17 de fevereiro de 2016

Mas qual é a natureza desse segredo? A única coisa que posso dizer é que tem a ver com a mãe que se teve. Sinto que o mesmo se passou com Lawrence e Rimbaud. A rebeldia que partilho com eles advém deste problema que, tanto quanto consigo exprimi-lo, é o da procura do elo que verdadeiramente nos liga à humanidade. Se se faz parte deste tipo de pessoas, esse elo não se encontra nem na vida pessoal nem na vida coletiva. Trata-se de pessoas inadaptáveis até ao ponto de poderem enlouquecer. Deseja-se encontrar uma alma gémea, mas olha-se à volta e vê-se uma vastidão vazia. Sente-se necessidade de um professor, mas falta-nos a humildade, a flexibilidade, a paciência que é exigida. Nem com os que são grandes de espírito nos sentimos à-vontade; mesmo as pessoas capazes da maior elevação nos parecem incompletas ou suspeitas. E, contudo, só temos afinidades com estes tipos mais elevados. É um dilema de primeira amplitude, um dilema carregado de maior significado. Tem que se determinar a diferença específica da nossa peculiar existência e, ao fazê-lo, descobrir o nosso parentesco com toda a humanidade, mesmo com a mais inferior. A palavra chave é aceitação. Mas a aceitação é, ao mesmo tempo, o grande obstáculo. Tem que ser uma aceitação total e não mero conformismo.
Mas, o que faz com que seja tão difícil, para este tipo de pessoas, aceitar o mundo? Entendo hoje que é o facto de, nos primeiros anos, todo o lado escuro da vida e, claro está, da existência pessoal, ter sido suprimido, ter sido sido tão completamente reprimido que se tornou irreconhecível. Não ter rejeitado esse lado escuro da existência teria significado, pelo menos somos inconscientemente levados a chegar a essa conclusão, teria significado uma perda de liberdade. A liberdade anda intimamente ligada à diferenciação. Neste capítulo, salvação significa apenas a preservação da nossa identidade própria e única, no seio de um mundo que tende a uniformizar tudo e todos. É aqui que reside a raiz do medo. Rimbaud sublinhou o facto de querer a liberdade na salvação. Mas só há salvação se houver rendição incondicional desta liberdade ilusória. A liberdade que ele exigia era a do seu ego poder manifestar-se sem restrições. Ora isso não é a liberdade. Debaixo desta ilusão, se se viver o tempo suficiente, é perfeitamente possível dar livre curso a todas as facetas do nosso ser e, mesmo assim, continuar a encontrar razão de queixa, ou seja, fundamento para a revolta. É um tipo de liberdade que nos dá o direito de objetar e, se necessário, de nos separarmos dos outros. Não leva em linha de conta as diferenças dos outros, mas apenas as nossas. Essa liberdade nunca nos ajudará a encontrar o nosso elo, a nossa comunhão com a humanidade no seu conjunto. Fica-se separado para sempre, isolado para sempre.
Para mim, tudo isto tem apenas um significado: é que continuamos ligados à nossa mãe. A rebelião, nas suas variadas formas, é mera poeira nos olhos; uma tentativa desesperada de esconder essa nossa dependência. homens desta espécie, serão sempre hostis à terra que os viu nascer, e é impossível que assim não seja. Para eles a sujeição, quer seja a uma igreja, a um país ou a uma sociedade, há-de ser sempre o grande espantalho. Gastam a vida a quebrar grilhetas, mas a sua secreta dependência devora-lhes as entranhas e não lhes dá descanso. Antes de conseguirem libertar-se da obsessão das grilhetas, hão-de ter que se haver com a sua própria mãe. «Fora! Fora, para sempre! Sentemo-nos no degrau da porta do útero materno.» Creio bem que são estas as minhas palavras na Primavera Negra, em que falo de um período dourado em que quase cheguei a estar na posse do segredo. De facto, não espanta a alienação em relação à mãe. Nunca se dá por ela, a não ser como obstáculo. Queremos o conforto e a segurança daquele útero, aquela escuridão, aquela paz, que para a criança que vai nascer são o equivalente da luz e da aceitação que rodeiam o ser que já nasceu. A sociedade é feita de portas fechadas, de tabus, leis, repressões e supressões. Não dispomos de nenhuma maneira de dominar esses elementos que configuram a sociedade e com os quais é preciso trabalhar, se quisermos alguma vez estabelecer uma verdadeira sociedade. É uma dança perpétua à borda de uma cratera. É possível que se seja aclamado como grande rebelde, mas nunca se será amado. E, mais que qualquer outro homem, o rebelde precisa de conhecer o amor, mais ainda dá-lo que recebê-lo, e mais ainda sê-lo que dá-lo.

Henry Miller, O Tempo dos Assassinos.

