17 de fevereiro de 2015

Thomas Becker, uma das sete fotografias da edição original de Nach der Natur, de 1988, de W.G. Sebald.

16 de fevereiro de 2015

a criança ri porque a mãe, que conversa com uma pessoa que encontrou na rua, ri. não pode participar na conversa, o conteúdo escapa-lhe, é-lhe estrangeiro. espanta-se sim com a repentina rutura do peso do quotidiano, cuja possibilidade, a princípio, se afigura até incompreensível. perante o frio enigma, a criança pergunta-se qual é o preço a pagar por essa alegria de contágio, de pura perda.

15 de fevereiro de 2015

no meio do caminho tinha uma pedra. nunca me esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas.
li agora num comentário no facebook No princípio era o verbo. E esse não nos podem tirar e pensei, quase automaticamente, ai podem podem.
já apenas dou crédito àqueles que se recolhem e protegem do mundo, aos que tomam a sua distância sobre sublevações sociais e movimentos políticos, que se rodeiam de cuidados quando usam palavras, atentos ao que nelas se constitui pelo seu verso, que nos escapa e que incomunicável finalmente nos isola. é a piada da vida.

14 de fevereiro de 2015

This bitter earth
What a fruit it bears
What good is love
That no one shares
And if my life
Is like the dust
That hides the glow of a rose
What good am I
Heaven only knows
This bitter earth
Can be so cold
Today you're young
Too soon you're old
But while a voice
Within me cries
I'm sure someone
May answer my call
And this bitter earth
May not be so bitter after all

Clyde Otis

13 de fevereiro de 2015

Remember that my life is wind. I have become the pelican of the desert, the owl of the ruins, and like a sparrow I am sitting alone on the roof.

Forough Farrokhzad, خانه سیاه است [The House is Black].

12 de fevereiro de 2015

quando eu era pequena gostava de um rapaz muito moreno que nunca falava e nunca olhava para mim e que, disseram-me recentemente, tem epilepsia. talvez ainda goste pois é a primeira vez que falo dele, e agora mesmo ainda com incerteza, embora desde essa época reveja frequentemente o seu rosto inescrutável. chamava-se Afonso. tinha o cabelo muito liso, os lábios negros. trazia uma aparência de tal forma insegura quando a cada início de ano entrava na sala, que parecia poder soçobrar em lágrimas a qualquer momento. eu tinha vontade de o resgatar a essa aflição, como de resto a qualquer outra aflição que pudesse atormentá-lo. era uma vontade que me apertava a base da garganta e me ordenava que me levantasse e lhe pegasse na mão para o conduzir até ao lugar onde se quisesse sentar obrigando os outros a meterem-se na sua vida e a olharem para outro lado. ele sentava-se no centro da sala. sentava-se, pousava os olhos na carteira diante dele e a partir dali não olhava nem falava com ninguém. eu procurava o lugar mais próximo possível dele. procurava um lugar de onde pudesse pelo menos contemplar o seu olhar posto sobre a secretária, investigar a cor dos seus olhos, a agilidade das mãos. agora acho espantoso que tivesse feito isto. que uma criança tão pequena possa fazer isto. uma única vez tentei dirigir-lhe a palavra, já não sei exatamente porquê, pretendi ajudá-lo com alguma coisa. ele teve uma reação muito violenta, como se me ralhasse, creio que chegou a levantar-me a voz, embora nem mesmo nesse momento tenha olhado para mim. nunca pude perceber a sua reação e a irredutibilidade desse enigma transformou-me. depois disso continuei a ajudá-lo, como tinha feito até aí, procurando protegê-lo da crueldade dos outros colegas sobretudo, ou tentando suavizar alguma questão de comunicação com a professora (que facilmente se irritava) quando ele era chamado ao quadro, mas em nenhuma outra ocasião voltei a fazer-me visível. no dia em que me disseram que ele tem epilepsia, esperei que alguma coisa se resolvesse em mim, mas apenas voltei a sentir a base da garganta apertar-se. vi com assombro que a improvável vontade de o levar para fora daqui se mantinha bem como a frustração por nunca ter conseguido falar com ele. chamava-se Afonso. tinha o sorriso mais lindo do mundo, bonito ao ponto de me comover. por vezes eu ia para casa repetindo o nome dele contra o meu silêncio e sorrindo sem saber porquê. não sabia porquê. havia um menino chamado Ivo que gostava de mim e que eu odiava, não porque ele fosse mau ou importuno, não era, mas porque o Afonso podia pensar que eu lhe correspondesse. mesmo depois de o Afonso me ter respondido rispidamente, e de com isso eu ter percebido que nunca iria brincar com ele no intervalo, nunca deixei de o proteger em segredo e nunca correspondi às ardentes e arrebatadas propostas do Ivo nem do Pedro nem do Gonçalo, tendo posto termo a qualquer esperança e sem o mais fino fio de dúvida. no dia em que a quarta classe acabou, toda a gente achou que eu estava a chorar por causa da separação da minha melhor amiga mas, embora eu não o tenha desmentido, não é verdade. eu chorei porque o Afonso nem sequer ficou para a festa de despedida e assim nem o meu olhar pôde despedir-se dele.
Um pintor deveria iniciar sempre uma tela com um banho de preto, porque todas as coisas na natureza são negras, exceto quando expostas à luz.

