de 2016

Do you know what people really want? Everyone, I mean. Everybody in the world is thinking: I wish there was just one other person I could really talk to, who could really understand me, who’d be kind to me. That’s what people really want, if they’re telling the truth.

Doris Lessing
O silêncio não é o fim:
é o princípio.
Tudo começa aí onde ninguém fala
e um leopardo cai da minha boca
e uma serpente detém a sua queda:
o silêncio não é o fim:
é o amanhecer da cor, e dos animais.

Leopoldo María Panero, Descubrimiento del animal.

15 de junho de 2016

seguro de si
o branco oferece-se
para fazer contornos

14 de junho de 2016

Et maintenant:

«QUE CELUI QUI N'A JAMAIS PÉCHÉ LUI JETTE LA PREMIÈRE PIERRE.»


Antonin Artaud, Le Moine.
um sol
branco
toca-me nos pés
a confiança apaga
os limites
amargos
Naquele dia, quando todos entraram em casa, S. ficou em pé à beira da piscina onde, de ar absorto, enrolava e humedecia uma mecha de cabelo na boca. O calor estava no auge, entre os canteiros e a erva a vegetação seca crescia profusamente, um intenso cheiro a rosas, de roseiras desabrochadas em torno da casa, tinha-se instalado no início deste verão súbito. F. sai de casa e vê-a. Depois de uma manhã agitada, sem conseguir ler uma página de um livro de seguida, é o único que não diz nada, como se estar em silêncio a contemplar a sua longa cabeleira de caracóis negros fosse mais do que suficiente. Apesar da sua grande diferença de idades, isso bastou para que viessem a conhecer-se.

13 de junho de 2016

O estômago ultrajado do cadete Lowe ergueu-se nas suas amarrações musculadas como um balão cativo.

William Faulkner, A Recompensa do Soldado.
Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

Sigmund Freud, Luto e melancolia.

11 de junho de 2016

como tinha uma estatura pequena, ar franzino e um sorriso apalhaçado, onde quer que entrava Artur era tratado como uma criança acabada de sair do jardim escola. brincavam com ele com simpatia, tocando-lhe na cabeça, nas faces, nos ombros, ao que Artur correspondia com cuidado e delicadeza. contudo, à saída do seu espetáculo de magia, as mesmas pessoas olhavam-no com certo temor e sequer lhe dirigiam a palavra, como se de repente o seu corpo lhes fosse estranho ou estivesse desfigurado.
como uma operação privada
no espaço azul e vago
chega a primavera
alheia à predestinação
Esse pensamento deu-me uma sensação de autoconfiança — durante um dia ou dois — e, depois, tal confiança desfez-se.

Se o autor era «apenas eu» o artigo não parecia excepcional. Não provocara eu o efeito de diminuir consideravelmente o brilho do artigo, em vez de o aumentar?

Henry James, O Desenho no Tapete.
o meu desprezo por toda e qualquer forma de comércio é tal, que prefiro não escrever a viver da escrita.

10 de junho de 2016

Se as sete notas das sete da manhã fossem uma
Figura, e os sons da rua sua serva, seria possível
Encontrar a relação que existe por acústica
Entre uma borboleta e uma borboleta protegendo
Em vão sua vida e cor. Não há nada de estranho
Nessa relação figural. Por exemplo, Pita
(e é a sua primeira vez) pôde sentir num tecido
Branco que chorava manso a efectiva resistência
Às lágrimas que a habita em fúria.

Maria Gabriela Llansol

9 de junho de 2016


8 de junho de 2016

I will sing your name, o exalted one
I will sing your name with the ten-stringed lute
Because I have been made in a hideous and strange form

I said, if only the wind were to me like it is to a dove...
So I could fly and find relief
I would hurry towards shelter from the intense wind and violent storm
Because I have seen hardship and wickedness on the ground.

From the bitterness of my own soul I speak
From the bitterness of my own soul I speak
When I was silent, my soul was decaying from all shouting
I was doing all day long

Remember that my life is wind
I have become like spilled water
and like those that have died long ago.
And upon my eyelashes are shadows of death
Upon my eyelashes are shadows of death

Leave me, leave me
For my days are a breath...
Leave me before I go to a place from which there is no return
To a dense, dark land

From the bitterness of my own soul I speak
From the bitterness of my own soul I speak
When I was silent, my soul was decaying from all shouting I was doing
all day long
Remember that my life is wind

I have become like spilled water
and like those that have died long ago.
And upon my eyelashes are shadows of death
Upon my eyelashes are shadows of death

Leave me, leave me
For my days are a breath...
Leave me before I go to a place from which there is no return

To a dense, dark land
Oh God, don't commit the soul of your creation to a wild animal. Please don't abandon me.

Remember that my life is wind
And you have condemned me to idleness

Come listen to the song of someone who is singing in the pathless desert
The song of someone who sighs and extends their hands and says
'Woe is me! For my soul, due to my wounds, has become unconscious.'

God help me, because the day is gently fading
and the shadows of evening are lengthening
And our existence,
like a cage full of birds,
is full of the groans of captivity
Like turtledoves, we beg for justice
But there is not any justice
We await the light,
and now (this moment)... is a godsend.

The Neptune Star:
Sometimes at night we see a bright star.
This star is called the Neptune star.
This star is very bright.
The Neptune star is very close to us.
The Neptune star doesn't twinkle at us. 

Forough Farrokhzad, The House is Black (1962).
sem dúvida que as florestas
ocultaram o seu vazio
onde novas corolas
abrem todos os dias.

fragrâncias, tesouros,
delícias íntimas,
nele nascem e sobem,
como nuvens — unânimes.