Nota: não me recordo já do útero materno, mas ficou-me esta frase do livro A Primavera Negra, "Todos os dias escrevo a partir do nada."

16 de fevereiro de 2016

ombro a ombro
o céu o inferno ocupa
com diálogos
Certos dons do espírito, como a inteligência e a ética ( por exemplo), são áridas, pouco atraentes, insípidas; para o mundo exuberantemente coisificado de hoje, não retém a atenção, muito menos a graça e o sabor do que se entende por 'esprit'. Por isso, precisamos nos corromper: vestir belas e estampadas roupas, vulgares maquiagens, rebuscada língua. Porém, o núcleo nu e cru da persona continua a ser duro e indivisível, como o lamento de um profeta ou a pata do pária. Mas silêncio!, ninguém pode saber.

Luiz Soares Júnior
o que corrompe o amor é de tal forma inúmero que a lealdade dos assassinos direta, cruel e implacável , é imaculada.
a violeta evoca o riso
na catástrofe
o silêncio é loquaz
uma profunda inquietação apodera-se da personagem que, silenciosa, abre os olhos e levanta a cabeça. está adormecida, depois de ter recebido um duro golpe. dirige o olhar para o leitor. chama de volta a falsidade e jura que falará a verdade. a desproporção daquilo que se prepara no suspense e a sua situação real, envolve-a numa espécie de feitiço, estonteante, de que se mantém inteiramente consciente mas vê-se incapaz de resolver o paradoxo. o seu enigma é tão monstruoso que começa a interpretar as palavras de forma incorreta. a perturbação interior transforma-se em ansiedade e a ansiedade em angústia. é impossível ficar indiferente ao seu isolamento. descobre agora todas as omissões propositadas, as incompletudes, a fragmentação, a radicalidade do mutismo mas, pasmada, não consegue sentir cólera pelo que, digamos, de forma tão verdadeira se revela na sua representação. incapaz porém de retornar à sua natureza, mais do que nunca dúbia e incerta, logo a seguir abandona o livro.

15 de fevereiro de 2016

Hydre intime, sans gueules,
qui mine et désole.

Arthur Rimbaud in Comédie de la Soif, maio de 1872.

14 de fevereiro de 2016

Maintenant, je m'encrapule le plus possible. Pourquoi ? Je veux être poète, et je travaille à me rendre Voyant (...).

Arthur Rimbaud, carta a Georges Izambard, Charleville, 13 de maio de 1871.
a diferença entre cuidarmos de nós próprios e o individualismo é saber desprover-se de si em prol de outrem, coisa que não se explica, se pede ou se espera e raramente encontra reciprocidade. nas vidas limitadas e limitantes que levamos, frequentemente mais não sabemos sobre a generosidade do que designar as suas restrições.

12 de fevereiro de 2016

tenho saudades de uma manhã de nevoeiro em que entrei num largo da cidade da Guarda e tudo era feito de pedra.

11 de fevereiro de 2016

6 de fevereiro de 2016

as pessoas que me amam são as pessoas mais extraordinárias do mundo. não porque eu goste de ser amada, embora goste, mas antes porque têm a capacidade de ver para além daquilo que aparentemente é disforme e formado por intrincadas, obscuras arestas. vislumbrar a inocência entre aquilo que é selvagem, a elegância entre o que é grosseiro e a constância entre o que é violento, não é para todos e, por isso, muito as admiro.

1 de fevereiro de 2016

sempre receei que me compreendessem, pois a clareza é ignorada pelo vulgo e destinada ao esquecimento. perante os fogos que se acenderam, tão delicados quanto a mais cruel imparcialidade, se revelou a minha alegria, como um axioma.

30 de janeiro de 2016

a minha inocência
é impelida
pelo fogo

uma força
no sangue
que sofre

e se lembra
afinal com
uma exatidão

súbita
extraordinária
e inútil

da inevitável
severidade
da ironia

como uma
violenta morte
interior
a substância das
coisas que eram
é inútil.
até o molde
em que se transforma
apenas adquire
certa
importância
quando se quebra.

24 de janeiro de 2016

o deserto é tudo menos um vórtice, disse, como se esperasse não ser ouvido. aqui as nuvens não formam constelações de falsas figuras e o frio vazio é invadido pela impressão cósmica de um tóxico perfume a pinhal. teria que esperar que tudo se desfizesse se realmente queria sair do deserto, a areia, o céu azul, as nuvens, o pinhal, e contudo as mãos, impacientes aranhas prestes a devorar a sua presa, em permanência desenham a inelutável, perfeita, linha do horizonte. se desvanecida ou rompida, a sua trama rapidamente era restabelecida, evidentemente com uma certa candura, a coar a luz do céu. assim mantêm até ao fim o seu segredo, tão finamente tecido que o inferno por vezes se confundia. porém, subitamente, quando pousava a cantar no galho de um pinheiro, um pássaro desfazia o equívoco.