Leonardo da Vinci

9 de fevereiro de 2015

Como pode alguém esconder-se diante daquilo que não tem ocaso?

Como poderia alguém manter-se encoberto face ao que nunca se deita?

Quem poderá esconder-se do fogo que não dorme?


Heraclito, fragmento 16.

8 de fevereiro de 2015

Na Bíblia, o caçador por excelência é o gigante Nemrod, o mesmo a quem a tradição atribui o projeto da torre de Babel, cujo cimo deveria tocar o céu. O autor do Gênesis o define “robusto caçador diante de Deus” (10.9) (e ainda “contra Deus”, segundo a versão latina mais antiga, chamada Vetus Latina [Itala]), e esta sua qualidade venatória era essencial a ponto de ter se transformado em provérbio (“daqui nasce o provérbio: como Nemrod robusto caçador frente a Deus”).
No Inferno XXXI, Dante pune Nemrod, pelo seu “pensamento doentio”, com a perda da linguagem significante (“que assim está para ele qualquer linguagem / como a sua para os outros, a ninguém é conhecida”): ele pode apenas proferir sons privados de sentido (“Raphél may améch zabì almi”) ou, como caçador, tocar a corneta (“[...] alma estúpida / mantém contigo a corneta e com ela te desabafes”).
O que Nemrod caçou? E por que a sua caça é “contra Deus”? Se a punição de Babel foi a confusão das línguas, é provável que a caça de Nemrod tivesse a ver com um aperfeiçoamento artificial da única língua dos homens, que devia abrir à razão um poder sem limites. Isso ao menos deixa entender Dante, quando, para caracterizar a perfídia dos gigantes, fala do “argumento da mente” (Inf., XXXI 55).
É um mero acaso o próprio Dante ter apresentado, no De vulgari Eloquentia, a sua pesquisa do vulgar ilustrando-a constantemente através de imagens de uma caça (“caçamos a língua”, I, XI, 1; “aquilo que caçamos”, I, XV, 8; “as nossas armas de caça”, I, XVI, 2), e que a língua assim perseguida seja assimilada a uma besta feroz, a uma pantera?
Nas origens da nossa tradição literária, a pesquisa de uma língua poética ilustre se coloca assim sob o inquietante signo de Nemrod e da sua caça titânica, quase significando o risco mortal implícito em toda pesquisa sobre a linguagem que queira de algum modo restaurar o esplendor originário.
A “caça da língua” é a um só tempo arrogância insolente anti-divina, que exalta o poder de raciocínio da palavra, e amorosa busca que quer, ao contrário, reparar a presunção babélica. Todo sério empenho humano na palavra deve sempre se confrontar com esse risco.
Na poesia do último Caproni, esses dois temas se aproximam até coincidir na ideia de uma caça obsessiva e feroz cujo objeto é a própria palavra, e que une em si a desconfiança do gigante bíblico sobre os limites da linguagem e a piedosa veneração dantesca. Os dois aspectos da linguagem humana (a nomeação de Nemrod e a amorosa busca do poeta) tornaram-se então indistinguíveis, e a caça é de fato uma experiência mortal, cuja presa – a palavra – é uma besta que, diz Caproni, “vivifica e mata”, e que, “mansa e atroz”, talvez volte uma última vez a vestir o manto pintado da pantera dantesca (mas uma “pantera nebulosa” e “suicida”).
A palavra retorna então à sua própria potência lógica, diz si mesma, e, nesse extremo gesto poético, apreende somente a própria insensatez, aparece apenas no seu desaparecer. O “trompete” que se ouve vibrar “em eco” na música interrompida do último Caproni é a última e abafada ressonância da “alta corneta” delirante de Nemrod, do “robusto caçador diante de Deus”.

Giorgio Agamben, A caça da língua in Categorias Italianas. Estudos de poética e literatura., Edições UFSC, 2014.