21 de janeiro de 2016

1.
Pindare a écrit dans la deuxième Pythique: Genoi autos essi mathôn. Deviens ce que tu es. Non, ne deviens pas ce que tu es. Ce qui individualise c'est le nom propre, c'est-à-dire le langage où il prend place, c'est-à-dire le contrôle social par la voix intériorisée, c'est-à-dire la servitude sans fin. Ne deviens pas l'esclave des tiens dans le patronyme qu'ils te donnèrent dans la langue collective qu'ils t'enseignèrent. Sans quoi le nom qu'on te donna prendra la place de ta chair.
(...). Ne deviens pas ce que tu es. Ne deviens pas autos. Ne deviens pas idem. Ne cherche pas à être différent des autres car l'envie d'être différent des autres, c'est cela le monde. C'est cela s'adapter aux usages du plus grand nombre et des rivaux. Faire l'intéressant c'est avoir envie d'être identifié. Ne fais pas l'intéressant. Ne t'identifie à rien. Ne deviens pas identique à toi-même. Ne va pas vers toi. Car personne n'est véritablement parvenu au plus impulsif du rythme interne qui le commande, au plus autonome de ce qui vit dans sa vie parce que nous sommes tous des enfants.

Pascal Quignard, La barque silencieuse.

18 de janeiro de 2016


uma escuridão crua. inocente. vejamos, um exemplo.

a moral de um homem. também podia ser cómico, uma coisa que se tenta cautelosamente moldar. cômputo geral pode pensar-se no desejo mas não no amor. as formas coagularam, o desconforto é preponderante. para que é que se evita? uma estranha onda que o silêncio propaga continuamente aquieta a sala vazia. não se sabe nada sobre o pânico, tornou-se um segredo selvagem que se manifesta nas coisas comuns, como uma alvorada em partes. se pelo menos não fosse uma morte negra, sem culpa e tão extravagante, nos teus olhos.


15 de janeiro de 2016

Quero ser pouco profunda

Não quero representar e tampouco quero ver outros representar. Também não quero convencer outros a representar. As pessoas não deviam dizer coisas e fingir que estão a viver. Não quero ver essa falsa unidade refletida nos rostos dos atores: a unidade da vida. Não quero ver o jogo de forças deste "músculo bem oleado" (Roland Barthes) — o jogo da linguagem e do movimento, a chamada "expressão" de um ator bem treinado. Não quero que a voz e o movimento encaixem. Algo está a ser revelado no Teatro Hoje — invisivelmente, pois todas as cordas de palco são puxadas atrás da cena. A maquinaria, por outras palavras, está escondida; o ator está rodeado por geringonças, está bem iluminado e vagueia. Absurdamente imita seres humanos. Produz nuances de expressão e tira uma pessoa inteira da boca, uma pessoa cujo destino está a ser definido. Não quero dar vida a pessoas estranhas diante de uma audiência. Não sei, mas de algum modo prefiro não ter nada em palco que tresande a um parto sagrado de algo divino. Não quero teatro. Talvez queira apenas exibir atividades que se podem realizar como a apresentação de alguma coisa, mas sem qualquer significado superior. Os atores deviam dizer algo que ninguém diz nunca, pois isto não é a vida. Deviam mostrar trabalho. Deviam dizer o que está a acontecer, mas ninguém poderia nunca afirmar que dentro deles se passa algo completamente diferente, algo que apenas se pudesse ler indiretamente nos seus rostos ou nos seus corpos. Os civis deviam dizer alguma coisa em palco.

Um desfile de moda talvez — durante o qual as mulheres dizem frases nas suas roupas. Quero ser superficial!

Um desfile de moda, porque aí também se pode usar apenas as roupas. Livrar-se de seres humanos que pudessem fabricar uma relação sistemática com alguma personagem inventada! Como roupas, estão a ouvir? As roupas também não têm a sua própria forma. Têm de ser derramadas sobre corpos que SÃO a sua forma. Murchas e negligenciadas estão estas capas suspensas, mas subitamente alguém entra nelas, alguém que fala como o meu santo favorito, e que existe apenas porque eu existo: eu e aquela que é suposto eu ser — não apareceremos mais em palco.
Nem individualmente nem juntas. Olhem bem para mim! Nunca mais me verão! Lastimem! Lastimem agora. Santo, santo, santo. Quem, afinal, seria capaz de dizer que personagens deviam dizer o quê num teatro. Quaisquer que alinhe umas com as outras; mas quem é quem? Não conheço estas pessoas! Qualquer uma delas podia ser outra pessoa, e podia ser representada por uma terceira parte idêntica a uma quarta, sem que ninguém percebesse. Um homem diz. A mulher diz. Um cavalo vai ao dentista e diz uma piada. Não, não quero conhecê-lo. Adeus!

Elfriede Jelinek